Pelo Rev. Pe. Noel Barbara
Fortes in Fide, n.º 10 da nova série, 90 pp., Maio de 1982
Na sua declaração de 8 de novembro de 1979, Dom Lefebvre decidiu tratar como pária a quem quer que recusasse segui-lo nas transações dele com a nova igreja. Essa declaração marcou o termo de uma longa evolução e removeu toda qualquer dúvida quanto às intenções de seu autor. No passado, ele aparecera como testemunha da fidelidade católica frente ao Vaticano II. Doravante, ele apresentou-se como militante por um direito de tendência conservadora no seio do organismo que ele, até então, qualificava de igreja cismática[1]. A Union pour la Fidélité [União pela fidelidade, de sacerdotes, religiosos e leigos católicos] foi fundada imediatamente após essa virada de casaca: nessa atmosfera de liquidação total, que foi aceita com indolência quase generalizada, era preciso que fosse mantida a qualquer preço a voz da verdade católica. Múltiplas iniciativas, em privado e publicamente, foram empreendidas para tentar trazer de volta à razão Dom Lefebvre e sua Fraternidade. Infelizmente, foi trabalho perdido, pois nos defrontamos constantemente com um desdém silencioso, salvo raras respostas, mas todas as vezes bem injuriosas[2]. Nas páginas de Forts dans la Foi [revista Fortes na Fé], multiplicamos as explicações, empenhando-nos em encarar o problema sob todos os aspectos, não hesitando em repensar todas as questões desde seus fundamentos[3]. Desperdício de tempo! A Fraternidade São Pio X, assim como seus aliados de coração ou de razão, ignorou com soberba todo esse esforço. Algumas exceções vieram interromper esse silêncio: as laboriosas tentativas de dar uma aparência teórica à posição praticamente cismática de Dom Lefebvre e, como corolário, uma aparência de refutação à doutrina católica que tivéramos ocasião de recordar. Ampla ressonância foi dada a essas produções, todavia lamentáveis[4]. Diante dessas etapas teóricas na via do cisma, reiteramos nossos alertas[5], mas, também aqui, completamente debalde. E, neste ínterim, tudo parece dever continuar como no passado. Os católicos tradicionalistas conservam seus habitozinhos, e a Fraternidade São Pio X se desenvolve, e com ela uma nova religião, à margem não só da igreja oficial que não é a Igreja[6], mas também e sobretudo à margem da Igreja Católica. Tudo isso pode durar ainda muito tempo? Seguramente que não. Para nós, em todo o caso, chegou a hora de pôr um ponto final nessa questão. Fizemos tudo que podíamos para ser pacientes e compreensivos, talvez mesmo se poderia censurar-nos, quando muito, haver sido excessivamente pacientes, mas agora convém falar claro, ou seja trazer à luz, de maneira sistemática, a natureza e a gravidade da ação de Dom Lefebvre, indicar as obrigações que daí resultam para todos, e tirar disso as consequências práticas. É para realizar esse esclarecimento que redigimos o presente número. Claro que sabemos que ele será acolhido por alguns, como todo o restante de nossos escritos, com desprezo e sarcasmos. Mas isso não nos impedirá de difundi-lo, por uma série de razões. Antes de tudo, porque devemos dizer a verdade, para honra do Senhor e de Sua Igreja, e para o bem dos fiéis desencaminhados. Nossa primeira e principal ambição é agradar a Deus. Assim fazendo, sabemos que agradaremos também a todos os que amam a verdade, e nossos fiéis assinantes fazem parte destes, e com eles muitos outros, que apreciariam ter mais elementos para compreender o que se passa. É para eles que escrevemos, para todos aqueles que a situação atual angustia ou deixa na perplexidade. Nós escrevemos também, nem é preciso dizer, para Dom Lefebvre e para aqueles que se ligaram a ele. Julgamos que um reflexo de grupo os fará recear de ler nossas linhas, e que preferirão a fuga para a frente nas suas quimeras. Não obstante, pode acontecer que alguns deles ajam diferentemente e tomem conhecimento