Pelo Rev. Pe. Noel Barbara
Fortes in Fide, n.º 10 da nova série, 90 pp., Maio de 1982

Na sua declaração de 8 de novembro de 1979, Dom Lefebvre decidiu tratar como pária a quem quer que recusasse segui-lo nas transações dele com a nova igreja. Essa declaração marcou o termo de uma longa evolução e removeu toda qualquer dúvida quanto às intenções de seu autor. No passado, ele aparecera como testemunha da fidelidade católica frente ao Vaticano II. Doravante, ele apresentou-se como militante por um direito de tendência conservadora no seio do organismo que ele, até então, qualificava de igreja cismática[1]. A Union pour la Fidélité [União pela fidelidade, de sacerdotes, religiosos e leigos católicos] foi fundada imediatamente após essa virada de casaca: nessa atmosfera de liquidação total, que foi aceita com indolência quase generalizada, era preciso que fosse mantida a qualquer preço a voz da verdade católica. Múltiplas iniciativas, em privado e publicamente, foram empreendidas para tentar trazer de volta à razão Dom Lefebvre e sua Fraternidade. Infelizmente, foi trabalho perdido, pois nos defrontamos constantemente com um desdém silencioso, salvo raras respostas, mas todas as vezes bem injuriosas[2]. Nas páginas de Forts dans la Foi [revista Fortes na Fé], multiplicamos as explicações, empenhando-nos em encarar o problema sob todos os aspectos, não hesitando em repensar todas as questões desde seus fundamentos[3]. Desperdício de tempo! A Fraternidade São Pio X, assim como seus aliados de coração ou de razão, ignorou com soberba todo esse esforço. Algumas exceções vieram interromper esse silêncio: as laboriosas tentativas de dar uma aparência teórica à posição praticamente cismática de Dom Lefebvre e, como corolário, uma aparência de refutação à doutrina católica que tivéramos ocasião de recordar. Ampla ressonância foi dada a essas produções, todavia lamentáveis[4]. Diante dessas etapas teóricas na via do cisma, reiteramos nossos alertas[5], mas, também aqui, completamente debalde. E, neste ínterim, tudo parece dever continuar como no passado. Os católicos tradicionalistas conservam seus habitozinhos, e a Fraternidade São Pio X se desenvolve, e com ela uma nova religião, à margem não só da igreja oficial que não é a Igreja[6], mas também e sobretudo à margem da Igreja Católica. Tudo isso pode durar ainda muito tempo? Seguramente que não. Para nós, em todo o caso, chegou a hora de pôr um ponto final nessa questão. Fizemos tudo que podíamos para ser pacientes e compreensivos, talvez mesmo se poderia censurar-nos, quando muito, haver sido excessivamente pacientes, mas agora convém falar claro, ou seja trazer à luz, de maneira sistemática, a natureza e a gravidade da ação de Dom Lefebvre, indicar as obrigações que daí resultam para todos, e tirar disso as consequências práticas. É para realizar esse esclarecimento que redigimos o presente número. Claro que sabemos que ele será acolhido por alguns, como todo o restante de nossos escritos, com desprezo e sarcasmos. Mas isso não nos impedirá de difundi-lo, por uma série de razões. Antes de tudo, porque devemos dizer a verdade, para honra do Senhor e de Sua Igreja, e para o bem dos fiéis desencaminhados. Nossa primeira e principal ambição é agradar a Deus. Assim fazendo, sabemos que agradaremos também a todos os que amam a verdade, e nossos fiéis assinantes fazem parte destes, e com eles muitos outros, que apreciariam ter mais elementos para compreender o que se passa. É para eles que escrevemos, para todos aqueles que a situação atual angustia ou deixa na perplexidade. Nós escrevemos também, nem é preciso dizer, para Dom Lefebvre e para aqueles que se ligaram a ele. Julgamos que um reflexo de grupo os fará recear de ler nossas linhas, e que preferirão a fuga para a frente nas suas quimeras. Não obstante, pode acontecer que alguns deles ajam diferentemente e tomem conhecimento do que, para eles, de fato representa um último apelo a voltar ao bom senso. Que saibam que não somos seus inimigos. Fazemos votos simplesmente que os elementos aqui reunidos provoquem neles um choque salutar: a verdade nem sempre é agradável de ouvir, mas é libertadora. Escrevemos ainda para todos aqueles que tiveram, até aqui, uma visão exterior e bem imperfeita do “caso Lefebvre”, segundo a expressão consagrada pela imprensa: católicos que permaneceram na incerteza, opositores timoratos, e mesmo responsáveis, em níveis diversos, da nova igreja. Para uns como para os outros, fazemos questão de dar a conhecer que a ação de Dom Lefebvre não pode ser confundida com a confissão da fé católica face à revolução introduzida pelo Vaticano II. Por fim, escrevemos muito especialmente para todos aqueles que, sem ser diretamente subordinados a Dom Lefebvre, se fizeram seus aliados e partidários resolutos. Queremos nos referir a uma boa parte dos tradicionalistas, e sobretudo, claro, daqueles que os conduzem mais ou menos, desses famosos líderes de carisma, hoje um pouco postos de escanteio pelos elementos mais militantes da Fraternidade São Pio X. Até o presente, eles se mostraram ferozmente hostis a todas as nossas iniciativas, ciosos de conservar para conosco o mais estrito bloqueio, solidários a Dom Lefebvre até no pior[7]. A priori, o presente número será, portanto, ignorado por eles, e chegarão mesmo a dar a palavra de ordem de não o ler e de nem mesmo tocar nele – vai saber, é mais seguro. Mas nada disso, para falar a verdade, nos impressiona muito. Sabemos que seremos lidos e que a nossa mensagem será ouvida.
História
Como tantos outros bispos conservadores, Dom Lefebvre constatou rapidamente que o Vaticano II se engajara num caminho que não é católico: “Durante o Concílio, havia a consciência do perigo de não mais afirmar a fé como antes”[8]. Mas, como tantos outros também, ele se deixou capturar pelas armadilhas dos inovadores[9]. Durante as duas primeiras sessões, ele exerce um papel mais apagado, intervindo o mais das vezes para pôr em evidência os aspectos heterodoxos e ambíguos dos textos conciliares. No final da segunda sessão, ele dirige, com muitos outros bispos, uma carta a Paulo VI, suplicando a este último “ficar atento às palavras equívocas que se encontram nos textos do concílio”. No entanto, simultaneamente, Dom Lefebvre dirige à atenção dos católicos um resumo claramente positivo dos trabalhos conciliares, apoiando-se amplamente no discurso pronunciado por Paulo VI no encerramento da segunda sessão[10]. Além de má análise dos fatos, cumpre ver aí sem dúvida uma expressão de grande confiança no papa: “Nós vivemos momentos em que o sobrenatural, em que a ação do Espírito Santo, é visível, tangível. Interrogue-se os observadores do Concílio; eles não encontrarão termos demasiado expressivos para nos congratular e nos invejar de termos um Bispo ao qual foi dado o poder supremo sobre a Igreja, um Bispo ao qual nos dirigirmos quando a dúvida ou as trevas nos oprimem e em quem temos a garantia de encontrar a Luz”[11].