do que, para eles, de fato representa um último apelo a voltar ao bom senso. Que saibam que não somos seus inimigos. Fazemos votos simplesmente que os elementos aqui reunidos provoquem neles um choque salutar: a verdade nem sempre é agradável de ouvir, mas é libertadora. Escrevemos ainda para todos aqueles que tiveram, até aqui, uma visão exterior e bem imperfeita do “caso Lefebvre”, segundo a expressão consagrada pela imprensa: católicos que permaneceram na incerteza, opositores timoratos, e mesmo responsáveis, em níveis diversos, da nova igreja. Para uns como para os outros, fazemos questão de dar a conhecer que a ação de Dom Lefebvre não pode ser confundida com a confissão da fé católica face à revolução introduzida pelo Vaticano II. Por fim, escrevemos muito especialmente para todos aqueles que, sem ser diretamente subordinados a Dom Lefebvre, se fizeram seus aliados e partidários resolutos. Queremos nos referir a uma boa parte dos tradicionalistas, e sobretudo, claro, daqueles que os conduzem mais ou menos, desses famosos líderes de carisma, hoje um pouco postos de escanteio pelos elementos mais militantes da Fraternidade São Pio X. Até o presente, eles se mostraram ferozmente hostis a todas as nossas iniciativas, ciosos de conservar para conosco o mais estrito bloqueio, solidários a Dom Lefebvre até no pior[7]. A priori, o presente número será, portanto, ignorado por eles, e chegarão mesmo a dar a palavra de ordem de não o ler e de nem mesmo tocar nele – vai saber, é mais seguro. Mas nada disso, para falar a verdade, nos impressiona muito. Sabemos que seremos lidos e que a nossa mensagem será ouvida.
História
Como tantos outros bispos conservadores, Dom Lefebvre constatou rapidamente que o Vaticano II se engajara num caminho que não é católico: “Durante o Concílio, havia a consciência do perigo de não mais afirmar a fé como antes”[8]. Mas, como tantos outros também, ele se deixou capturar pelas armadilhas dos inovadores[9]. Durante as duas primeiras sessões, ele exerce um papel mais apagado, intervindo o mais das vezes para pôr em evidência os aspectos heterodoxos e ambíguos dos textos conciliares. No final da segunda sessão, ele dirige, com muitos outros bispos, uma carta a Paulo VI, suplicando a este último “ficar atento às palavras equívocas que se encontram nos textos do concílio”. No entanto, simultaneamente, Dom Lefebvre dirige à atenção dos católicos um resumo claramente positivo dos trabalhos conciliares, apoiando-se amplamente no discurso pronunciado por Paulo VI no encerramento da segunda sessão[10]. Além de má análise dos fatos, cumpre ver aí sem dúvida uma expressão de grande confiança no papa: “Nós vivemos momentos em que o sobrenatural, em que a ação do Espírito Santo, é visível, tangível. Interrogue-se os observadores do Concílio; eles não encontrarão termos demasiado expressivos para nos congratular e nos invejar de termos um Bispo ao qual foi dado o poder supremo sobre a Igreja, um Bispo ao qual nos dirigirmos quando a dúvida ou as trevas nos oprimem e em quem temos a garantia de encontrar a Luz”[11].
Na sequência, diante da amplitude que tomou a subversão, Dom Lefebvre, em companhia de uma pequena minoria dos bispos, tenta organizar a oposição. Ele se torna um dos principais animadores do Coetus Internationalis Patrum. Mas o C.I.P., não podendo ou não sabendo reagir como hoje se vê que haveria de ter feito, só logrou obrigar os inovadores a velar melhor suas heresias. No fim do concílio, Dom Lefebvre só recusou dois textos: a constituição sobre a Igreja no mundo deste tempo, Gaudium et Spes, e a declaração sobre a liberdade religiosa, Dignitatis Humanae. Ele aceitou todos os outros, particularmente a constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, o decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio, e a declaração sobre a Igreja e as religiões não cristãs, Nostra Aetate.
Nascimento de Écône
Para Dom Lefebvre, Superior Geral dos Padres do Espírito Santo desde 1962, o pós-concílio começa em relativo silêncio. Todavia, em diversas ocasiões, ele deplora os efeitos destrutivos da aplicação das reformas conciliares. Em dezembro de 1966, respondendo a uma investigação efetuada pelo Cardeal Ottaviani, ele explica que a dúvida e a confusão se introduziram por toda a parte e que a causa disso é o próprio concílio: “De maneira praticamente generalizada, onde o Concílio inovou ele abalou a certeza de verdades ensinadas pelo Magistério autêntico da Igreja como pertencentes definitivamente ao tesouro da Tradição”[12]. Mas, como numerosos católicos fiéis na época, ele confia em Paulo VI para endireitar a situação. Em 1968, a reforma conciliar toca-o diretamente. Paulo VI exige que as congregações religiosas realizem capítulos gerais extraordinários para adaptar-se às normas do aggiornamento. Trata-se, especialmente, de retirar a autoridade dos superiores para confiá-la a equipes de dirigentes. Os espiritanos votam a favor dessa revolução, e Dom Lefebvre vai queixar-se disso em Roma. Ali, ele não obtém nada, mas constata que todos essas reviravoltas são caucionadas por Paulo VI. Sem protestar publicamente, ele apresenta então sua demissão e começa o que poderia ter se tornado uma aposentadoria antecipada. Como muitos outros bispos, ele teria podido, com efeito, terminar aí sua carreira, desenganado, no anonimato e no esquecimento. Mas bem depressa a Providência o impele a sair da inação. No ano mesmo de sua demissão, seminaristas franceses que a degradação acelerada dos seminários inquieta vêm encontrar o prelado, cuja preocupação particular com a formação dos sacerdotes eles conhecem. Ele os orienta para o Seminário Francês de Roma, dependente dos Padres do Espírito Santo. Essa experiência não dando os resultados esperados, Dom Lefebvre decide ocupar-se pessoalmente das vocações sacerdotais. Como ele próprio admite, ele se lança na empreitada sem haver previamente concebido algum plano de ação: “Eu nunca tive a intenção bem delineada de antemão de agir assim, eu nunca disse a mim mesmo: eu farei um seminário, eu o farei de tal maneira, eu o farei em tal lugar”[13]. Sem refletir ulteriormente sobre a situação da Igreja e os meios de remediá-la, ele quer simplesmente responder às necessidades das vocações fazendo novamente o que ele sempre fez.
A partir de junho de 1969, ele funda uma casa para seminaristas em Friburgo, na Suíça, com a autorização e os encorajamentos do bispo do lugar, Dom Charrière. Prevê-se que os candidatos ao sacerdócio façam seus estudos na universidade local, suposta ainda tradicional. Ao mesmo tempo e para dar conta dos pedidos de admissão, Dom Lefebvre adquire uma casa em Écône, uma vilazinha do Valais. Bem rápido ele constata que o ensino dado em Friburgo também se afasta da doutrina católica, e ele se decide então a fazer de Écône o seu próprio seminário[14]. Antes, ele deu à sua obra o estatuto canônico de uma fraternidade, sociedade devida comum sem votos, a exemplo das sociedades de missões estrangeiras, composta de sacerdotes, de religiosos e de religiosas. O decreto de ereção da Fraternidade Sacerdotal Internacional São Pio X é assinado por Dom Charrière a 11 de novembro de 1970. Em fevereiro de 1971, uma carta de encorajamento do cardeal Wright, prefeito da Congregação do Clero, vem confirmar a aprovação da hierarquia para essa iniciativa, tomada no respeito às leis e às autoridades.