Na sequência, diante da amplitude que tomou a subversão, Dom Lefebvre, em companhia de uma pequena minoria dos bispos, tenta organizar a oposição. Ele se torna um dos principais animadores do Coetus Internationalis Patrum. Mas o C.I.P., não podendo ou não sabendo reagir como hoje se vê que haveria de ter feito, só logrou obrigar os inovadores a velar melhor suas heresias. No fim do concílio, Dom Lefebvre só recusou dois textos: a constituição sobre a Igreja no mundo deste tempo, Gaudium et Spes, e a declaração sobre a liberdade religiosa, Dignitatis Humanae. Ele aceitou todos os outros, particularmente a constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, o decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio, e a declaração sobre a Igreja e as religiões não cristãs, Nostra Aetate.
Nascimento de Écône
Para Dom Lefebvre, Superior Geral dos Padres do Espírito Santo desde 1962, o pós-concílio começa em relativo silêncio. Todavia, em diversas ocasiões, ele deplora os efeitos destrutivos da aplicação das reformas conciliares. Em dezembro de 1966, respondendo a uma investigação efetuada pelo Cardeal Ottaviani, ele explica que a dúvida e a confusão se introduziram por toda a parte e que a causa disso é o próprio concílio: “De maneira praticamente generalizada, onde o Concílio inovou ele abalou a certeza de verdades ensinadas pelo Magistério autêntico da Igreja como pertencentes definitivamente ao tesouro da Tradição”[12]. Mas, como numerosos católicos fiéis na época, ele confia em Paulo VI para endireitar a situação. Em 1968, a reforma conciliar toca-o diretamente. Paulo VI exige que as congregações religiosas realizem capítulos gerais extraordinários para adaptar-se às normas do aggiornamento. Trata-se, especialmente, de retirar a autoridade dos superiores para confiá-la a equipes de dirigentes. Os espiritanos votam a favor dessa revolução, e Dom Lefebvre vai queixar-se disso em Roma. Ali, ele não obtém nada, mas constata que todos essas reviravoltas são caucionadas por Paulo VI. Sem protestar publicamente, ele apresenta então sua demissão e começa o que poderia ter se tornado uma aposentadoria antecipada. Como muitos outros bispos, ele teria podido, com efeito, terminar aí sua carreira, desenganado, no anonimato e no esquecimento. Mas bem depressa a Providência o impele a sair da inação. No ano mesmo de sua demissão, seminaristas franceses que a degradação acelerada dos seminários inquieta vêm encontrar o prelado, cuja preocupação particular com a formação dos sacerdotes eles conhecem. Ele os orienta para o Seminário Francês de Roma, dependente dos Padres do Espírito Santo. Essa experiência não dando os resultados esperados, Dom Lefebvre decide ocupar-se pessoalmente das vocações sacerdotais. Como ele próprio admite, ele se lança na empreitada sem haver previamente concebido algum plano de ação: “Eu nunca tive a intenção bem delineada de antemão de agir assim, eu nunca disse a mim mesmo: eu farei um seminário, eu o farei de tal maneira, eu o farei em tal lugar”[13]. Sem refletir ulteriormente sobre a situação da Igreja e os meios de remediá-la, ele quer simplesmente responder às necessidades das vocações fazendo novamente o que ele sempre fez.
A partir de junho de 1969, ele funda uma casa para seminaristas em Friburgo, na Suíça, com a autorização e os encorajamentos do bispo do lugar, Dom Charrière. Prevê-se que os candidatos ao sacerdócio façam seus estudos na universidade local, suposta ainda tradicional. Ao mesmo tempo e para dar conta dos pedidos de admissão, Dom Lefebvre adquire uma casa em Écône, uma vilazinha do Valais. Bem rápido ele constata que o ensino dado em Friburgo também se afasta da doutrina católica, e ele se decide então a fazer de Écône o seu próprio seminário[14]. Antes, ele deu à sua obra o estatuto canônico de uma fraternidade, sociedade devida comum sem votos, a exemplo das sociedades de missões estrangeiras, composta de sacerdotes, de religiosos e de religiosas. O decreto de ereção da Fraternidade Sacerdotal Internacional São Pio X é assinado por Dom Charrière a 11 de novembro de 1970. Em fevereiro de 1971, uma carta de encorajamento do cardeal Wright, prefeito da Congregação do Clero, vem confirmar a aprovação da hierarquia para essa iniciativa, tomada no respeito às leis e às autoridades.
Um contexto ambíguo
As circunstâncias contribuirão muitíssimo para a projeção da Fraternidade. Em 1969 é promulgado o novo Ordo Missae, sem tardar imposto em todos os lugares de culto e que provoca vivíssimas reações de recusa em vários países, muito particularmente em França. A nebulosidade jurídica que acompanha a introdução da nova missa, a publicação do Breve Exame Crítico assinado pelos cardeais Ottaviani e Bacci, confortam os padres e os fiéis na sua decisão de recusar o novoOrdo Missae e de manter por conta própria a celebração da Missa de São Pio V. Eles se organizam, criam associações – em sua maioria, chamadas Associações São Pio V – e, com o tempo, constituem um meio social específico. No início, Dom Lefebvre não tem participação alguma na aparição desse movimento, mas muito depressa ele se vê arrastado por ele. Com efeito, os centros de Missa tradicional se multiplicam, as pessoas se voltam espontaneamente para ele e o impelem a agir. Sua imagem pública faz dele o bispo indicado para conduzir a oposição à reforma litúrgica. Conhece-se o seu passado de conservador, sabe-se que ele foi um dois mais atuantes opositores ao concílio. Reivindica-se a Missa, reivindica-se padres, e eis que ele se propõe a conservar a Missa de sempre e que ele funda um seminário tradicional. E, ainda por cima, ele é aceito pela hierarquia. Ele aparece como o homem providencial, e não se vê razão alguma para não recorrer a ele e para não o impulsionar a seguir em frente. Dom Lefebvre polariza, então, todas as atenções e parece querer responder aos desejos dos opositores da nova missa. Na realidade, há desde a origem desse caso um mal-entendido, ao menos uma certa ambiguidade. De sua parte, Dom Lefebvre clama em toda ocasião que ele está regularizado com o que ele chamará em seguida de “a igreja oficial”. Ele chega até mesmo a sustentar que ele é o único a aplicar as diretrizes do Vaticano II para a formação do clero. Ele apresenta a Fraternidade São Pio X como uma obra destinada a manter o essencial, a constituir uma ilhota de catolicidade na qual, em redor de sacerdotes de verdade, serão conservados a Missa, os sacramentos e o catecismo, e na qual a Igreja, tão logo apaziguada a tempestade, encontrará uma base sólida de reestruturação. Por seu turno, os padres e os fiéis que foram os primeiros a mobilizar-se para defender a verdadeira religião veem em Dom Lefebvre uma testemunha e um exemplo contra as novidades do pós-concílio. Claro que, nessa época, ninguém calcula ainda a gravidade da situação. Os elementos de apreciação não faltam, mas a conservação da Missa mobiliza todas as energias. Contudo, já se compreende que o Vaticano II deve ser rejeitado em bloco, interroga-se sobre a responsabilidade de João XXIII e, sobretudo, de Paulo VI. Espera-se muito, portanto, de Dom Lefebvre, mais do que o que ele próprio declara querer fazer. Numa tal situação, as dificuldades não tardam a surgir. As associações que trabalham pela preservação da Missa se inquietam com a frouxidão de Dom Lefebvre. As declarações dele deixam-nas na mesma fome em que estavam. Não cessando de afirmar que ele quer somente fazer o que a Igreja sempre fez, ele parece desinteressar-se do que se passa em Roma e dos problemas de fundo postos pelo Vaticano II. Quando alguns estudos vêm fundamentar a recusa da nova missa, ele não manifesta por eles nenhum interesse particular. Por vezes, inclusive, ele se mostra hostil, sem, no entanto, argumentar. Os que esperam o apoio dele para suas obras se surpreendem de constatar que o auxílio mútuo só funciona no sentido favorável à Fraternidade São Pio X[15]. Numa palavra, já nesta época Dom Lefebvre não responde plenamente à esperança dos católicos fiéis. Foi ele, porém que, num primeiro momento, mobilizou grande número de consciências católicas.
As primeiras dificuldades
No curso de seus primeiros anos de existência, a Fraternidade São Pio X conhece um incremento regular. O seminário de Écône atrai gente de todos os horizontes, ainda que a contribuição principal continue sendo dada pelos ambientes tradicionalistas. A partir de 1973, novas casas são fundadas na Itália, na França, nos Estados Unidos. Tudo parece, portanto, ir de vento em popa. Satisfeito com a sua obra, Dom Lefebvre está otimista. Ele está convicto de que a hierarquia conciliar o apoia, na medida em que o sucesso do seminário dele não para, segundo ele, de suscitar, um pouco por toda a parte, senão admiração, ao menos vivíssimo interesse. Em outubro de 1973, ele declara triunfalmente: “Sem dúvida, nosso resoluto embasamento na Tradição da Igreja provoca, da parte de certos bispos, reservas. Pois aparecemos como refratários ao aggiornamento conciliar. Sem embargo, o sucesso assaz singular da Fraternidade São Pio X levanta problemas. Por que os jovens que têm uma vocação séria se apresentam tão numerosos a este seminário, enquanto a maioria dos seminários se esvazia? De ano em ano, sentimos que a oposição inicial se transforma em curiosidade e surpresa. Já diversos bispos vieram ou nos escreveram para nos pedir padres. Cinco pedidos chegaram ao longo dos últimos meses, solicitando-nos para o envio de professores de seminário maior e com ofertas de paróquias. De Roma, recebemos indultos que permitem concluir que, nos fatos, nossa Fraternidade tem o direito de incardinar, embora seja apenas de direito diocesano. Mais ainda, recebemos de um intermediário bem-posicionado a garantia de que o Santo Padre abençoava o nosso apostolado”[16]. Com o recuo, essa declaração aparece bem ridícula e perfeita para embalar com ilusões os mais ingênuos. Mas não resta dúvida de que, na época, Dom Lefebvre acreditou que sua Fraternidade, alastrando-se, podia ser reconhecida por Paulo VI. Era tomar seus desejos por realidades. Já em 1972, em seguida à Assembleia Plenária do episcopado francês, o termo ‘seminário selvagem’ foi aplicado a Écône. Mas os aborrecimentos começam de verdade em novembro de 1974, na forma de uma visita canônica preconizada por uma comissão que Paulo VI nomeara, composta pelos cardeais Garrone, Wright e Tabera. As declarações escandalosas dos visitadores, o fato de ser tratado daquele jeito, provocam em Dom Lefebvre surpresa e cólera. Ele reage violentamente e ataca sem deferência a “Roma conciliar” na qual ele havia até então esperado. Numa declaração feita em Roma a 21 de novembro de 1974, ele afirma sua recusa de “seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no concílio Vaticano II e, após o concílio, nas reformas que dele emanaram”. Pela primeira vez Dom Lefebvre é levado a proclamar verdadeiramente a incompatibilidade radical entre a Igreja de Jesus Cristo e a do Vaticano II. De resto, Roma [sic] responde duramente. Em maio de 1975, os cardeais Garrone, Wright e Tabera informam Dom Lefebvre de que suas declarações são em todos os pontos inaceitáveis. Diante de sua recusa de retratar-se, a comissão cardinalícia põe fim à existência “legal” do seminário.
A partir daí, a Fraternidade São X encontra-se na “ilegalidade”. Seu chefe nem por isso fica menos decidido a continuar. Todavia, à parte algumas considerações sobre o caráter ilegal das sanções que o atingem, Dom Lefebvre não aproveita a ocasião que lhe é dada pela Providência para responder às questões que se impõem, em particular aquela da jurisdição dos que o perseguem. Para ele, as dificuldades se reduzem a um dilema: “ou obedecer com o risco de perder a fé, ou desobedecer e trabalhar pela preservação e continuação da Igreja”[17]. Ele não cessa, então, de se desviar da questão que todos os católicos fiéis se colocam: Paulo VI é papa? Ele a esquiva propondo uma solução que opõe Tradição e Magistério vivo: “Nós aplaudimos o Papa eco da Tradição e fiel à transmissão do depósito da Fé. Nós aceitamos as novidades intimamente conformes à Tradição e à Fé. Nós não nos sentimos ligados pela obediência a novidades que vão contra a Tradição e ameaçam nossa Fé” (ibid.). Mesmo ele não fazendo dela um absoluto, essa teoria de inspiração protestante se torna o fundamento da linha de conduta de Dom Lefebvre. Na prática, ele continua a dizer-se em comunhão com a hierarquia conciliar, ele dialoga com ela, mas cotidianamente ele não leva em conta nenhuma a autoridade dela. Isso se traduz, especialmente, em numerosas irregularidades canônicas. A Fraternidade São Pio X implanta seus priorados um pouco por toda a parte, sem se incomodar em nada com a jurisdição local dos bispos a postos. Esse tipo de atitude deixa um mau presságio sobre o futuro. Mas os mais lúcidos esperam ainda que os acontecimentos venham a conduzir Dom Lefebvre a enxergar as coisas de forma mais realista. Em 1976, eles creem que esse momento chegou.