Um contexto ambíguo
As circunstâncias contribuirão muitíssimo para a projeção da Fraternidade. Em 1969 é promulgado o novo Ordo Missae, sem tardar imposto em todos os lugares de culto e que provoca vivíssimas reações de recusa em vários países, muito particularmente em França. A nebulosidade jurídica que acompanha a introdução da nova missa, a publicação do Breve Exame Crítico assinado pelos cardeais Ottaviani e Bacci, confortam os padres e os fiéis na sua decisão de recusar o novoOrdo Missae e de manter por conta própria a celebração da Missa de São Pio V. Eles se organizam, criam associações – em sua maioria, chamadas Associações São Pio V – e, com o tempo, constituem um meio social específico. No início, Dom Lefebvre não tem participação alguma na aparição desse movimento, mas muito depressa ele se vê arrastado por ele. Com efeito, os centros de Missa tradicional se multiplicam, as pessoas se voltam espontaneamente para ele e o impelem a agir. Sua imagem pública faz dele o bispo indicado para conduzir a oposição à reforma litúrgica. Conhece-se o seu passado de conservador, sabe-se que ele foi um dois mais atuantes opositores ao concílio. Reivindica-se a Missa, reivindica-se padres, e eis que ele se propõe a conservar a Missa de sempre e que ele funda um seminário tradicional. E, ainda por cima, ele é aceito pela hierarquia. Ele aparece como o homem providencial, e não se vê razão alguma para não recorrer a ele e para não o impulsionar a seguir em frente. Dom Lefebvre polariza, então, todas as atenções e parece querer responder aos desejos dos opositores da nova missa. Na realidade, há desde a origem desse caso um mal-entendido, ao menos uma certa ambiguidade. De sua parte, Dom Lefebvre clama em toda ocasião que ele está regularizado com o que ele chamará em seguida de “a igreja oficial”. Ele chega até mesmo a sustentar que ele é o único a aplicar as diretrizes do Vaticano II para a formação do clero. Ele apresenta a Fraternidade São Pio X como uma obra destinada a manter o essencial, a constituir uma ilhota de catolicidade na qual, em redor de sacerdotes de verdade, serão conservados a Missa, os sacramentos e o catecismo, e na qual a Igreja, tão logo apaziguada a tempestade, encontrará uma base sólida de reestruturação. Por seu turno, os padres e os fiéis que foram os primeiros a mobilizar-se para defender a verdadeira religião veem em Dom Lefebvre uma testemunha e um exemplo contra as novidades do pós-concílio. Claro que, nessa época, ninguém calcula ainda a gravidade da situação. Os elementos de apreciação não faltam, mas a conservação da Missa mobiliza todas as energias. Contudo, já se compreende que o Vaticano II deve ser rejeitado em bloco, interroga-se sobre a responsabilidade de João XXIII e, sobretudo, de Paulo VI. Espera-se muito, portanto, de Dom Lefebvre, mais do que o que ele próprio declara querer fazer. Numa tal situação, as dificuldades não tardam a surgir. As associações que trabalham pela preservação da Missa se inquietam com a frouxidão de Dom Lefebvre. As declarações dele deixam-nas na mesma fome em que estavam. Não cessando de afirmar que ele quer somente fazer o que a Igreja sempre fez, ele parece desinteressar-se do que se passa em Roma e dos problemas de fundo postos pelo Vaticano II. Quando alguns estudos vêm fundamentar a recusa da nova missa, ele não manifesta por eles nenhum interesse particular. Por vezes, inclusive, ele se mostra hostil, sem, no entanto, argumentar. Os que esperam o apoio dele para suas obras se surpreendem de constatar que o auxílio mútuo só funciona no sentido favorável à Fraternidade São Pio X[15]. Numa palavra, já nesta época Dom Lefebvre não responde plenamente à esperança dos católicos fiéis. Foi ele, porém que, num primeiro momento, mobilizou grande número de consciências católicas.
As primeiras dificuldades