A ocasião perdida
Não obstante a altercação de maio de 1975, Dom Lefebvre ordena três padres em 29 de junho do mesmo ano. Durante os meses seguintes, ele tenta reatar com a igreja conciliar e busca obter uma audiência com Paulo VI, convicto de que poderá fazer valer seu bom direito e suas boas intenções. Mas em vão, pois Roma [sic] não quer saber de diálogo, muito pelo contrário. Ela procura dobrar “o bispo rebelde” e o ameaça de sanções. Paulo VI proíbe-o formalmente de proceder a novas ordenações. A prova de força do verão de 1976 se prepara. Uma vez mais, a Providência põe Dom Lefebvre contra a parede. A 29 de junho, malgrado todas as objurgações, ele procede às ordenações. Paulo VI responde em 1.º de julho fulminando os padres ordenados com “suspensão a divinis”. A 29 de julho, a mesma sanção atinge o prelado de Écône, que responde no mesmo dia por uma declaração sem equívoco:“Essa igreja conciliar é uma igreja cismática, pois ela rompe com a Igreja Católica de sempre”. O mês de agosto é o mês das declarações estrepitosas. Dom Lefebvre não cessa de pôr a ênfase na heresia e no cisma do Vaticano II e da igreja deste último. Contudo, ao mesmo tempo, ele fala de interpretar o concílio no sentido da “Tradição” e pede já “que se o deixe fazer a experiência da Tradição”.
A missa de Lille, hoje famosa, é por assim dizer imposta a Dom Lefebvre. Originalmente, ele não quer fazer dela uma manifestação pública. Mas de todas as partes escrevem a ele dizendo que comparecerão. Então, ele recupera a operação a seu proveito, agrega todas as associações, e a missa de Lille torna-se um símbolo. Apesar de todas essas flutuações, o tom é de firmeza. Muitos querem crer que o confronto decisivo chegou, que o novo Atanásio enfim se ergueu para lançar o anátema contra Paulo VI e a igreja deste. Mas a missa de Lille não passa de fogo de palha. Dom Lefebvre termina assim sua homilia: “Seria tão simples se cada bispo, na sua diocese, pusesse à nossa disposição, à disposição dos católicos fiéis, uma igreja e lhes dissesse: ‘Aí está a igreja de vocês’. Quando eu penso que o bispo de Lille deu uma igreja aos muçulmanos, não vejo por que não haveria uma igreja para os católicos da Tradição. E, definitivamente, a questão estaria resolvida. E é isso que eu pediria ao Santo Padre, se ele tivesse a bondade de me receber: ‘Deixai-nos fazer, Santíssimo Padre, a experiência da Tradição. Em meio a todas as experiências feitas atualmente, que haja ao menos a experiência daquilo que foi feito durante vinte séculos!’”. No que respeita a anátema, Dom Lefebvre pedia, em nome do ecumenismo e da liberdade religiosa, o direito comum para os tradicionalistas no seio da igreja conciliar. Não ousando acreditar nisso, os católicos fiéis quiseram ver nessas palavras uma manobra tática e se entregaram a interpretações piedosas. Mas, de fato, ao recusar-se assim ao testemunho que dele exigia a Providência, o bispo entra numa fase de compromissões e de contradições que o levaria longe. As consequências disso serão tanto mais vastas, quanto os acontecimentos de 1976 foram largamente repercutidos pela imprensa e tiveram como efeito fazer crer ao mundo que Dom Lefebvre era o único a opor-se ao Vaticano II[18].
Tentativas de negociação
O dia seguinte de Lille é a degradação acelerada. Em 5 de setembro, no final da primeira missa celebrada por um jovem sacerdote da Fraternidade, um padre italiano encontra Dom Lefebvre, graças à mediação de Michel de Saint-Pierre. Ele o persuade a escrever a Paulo VI. Em 11 de setembro, “o bispo rebelde” ajoelha-se aos pés deste último. Pede-lhe a liberdade de fazer a experiência da Tradição: “Só precisais dizer uma palavrinha”. Na saída da reunião, ele se espanta de esse encontro ter podido concluir-se em dois dias e declara: “Quem sabe não compreenderam que eu não estava só e se deram conta de que cerca de 52% dos católicos franceses compartilham dos meus pontos de vista? Talvez eles temam as desastrosas consequências de uma fratura”[19]. Na realidade, Paulo VI e os hierarcas da nova igreja, para os quais era difícil de excomungar um bispo fiel sem com isso dar prova de sua apostasia, neutralizam-no pelo diálogo. E Dom Lefebvre entra no jogo deles tanto melhor quanto sua recusa de ir ao fundo do problema o predispõe a isso. Cada uma das partes encontra aí satisfação. Para a Roma conciliar, o caso de Écône está, na realidade, terminado. Quanto a Dom Lefebvre, o diálogo permite-lhe salvaguardar sua obra, à qual ele está ligado acima de tudo. Finda o tempo da oposição. Começa o tempo da negociação. No entanto, por parte da nova igreja, não se cede um único centímetro de terreno. Dom Lefebvre reconhece isso de bom grado: “Nos fatos, não vemos nenhum sinal de retorno à tradição, mas, bem ao contrário, uma implementação do ecumenismo e do comunismo. Nunca as inovações mais inconcebíveis são publicamente repreendidas pela autoridade. Unicamente os que mantêm a fé católica são perseguidos e condenados”[20]. Mas esse truísmo não o demove de sua determinação. De resto, ao mesmo tempo que ele pretende negociar, ele multiplica seus priorados, confirma em todas as dioceses. Esse desenvolvimento ilude, e Dom Lefebvre, se comprazendo em dizer que o bem é difusivo de si, nunca deixa de pedir para ser oficialmente reconhecido, convicto de que a Tradição sobrepujará necessariamente o movimento nascido do concílio: “Para a Igreja universal, eu desejo como vós a coexistência pacífica dos ritos pré e pós-conciliares. Que se permita então aos padres e aos fiéis escolherem a qual ‘família de rito’ eles preferem aderir. Que se espere, em seguida, que o passar do tempo dê a conhecer o julgamento de Deus sobre o seu valor respectivo, de verdade e de eficácia salutar para a Igreja Católica e para toda a cristandade”[21]. O discurso desmobilizador do bispo dos tradicionalistas é assim que se começa a considerá-lo – faz crer a estes últimos que a provação está prestes a acabar.
Sucede então a morte de Paulo VI, rapidamente seguida pela de João Paulo I e pelo aparecimento de João Paulo II. Muito embora tudo indique que este último tem a intenção de completar a edificação da nova igreja, especialmente sua “encíclica-programa” Redemptor Hominis, o simples fato do falecimento de Paulo VI, pouco popular no meio tradicionalista, reforça a tentação da reconciliação.