No curso de seus primeiros anos de existência, a Fraternidade São Pio X conhece um incremento regular. O seminário de Écône atrai gente de todos os horizontes, ainda que a contribuição principal continue sendo dada pelos ambientes tradicionalistas. A partir de 1973, novas casas são fundadas na Itália, na França, nos Estados Unidos. Tudo parece, portanto, ir de vento em popa. Satisfeito com a sua obra, Dom Lefebvre está otimista. Ele está convicto de que a hierarquia conciliar o apoia, na medida em que o sucesso do seminário dele não para, segundo ele, de suscitar, um pouco por toda a parte, senão admiração, ao menos vivíssimo interesse. Em outubro de 1973, ele declara triunfalmente: “Sem dúvida, nosso resoluto embasamento na Tradição da Igreja provoca, da parte de certos bispos, reservas. Pois aparecemos como refratários ao aggiornamento conciliar. Sem embargo, o sucesso assaz singular da Fraternidade São Pio X levanta problemas. Por que os jovens que têm uma vocação séria se apresentam tão numerosos a este seminário, enquanto a maioria dos seminários se esvazia? De ano em ano, sentimos que a oposição inicial se transforma em curiosidade e surpresa. Já diversos bispos vieram ou nos escreveram para nos pedir padres. Cinco pedidos chegaram ao longo dos últimos meses, solicitando-nos para o envio de professores de seminário maior e com ofertas de paróquias. De Roma, recebemos indultos que permitem concluir que, nos fatos, nossa Fraternidade tem o direito de incardinar, embora seja apenas de direito diocesano. Mais ainda, recebemos de um intermediário bem-posicionado a garantia de que o Santo Padre abençoava o nosso apostolado”[16]. Com o recuo, essa declaração aparece bem ridícula e perfeita para embalar com ilusões os mais ingênuos. Mas não resta dúvida de que, na época, Dom Lefebvre acreditou que sua Fraternidade, alastrando-se, podia ser reconhecida por Paulo VI. Era tomar seus desejos por realidades. Já em 1972, em seguida à Assembleia Plenária do episcopado francês, o termo ‘seminário selvagem’ foi aplicado a Écône. Mas os aborrecimentos começam de verdade em novembro de 1974, na forma de uma visita canônica preconizada por uma comissão que Paulo VI nomeara, composta pelos cardeais Garrone, Wright e Tabera. As declarações escandalosas dos visitadores, o fato de ser tratado daquele jeito, provocam em Dom Lefebvre surpresa e cólera. Ele reage violentamente e ataca sem deferência a “Roma conciliar” na qual ele havia até então esperado. Numa declaração feita em Roma a 21 de novembro de 1974, ele afirma sua recusa de “seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no concílio Vaticano II e, após o concílio, nas reformas que dele emanaram”. Pela primeira vez Dom Lefebvre é levado a proclamar verdadeiramente a incompatibilidade radical entre a Igreja de Jesus Cristo e a do Vaticano II. De resto, Roma [sic] responde duramente. Em maio de 1975, os cardeais Garrone, Wright e Tabera informam Dom Lefebvre de que suas declarações são em todos os pontos inaceitáveis. Diante de sua recusa de retratar-se, a comissão cardinalícia põe fim à existência “legal” do seminário.
A partir daí, a Fraternidade São X encontra-se na “ilegalidade”. Seu chefe nem por isso fica menos decidido a continuar. Todavia, à parte algumas considerações sobre o caráter ilegal das sanções que o atingem, Dom Lefebvre não aproveita a ocasião que lhe é dada pela Providência para responder às questões que se impõem, em particular aquela da jurisdição dos que o perseguem. Para ele, as dificuldades se reduzem a um dilema: “ou obedecer com o risco de perder a fé, ou desobedecer e trabalhar pela preservação e continuação da Igreja”[17]. Ele não cessa, então, de se desviar da questão que todos os católicos fiéis se colocam: Paulo VI é papa? Ele a esquiva propondo uma solução que opõe Tradição e Magistério vivo: “Nós aplaudimos o Papa eco da Tradição e fiel à transmissão do depósito da Fé. Nós aceitamos as novidades intimamente conformes à Tradição e à Fé. Nós não nos sentimos ligados pela obediência a novidades que vão contra a Tradição e ameaçam nossa Fé” (ibid.). Mesmo ele não fazendo dela um absoluto, essa teoria de inspiração protestante se torna o fundamento da linha de conduta de Dom Lefebvre. Na prática, ele continua a dizer-se em comunhão com a hierarquia conciliar, ele dialoga com ela, mas cotidianamente ele não leva em conta nenhuma a autoridade dela. Isso se traduz, especialmente, em numerosas irregularidades canônicas. A Fraternidade São Pio X implanta seus priorados um pouco por toda a parte, sem se incomodar em nada com a jurisdição local dos bispos a postos. Esse tipo de atitude deixa um mau presságio sobre o futuro. Mas os mais lúcidos esperam ainda que os acontecimentos venham a conduzir Dom Lefebvre a enxergar as coisas de forma mais realista. Em 1976, eles creem que esse momento chegou.
A ocasião perdida
Não obstante a altercação de maio de 1975, Dom Lefebvre ordena três padres em 29 de junho do mesmo ano. Durante os meses seguintes, ele tenta reatar com a igreja conciliar e busca obter uma audiência com Paulo VI, convicto de que poderá fazer valer seu bom direito e suas boas intenções. Mas em vão, pois Roma [sic] não quer saber de diálogo, muito pelo contrário. Ela procura dobrar “o bispo rebelde” e o ameaça de sanções. Paulo VI proíbe-o formalmente de proceder a novas ordenações. A prova de força do verão de 1976 se prepara. Uma vez mais, a Providência põe Dom Lefebvre contra a parede. A 29 de junho, malgrado todas as objurgações, ele procede às ordenações. Paulo VI responde em 1.º de julho fulminando os padres ordenados com “suspensão a divinis”. A 29 de julho, a mesma sanção atinge o prelado de Écône, que responde no mesmo dia por uma declaração sem equívoco:“Essa igreja conciliar é uma igreja cismática, pois ela rompe com a Igreja Católica de sempre”. O mês de agosto é o mês das declarações estrepitosas. Dom Lefebvre não cessa de pôr a ênfase na heresia e no cisma do Vaticano II e da igreja deste último. Contudo, ao mesmo tempo, ele fala de interpretar o concílio no sentido da “Tradição” e pede já “que se o deixe fazer a experiência da Tradição”.
A missa de Lille, hoje famosa, é por assim dizer imposta a Dom Lefebvre. Originalmente, ele não quer fazer dela uma manifestação pública. Mas de todas as partes escrevem a ele dizendo que comparecerão. Então, ele recupera a operação a seu proveito, agrega todas as associações, e a missa de Lille torna-se um símbolo. Apesar de todas essas flutuações, o tom é de firmeza. Muitos querem crer que o confronto decisivo chegou, que o novo Atanásio enfim se ergueu para lançar o anátema contra Paulo VI e a igreja deste. Mas a missa de Lille não passa de fogo de palha. Dom Lefebvre termina assim sua homilia: “Seria tão simples se cada bispo, na sua diocese, pusesse à nossa disposição, à disposição dos católicos fiéis, uma igreja e lhes dissesse: ‘Aí está a igreja de vocês’. Quando eu penso que o bispo de Lille deu uma igreja aos muçulmanos, não vejo por que não haveria uma igreja para os católicos da Tradição. E, definitivamente, a questão estaria resolvida. E é isso que eu pediria ao Santo Padre, se ele tivesse a bondade de me receber: ‘Deixai-nos fazer, Santíssimo Padre, a experiência da Tradição. Em meio a todas as experiências feitas atualmente, que haja ao menos a experiência daquilo que foi feito durante vinte séculos!’”. No que respeita a anátema, Dom Lefebvre pedia, em nome do ecumenismo e da liberdade religiosa, o direito comum para os tradicionalistas no seio da igreja conciliar. Não ousando acreditar nisso, os católicos fiéis quiseram ver nessas palavras uma manobra tática e se entregaram a interpretações piedosas. Mas, de fato, ao recusar-se assim ao testemunho que dele exigia a Providência, o bispo entra numa fase de compromissões e de contradições que o levaria longe. As consequências disso serão tanto mais vastas, quanto os acontecimentos de 1976 foram largamente repercutidos pela imprensa e tiveram como efeito fazer crer ao mundo que Dom Lefebvre era o único a opor-se ao Vaticano II[18].