Da compromissão à injustiça
Dom Lefebvre encontra-se com João Paulo II em 16 de dezembro de 1978. Em seguida ao encontro, ele exprime grandes reservas. Com uma liberdade de linguagem inaudita, ele fala daquele que ele reconhece como o legítimo sucessor de Pedro: “Eu penso poder dizer que ele se mostra fundamentalmente compactuante com o Concílio e com as reformas; não penso que ele ponha isso em questão. E isso é evidentemente muito grave, pois ele é favorável ao ecumenismo, favorável à colegialidade, favorável à liberdade religiosa”[22]. Mas, em 24 de dezembro, ele escreve mesmo assim a João Paulo II, para pedir-lhe ser reconhecido e reintegrado ao seio da igreja conciliar: “Santíssimo Padre… nós vos conjuramos a dizer uma palavra só… ‘liberdade’ [‘laissez faire’]; ‘Nós autorizamos o livre exercício daquilo que a Tradição multissecular utilizou para a santificação das almas’. Que dificuldade apresenta uma atitude dessas? Nenhuma”.
Essa iniciativa engendra nos católicos fiéis um profundo mal-estar, acentuado ainda pelas respostas de Dom Lefebvre à Cúria romana que o interroga. Essas respostas revelam no prelado justificativas particularmente nebulosas, um apego desordenado à sobrevivência de sua obra e a recusa de pôr o verdadeiro problema em termos doutrinários. O mal-estar aumenta ainda mais quando, no interior da Fraternidade, o fato de não reconhecer João Paulo II como papa torna-s motivo de sanção: admoestações a diversos padres, recusa de ordenar etc. Durante o verão de 1979, os acontecimentos se precipitam. É o Pe. du Chalard, sacerdote da Fraternidade São Pio X, que obtém, para alguns jovens franceses em férias na Itália, uma audiência de João Paulo II. Este último é calorosamente aclamado. Por toda a parte se tecem loas ao pontífice[23]. Alguns se inquietam com esses ventos de loucura. Mas Dom Lefebvre vem reforçá-los, dando-lhes sua aprovação em 8 de novembro de 1979. Ele dá a conhecer suas posições com respeito à nova missa e João Paulo II, e faz com que sejam difundidas em numerosos folhetos e revistas. Um sofisma de poucas linhas lhe permite varrer de um só golpe todos os estudos aprofundados sobre a invalidade da nova missa. Quanto à questão do papa, o essencial da solução dele está nesta frase: “A questão da visibilidade da Igreja é demasiado necessária à sua existência para que Deus pudesse omiti-la durante décadas”[24]. Não contente com isso, Dom Lefebvre acusa de espírito cismático todos aqueles que pensam diferente. No boletim interno, ele acrescenta às posições dele uma ameaça de sanção: “A Fraternidade sacerdotal São Pio X… não pode tolerar em seu seio membros que se recusam a rezar pelo Papa e que afirmam que todas as missas do Novo Ordo Missae são inválidas”[25]. Segue-se evidentemente um expurgo no seio da Fraternidade. Todos aqueles que não reconhecem João Paulo II devem submeter-se. Alguns abafam sua consciência e permanecem. Outros são expulsos sem consideração alguma, com soberano desdém pelo Direito Canônico. Os dirigentes tradicionalistas regulam seus passos pelos de Dom Lefebvre. Os padres Coache e Ducaud-Bourget, Dom Gérard, prior beneditino de Bédoin, multiplicam os insultos dirigidos aos católicos fiéis. Em 1980, a era do tradicionalismo sectário se inicia.
O surgimento do lefebvrismo
A negociação com a igreja conciliar oferece em teoria três saídas: ou a obtenção de um direito de tendência tradicionalista, ou a adesão pura e simples, ou a via cismática. Mas a nova igreja não tem interesse algum em reconhecer qualquer direito que seja aos tradicionalistas[26], ela não tem necessidade alguma deles. Quantitativamente, eles não são nada[27]. Ora, é isso o que importa aos olhos dos dirigentes conciliares. Recusando-se a lançar o anátema, Dom Lefebvre priva-se da única arma que lhe podia assegurar a vitória. Limitando-se à simples reivindicação de um direito de tendência, apoiado por uma força insignificante comparada à massa dos fiéis do Vaticano II, ele soçobra no naturalismo sem nem mesmo ter meios credíveis, e cava seu próprio túmulo. Quanto à adesão pura e simples, os interesses em jogo são importantes demais para que se possa contemplá-la sem utópicas tratativas[28]. Antes, e sobretudo, os anos provocaram uma ruptura psicológica entre tradicionalistas e inovadores praticamente impossível de reabsorver. A única via aberta permanece a do cisma. A partir de suas posições de 8 de novembro de 1979, Dom Lefebvre se atém, portanto, a uma linha bem precisa: clamar alto e claro sua adesão filial às autoridades a postos, a João Paulo II muito particularmente, reconhecendo-lhes plena legitimidade; recusar-lhes obstinadamente a obediência em tudo, em nome do “direito de fazer a experiência da tradição”. Que Dom Lefebvre desobedece em todos os pontos, é uma questão de fato que não é difícil de provar. Ele continua, ademais, sua obra exatamente como ele a começou. Ao arrepio de uma suspensão que nunca foi levantada, ao arrepio da jurisdição dos bispos conciliares cuja legitimidade ele reconhece, ele ordena, confirma, instala priorados. Ao arrepio do direito sempre em vigor na Igreja, ele concede o poder de confirmar a seus padres. Numa palavra, ele desobedece.
Sem que a contradição os embarace, Dom Lefebvre e todos os que vão na esteira dele cobrem João Paulo II de louvores. Não retêm dele senão as raras palavrinhas que ainda sabem à Tradição. Por vezes as coisas tomam um aspecto cômico. Em fevereiro de 1980, entoa-se em Écône um Te Deum: João Paulo II autorizaria a Missa de sempre e agradeceria a Dom Lefebvre pela ação deste. No dia seguinte, a leitura da carta Dominicae Coenae é de deixar atônito: João Paulo II aprova solenemente o novo Ordo e a teologia que o inspira. A 15 de junho, Dom Lefebvre vem confirmar em Paris. Ele deslocou a data dessas confirmações, para não incomodar a viagem de João Paulo II à França. Dessa triste mascarada, diz ele: “O papa em França é um pouco de oxigênio vindo de Roma. Pois o Papa, diga-se o que se disser, é o Papa. Essa viagem foi, portanto, para os católicos uma alegria, mas há uma sombra no panorama: a situação da Igreja é desastrosa, trágica, dolorosa”. Para lavar o papa dele de toda a suspeita, ele acrescenta: “A liturgia foi-lhe imposta. Ele teria podido recusar-se a assistir ao que se passou em Saint-Denis, que foi uma coisa escandalosa… Um dia o papa nos agradecerá por havermos mantido a Tradição.” Após o atentado contra João Paulo II, Dom Lefebvre, em homilia de 29 de junho de 1981, declara: “E somos realmente obrigados a constatar que a Paixão da Igreja continua. Paixão que se manifesta inclusive, eu diria, na saúde do Cabeça da Igreja. É corporalmente que o Papa sofre, de algum modo, a Paixão da Igreja…”. Ao mesmo tempo que Dom Lefebvre se engaja nessa via absurda, aUnion pour la Fidélité é constituída para não compactuar com a obstinação do prelado. Ela procura por todos os meios esclarecê-lo. Mas todas as iniciativas empreendidas diante dele se defrontam com uma recusa rancorosa. Uma única vez, Dom Lefebvre recebe dois emissários da Union pour la Fidélité. Mas, aos argumentos deles, ele nada opõe a não ser o pedido de que o “deixem em paz”[29].
Coisa mais grave, quando a doutrina católica que lhe é confrontada mostra que a conduta dele é aberrante, Dom Lefebvre se empenha em manipulações doutrinais que cheiram a enxofre. Ele não se compromete pessoalmente, o trabalho é feito por outros, mas ele subscreve a eles explicitamente. Seu esforço visa dois pontos. Cumpre-lhe legitimar sua desobediência tanto no plano canônico quanto no plano teológico. Destarte, ele promove a exposição, por um lado, de uma doutrina do Magistério que restrinja a infalibilidade da Igreja e do Romano Pontífice unicamente às novas definições dogmáticas e crie uma cisão entre o ensinamento e a transmissão do Bom Depósito[30]; e, por outro lado, uma teoria da obediência condicional e da autoridade consentida, grosseiramente mascarada por trás de expressões de aparência canônica[31]. A partir do momento em que seus “teólogos” e seus“canonistas” falaram, Dom Lefebvre prova a cada dia um pouco mais que ele optou deliberadamente por uma solução, ainda que ao preço do cisma. A igreja conciliar, que ele reconhece como sendo a Igreja Católica, não cede um centímetro de terreno e deixa a situação deteriorar-se. Quanto à Fraternidade São Pio X, ela continua a se desenvolver. Dom Lefebvre ordena, os priorados se multiplicam, seminários, escolas, “universidades” são fundados. O direito e a teologia foram reinventados para as necessidades da causa. Nascia a pétite église lefebvrista.
Doutrina
A história de Dom Lefebvre e da sua obra desde o Vaticano II é já rica em ensinamentos referentes à doutrina daquele que, com muita frequência, não é conhecido a não ser através dos prismas deformantes da adulação, do renome, do desdém ou, muito simplesmente, da má informação. Bispo dos tradicionalistas, bispo de ferro, bispo rebelde, novo Atanásio: tantos qualificativos de que, diz-se, o próprio Dom Lefebvre não gosta nada, e que não correspondem à realidade. No entanto, aquilo que se convencionou chamar de “o caso de Écône” fez de Dom Lefebvre um homem público. Todas as suas declarações foram repercutidas pela imprensa ou difundidas em numerosos livros. Quanto a seus fatos e gestos, para quem viveu estes últimos anos no meio tradicionalista sem se desinteressar pela situação da Igreja, o essencial é conhecido. Tudo isso constitui material abundante, do qual se pode extrair a doutrina de Dom Lefebvre.
A crise que atravessa hoje a Igreja obrigou os católicos a pôr-se um bom número de questões que podem ser reunidas numa trilogia: o concílio, a Missa, o Papa. Estava-se no direito de esperar de Dom Lefebvre, Bispo, Sucessor dos Apóstolos, membro da Igreja docente, que ele trouxesse esclarecimentos sobre esses assuntos. Sua ação tornava este dever ainda mais urgente. Ora, paradoxalmente, a argumentação que ele desenvolveu nestes últimos anos se caracteriza com frequência por seu caráter difuso, por vezes mesmo confuso. No que se refere principalmente ao concílio e ao papa, Dom Lefebvre quase falou de tudo, disse tudo e o contrário de tudo, das teses mais complacentes com respeito à apostasia conciliar até as teses mais severas. Como praticamente todos aqueles que foram os primeiros a opor-se ao Vaticano II, Dom Lefebvre começou agindo sem outro motivo que o do instinto da fé[32]. Era normal. Mas ele não fez esta primeira boa reação ser seguida de um esforço de esclarecimento doutrinal. Ele adora repetir aos seus objetores que ele não mudou. Nesse ponto, em todo o caso, isso é verdade. Ele não tem hoje justificativa diferente daquela que ele tinha ontem. Mas, de legítima que ela era na ocasião, essa justificativa tornou-se o imutável álibi de uma práxis aberrante. Mesmo as circunstâncias mais prementes – pensa-se, em particular, nos acontecimentos do ano de 1976 – não decidiram Dom Lefebvre a tomar as coisas a sério. Ele por vezes fez declarações tonitruantes, mas acabou sempre recusando-se a dar testemunho da fé quando as circunstâncias exigiam isso dele.
A justificativa de uma práxis
Desde que criou seu seminário, Dom Lefebvre dá à sua empreitada uma justificativa que se tornou, a partir daí, um leitmotiv: o Concílio Vaticano II precipitou a Igreja numa crise sem precedentes; importa antes de tudo conservar a fé, mantê-la pela missa, os sacramentos, o catecismo; para isso, cumpre formar padres atendo-se ao que a Igreja sempre fez; se permanecemos fiéis à Tradição, não nos arriscamos a nos enganar. “Nós nos atemos firmemente a tudo o que foi crido e praticado na fé, nos costumes, no ensinamento do catecismo, na formação sacerdotal e na instituição eclesiástica pela Igreja de sempre e codificado nos livros publicados antes da influência modernista do concílio, no aguardo de que a verdadeira luz da Tradição dissipe as trevas que obscurecem o céu da Roma eterna. Fazendo isso… nós estamos convictos de permanecer fiéis à Igreja”[33]. “É por isso que eu faço um seminário: para haver padres bons e padres santos, e para a Igreja continuar. É por isso que o bom Deus me pôs neste caminho”[34]. Como se vê, Dom Lefebvre deixa para outros a preocupação de dissipar as trevas e se coloca, de cara, numa perspectiva unicamente defensiva: “Meus colaboradores e eu próprio não trabalhamos contra ninguém, contra pessoas, contra instituições. Nós trabalhamos para construir, para continuar o que a Igreja sempre fez, e nada mais. Não somos ligados a nenhum movimento, a nenhum partido, a nenhuma organização particular. Nós somos ligados à Igreja Católica Romana e nós queremos continuar o sacerdócio da Igreja Católica e Romana. Nada mais… Nós queremos fazer uma obra da Igreja”[35]. É preciso dar o braço a torcer que o argumento de Dom Lefebvre é sedutor. Nos momentos de confusão, efetivamente, ater-se ao que a Igreja sempre ensinou e sempre fez é, mais do que nunca, necessário e é garantia de não se extraviar. Mas, por mais sedutor que seja, caso se detenha aí, esse argumento é insuficiente. Ele tem, especialmente, como consequência imediata introduzir uma questão grave. A Tradição não pode ser concebida, por um católico, à margem do Magistério vivo, exercido pelo colégio dos bispos, exercido de modo primacial pelo Papa. Dom Lefebvre apela à Tradição contra o Vaticano II, contra a quase totalidade dos bispos, contra o “papa”. Essa atitude tem ar de revolta. Se ela é um direito, então cumpre absolutamente assegurar-lhe os fundamentos teóricos. Por outro lado, apelar à Tradição contra os inovadores traz consigo o dever de combatê-los, dever ainda mais premente para um bispo, especialissimamente preposto à defesa da fé. Que outros bispos não tenham feito, por ora, o que convém, em nada escusa a apatia de Dom Lefebvre. Contentar-se com fazer o que sempre se fez no passado, contentar-se com formar padres como se os formou no século XX, com os brilhantes resultados que se conhece, tudo isso é sem proporção com a gravidade da situação. Dá até calafrios só de pensar que os homens do Concílio de Trento pudessem ter tido a linguagem de Dom Lefebvre. Enfim, se é verdade que a formação dos sacerdotes é coisa indispensável, é preciso também previamente que eles tenham o direito e a possibilidade de exercer seu ministério. Contemplar que eles possam fazê-lo de forma duradoura chocando-se contra a hierarquia oficial é escolher a via do cisma, a menos que se tenha demonstrado a ilegitimidade desta última e que se trabalhe pela restauração da verdadeira hierarquia católica. Contemplar que eles possam fazê-lo dentro do quadro do pluralismo conciliar é alimentar-se de ilusões. Ilusão, porque nunca a igreja conciliar concederá a Dom Lefebvre um reconhecimento de direito, senão ao preço de concessões exorbitantes. Ilusão também de pensar que a ordem na Igreja possa ser restaurada pelos fiéis e alguns padres – ainda que padres da Fraternidade São Pio X – à margem da hierarquia e batendo de frente contra impostores solidamente estabelecidos, cuja impostura aqueles se abstêm de denunciar. Dom Lefebvre acalenta sucessivamente essas duas ilusões. A segunda, sobretudo, reaparece incessantemente no discurso dele: “É consolador de constatar que, no mundo católico, o senso da fé dos fiéis rejeita essas novidades e adere à Tradição. É a partir daí que brotará a verdadeira renovação da Igreja. E é porque essas novidades foram introduzidas pelo clero infestado de modernismo, que a obra mais urgente, mais necessária na Igreja é a formação de um clero profundamente católico. Nós nos entregamos a essa obra”[36]. “Os bispos decidiriam os lugares e horários reservados a essa Tradição. A unidade será recuperada imediatamente ao nível do bispo do local. Em contrapartida, quantas vantagens para a Igreja: a renovação dos Seminários, dos mosteiros; um grande fervor nas paróquias. Os bispos ficariam estupefatos de recuperar em poucos anos um élan de devoção e de santificação que eles acreditavam desaparecido para sempre”[37]. Como é que Dom Lefebvre pode realmente acreditar que a Missa de São Pio V dita nas igrejas conciliares arrebataria o assentimento dos fiéis? Como ele pode realmente acreditar que os fiéis abandonariam espontaneamente uma moral laxista por uma moral exigente? Como pode ele realmente acreditar que a verdade, posta em pé de igualdade com o erro, acabaria por triunfar? Aliás, acredita ele verdadeiramente nisso? Dom Lefebvre, que se quer católico e que, além disso, é bispo, sabe que a Igreja é Apostólica e que é inconcebível que a renovação da Igreja possa se fazer sem os bispos, a fortiori contra eles. Contudo, malgrado todas as observações que lhe foram feitas, ele não cessa de se entrincheirar atrás de sua resolução de “formar padres como a Igreja sempre fez”. Ele diz frequentemente, em apoio de sua obra, que os santos não agiram de outro modo[38]. Para além do caráter manifestamente falso do argumento, que se saiba a imitação dos santos não consiste em reproduzir com exatidão seus fatos e gestos, mas em imitar suas virtudes, nas circunstâncias escolhidas para nós pela Providência. Todo o mundo sabe que Dom Lefebvre foi comparado a Santo Atanásio. Ele próprio citou o santo, para justificar seu comportamento[39]. Mas, se Santo Atanásio tivesse se contentado em formar sacerdotes, salvas as promessas feitas por Nosso Senhor à Sua Igreja, o mundo seria ariano. A imutável justificativa de Dom Lefebvre é, portanto, irrisória em vista da importância dos atos postos por ele e da gravidade da situação. Ela é irrisória, mas cômoda, para se esquivar de um dever que urge. Ela também é sedutora. Muitos, aliás, se deixaram enganar, assim como foram enganados, pelas declarações diversas e contraditórias de Dom Lefebvre, tão diversas que cada qual pôde encontrar nelas satisfação.
Declarações de circunstância
Dom Lefebvre escolheu, portanto, uma vez por todas, uma linha de conduta, por mais espantosa e aberrante que ela seja. Contudo, um rápido exame das declarações dele desde o Vaticano II poderia deixar pensar que, pelo contrário, Dom Lefebvre mudou, e isso em múltiplas ocasiões. Depreendem-se delas, com efeito, elementos bem contraditórios.
Um dia, Dom Lefebvre fustiga o Concílio Vaticano II: “Nós recusamos, pelo contrário, e sempre recusamos seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no Concílio Vaticano II e, após o Concílio, em todas as reformas que dele emanaram”[40]. Ele acrescenta: “é um erro dizer que as reformas não têm seu princípio no Concílio”[41]; “as reformas e orientações oficiais pós-conciliares manifestam, com mais evidência do que não importa qual escrito, a interpretação oficial e desejada do Concílio”[42]; e ainda: “é, portanto, impossível para todo católico consciente e fiel adotar essa Reforma e submeter-se a ela, de qualquer maneira que seja”[43]. Num outro dia, Dom Lefebvre declara-se pronto a “assinar uma declaração aceitando o Concílio Vaticano II interpretado de acordo com a Tradição [selon la Tradition]”[44]. Um dia ele verbera contra “a missa de Lutero” que “supõe uma outra concepção da religião católica, uma outra religião”[45]. Ele chega mesmo a precisar os motivos de sua oposição, de maneira categórica: “Que ninguém se engane, não se trata de uma contenda entre Dom Lefebvre e o papa Paulo VI. Trata-se da incompatibilidade radical entre a Igreja Católica e a Igreja Conciliar, a missa de Paulo VI representando o símbolo e o programa da igreja conciliar”[46]. Ele sublinha os graves perigos que a missa nova faz correr: “A missa católico-protestante, fonte doravante envenenada que produz estragos incalculáveis… A Missa ecumênica conduz logicamente à apostasia…”[47]. Mas, um outro dia, Dom Lefebvre não cora de contemplar a coabitação dos dois ritos. Ele distingue as “boas”novas missas das más. E ele não exclui que se assista à missa nova para satisfazer ao preceito dominical: “Eu penso que não se deve abandonar todo ato religioso público, e consequentemente, se a missa que é celebrada o for de modo não sacrílego e respeitoso, penso que é bom assistir a essa missa no domingo, para cumprir o preceito dominical”[48].
Um dia, Dom Lefebvre chama a igreja conciliar, sua hierarquia e principalmente seu “papa” de cismáticos: “Todos aqueles que cooperam com a aplicação dessa sublevação, aceitam e aderem a essa nova igreja conciliar… entram em cisma”[49]. Num outro dia, ele se rebaixa a mendigar desses “cismáticos” um reconhecimento que ele continua esperando: “Santíssimo Padre, pela honra de Jesus Cristo, pelo bem da Igreja, pela salvação das almas, nós vos conjuramos a dizer uma única palavra, uma palavra só…: ‘Liberdade’ [‘Laissez faire’]”[50]. Devemos interromper aqui o recenseamento de todas as incoerências de Dom Lefebvre, para tentar explicá-las. Uma primeira ideia vem ao espírito. Os acontecimentos teriam impelido Dom Lefebvre a esclarecer suas posições. Nada mais natural, então, que suas declarações mudassem. O contrário disso é que seria inquietante. Só que essa explicação não se sustenta. Mostramos que a obra de Dom Lefebvre repousa sobre uma justificativa que não mudou. O principal interessado reivindica o fato: “Penso poder dizer que não variei de opinião sobre esses assuntos”[51]. Por outro lado, um mínimo de análise de suas declarações mostra que, numa mesma circunstância, ele é capaz de dizer uma coisa e o seu contrário: Assim, por exemplo, falou-se bastante do “verão quente” de 1976. E o fato é que, sob a pressão dos acontecimentos, o tom elevou-se um pouco. Em 29 de julho, sob o golpe da suspensão a divinis, Dom Lefebvre declara: “Essa igreja conciliar é uma igreja cismática, porque ela rompe com a Igreja Católica de sempre… Essa igreja conciliar é cismática, pois ela tomou como fundamento de sua atualização princípios opostos aos da Igreja Católica.” “A igreja que afirma tais erros é, ao mesmo tempo, cismática e herética. Logo, essa igreja conciliar não é católica”. Ora, menos de uma semana depois, falando do concílio, ele diz: “Eu não o rejeito em bloco. Eu aceito o concílio na medida em que ele é conforme à Tradição”[52]. Melhor ainda, numa mesma declaração ao jornal Le Figaro, ele realiza uma façanha. Depois de haver reiterado suas declarações bem duras de 29 de julho e levantado a questão da legitimidade de Paulo VI, ele conclui: “Nós estamos, portanto, bem decididos a continuar nossa obra de restauração do sacerdócio católico, aconteça o que acontecer, convictos de que nós não podemos prestar um melhor serviço à Igreja, ao papa, aos bispos e aos fiéis. Que se nos deixe fazer a experiência da tradição”[53]. Alguns quiseram ver nessas incoerências um comportamento tático. Se fosse verdadeiramente esse o caso, o comportamento já seria escandaloso. Na realidade, tudo isso prova que Dom Lefebvre não tem doutrina nenhuma. Fiel à linha que ele escolheu, ou seja, levar adiante impunemente a sua obra, ele reage aos acontecimentos susceptíveis de ameaçar essa obra, para protegê-la e justificar-se. Seria esta uma indução apressada? Lamentavelmente, não. Bastaria, para se convencer disso, recordar-se brevemente da história da Fraternidade São Pio X.
Na origem dela, Dom Lefebvre declara querer fazer o que sempre fez a Igreja. Mas, como não é verdadeiramente tradicional, na Igreja, agir contra um concílio ecumênico, ele recorre à noção de concílio “pastoral”, julgando assim contornar a infalibilidade do Romano Pontífice e da Igreja: “Nós não podemos mudar mais nada no Concílio de Trento, ao passo que o Concílio Vaticano II foi um concílio pastoral que justamente evitou comprometer-se com definições dogmáticas, e é por isso que ele pôde ser isso que ele foi”[54]. Advêm os acontecimentos dos anos de 1975 e 1976. As diabruras vindas de Roma [sic] irritam Dom Lefebvre. A obra dele é ameaçada. Aí então, ele faz as declarações duríssimas que se conhece. Terá Dom Lefebvre aprofundado as graves questões doutrinais que ele não tem como não haver se colocado? Terá ele afinal compreendido que cumpria romper com a seita conciliar? Vai ele enfim cumprir o seu dever de bispo? Na realidade, nada disso tudo. Dom Lefebvre não mudou. As declarações dele são declarações de circunstância[55]. A prova disso é que, uma vez entabuladas negociações com Paulo VI, ele regressará a discursos mais lenitivos. A obra dele tem a oportunidade de se perpetuar na quietude. Mais tarde, certos sacerdotes e seminaristas, que não se deixam engabelar por João Paulo II mais do que por Paulo VI, se inquietam com a questão do Papa e com as justificativas da ação de Dom Lefebvre. Novamente, sua obra está em perigo. Ele faz, então, com que seja publicado o seu pensamento “definitivo” sobre os assuntos candentes e expulsa os chatos. E, quando a Union pour la Fidélité se empenha em mostrar a incoerência que há em reconhecer João Paulo II como papa e, ao mesmo tempo, desobedecer-lhe em tudo[56], ele lança na arena “teólogos” que se apressam em sustentar uma heresia sobre o Magistério ordinário do Papa e da Igreja, de fato reiteração das velhas heresias protestante e galicana. Assim, Dom Lefebvre não acolheu os acontecimentos, queridos ou permitidos pela Providência desde a fundação de sua Fraternidade, como ocasiões de procurar a verdade, de se reassenhorear de si mesmo e de cumprir o seu dever de bispo, mas tão somente como agressões à sua obra. A diversidade dessas agressões explica suas declarações, declarações contraditórias, mas tendo como ponto comum haverem sido ditas com o único objetivo de proteger a quimera que, ao arrepio e contra tudo, ele decidiu perseguir. Assim fazendo, Dom Lefebvre enganou muita gente, e principalmente os católicos cuja compreensão levou algum tempo para acontecer. Dom Lefebvre visava mais ao bem da obra dele que ao bem da Igreja. Só que, enganando os fiéis, dos quais ele, aliás, se serviu abundantemente, e sem os quais a Fraternidade São Pio X não seria nada hoje, – ele se enganou a si próprio, recusando-se em várias ocasiões a confessar a fé.