Tentativas de negociação
O dia seguinte de Lille é a degradação acelerada. Em 5 de setembro, no final da primeira missa celebrada por um jovem sacerdote da Fraternidade, um padre italiano encontra Dom Lefebvre, graças à mediação de Michel de Saint-Pierre. Ele o persuade a escrever a Paulo VI. Em 11 de setembro, “o bispo rebelde” ajoelha-se aos pés deste último. Pede-lhe a liberdade de fazer a experiência da Tradição: “Só precisais dizer uma palavrinha”. Na saída da reunião, ele se espanta de esse encontro ter podido concluir-se em dois dias e declara: “Quem sabe não compreenderam que eu não estava só e se deram conta de que cerca de 52% dos católicos franceses compartilham dos meus pontos de vista? Talvez eles temam as desastrosas consequências de uma fratura”[19]. Na realidade, Paulo VI e os hierarcas da nova igreja, para os quais era difícil de excomungar um bispo fiel sem com isso dar prova de sua apostasia, neutralizam-no pelo diálogo. E Dom Lefebvre entra no jogo deles tanto melhor quanto sua recusa de ir ao fundo do problema o predispõe a isso. Cada uma das partes encontra aí satisfação. Para a Roma conciliar, o caso de Écône está, na realidade, terminado. Quanto a Dom Lefebvre, o diálogo permite-lhe salvaguardar sua obra, à qual ele está ligado acima de tudo. Finda o tempo da oposição. Começa o tempo da negociação. No entanto, por parte da nova igreja, não se cede um único centímetro de terreno. Dom Lefebvre reconhece isso de bom grado: “Nos fatos, não vemos nenhum sinal de retorno à tradição, mas, bem ao contrário, uma implementação do ecumenismo e do comunismo. Nunca as inovações mais inconcebíveis são publicamente repreendidas pela autoridade. Unicamente os que mantêm a fé católica são perseguidos e condenados”[20]. Mas esse truísmo não o demove de sua determinação. De resto, ao mesmo tempo que ele pretende negociar, ele multiplica seus priorados, confirma em todas as dioceses. Esse desenvolvimento ilude, e Dom Lefebvre, se comprazendo em dizer que o bem é difusivo de si, nunca deixa de pedir para ser oficialmente reconhecido, convicto de que a Tradição sobrepujará necessariamente o movimento nascido do concílio: “Para a Igreja universal, eu desejo como vós a coexistência pacífica dos ritos pré e pós-conciliares. Que se permita então aos padres e aos fiéis escolherem a qual ‘família de rito’ eles preferem aderir. Que se espere, em seguida, que o passar do tempo dê a conhecer o julgamento de Deus sobre o seu valor respectivo, de verdade e de eficácia salutar para a Igreja Católica e para toda a cristandade”[21]. O discurso desmobilizador do bispo dos tradicionalistas é assim que se começa a considerá-lo – faz crer a estes últimos que a provação está prestes a acabar.
Sucede então a morte de Paulo VI, rapidamente seguida pela de João Paulo I e pelo aparecimento de João Paulo II. Muito embora tudo indique que este último tem a intenção de completar a edificação da nova igreja, especialmente sua “encíclica-programa” Redemptor Hominis, o simples fato do falecimento de Paulo VI, pouco popular no meio tradicionalista, reforça a tentação da reconciliação.
Da compromissão à injustiça
Dom Lefebvre encontra-se com João Paulo II em 16 de dezembro de 1978. Em seguida ao encontro, ele exprime grandes reservas. Com uma liberdade de linguagem inaudita, ele fala daquele que ele reconhece como o legítimo sucessor de Pedro: “Eu penso poder dizer que ele se mostra fundamentalmente compactuante com o Concílio e com as reformas; não penso que ele ponha isso em questão. E isso é evidentemente muito grave, pois ele é favorável ao ecumenismo, favorável à colegialidade, favorável à liberdade religiosa”[22]. Mas, em 24 de dezembro, ele escreve mesmo assim a João Paulo II, para pedir-lhe ser reconhecido e reintegrado ao seio da igreja conciliar: “Santíssimo Padre… nós vos conjuramos a dizer uma palavra só… ‘liberdade’ [‘laissez faire’]; ‘Nós autorizamos o livre exercício daquilo que a Tradição multissecular utilizou para a santificação das almas’. Que dificuldade apresenta uma atitude dessas? Nenhuma”.
Essa iniciativa engendra nos católicos fiéis um profundo mal-estar, acentuado ainda pelas respostas de Dom Lefebvre à Cúria romana que o interroga. Essas respostas revelam no prelado justificativas particularmente nebulosas, um apego desordenado à sobrevivência de sua obra e a recusa de pôr o verdadeiro problema em termos doutrinários. O mal-estar aumenta ainda mais quando, no interior da Fraternidade, o fato de não reconhecer João Paulo II como papa torna-s motivo de sanção: admoestações a diversos padres, recusa de ordenar etc. Durante o verão de 1979, os acontecimentos se precipitam. É o Pe. du Chalard, sacerdote da Fraternidade São Pio X, que obtém, para alguns jovens franceses em férias na Itália, uma audiência de João Paulo II. Este último é calorosamente aclamado. Por toda a parte se tecem loas ao pontífice[23]. Alguns se inquietam com esses ventos de loucura. Mas Dom Lefebvre vem reforçá-los, dando-lhes sua aprovação em 8 de novembro de 1979. Ele dá a conhecer suas posições com respeito à nova missa e João Paulo II, e faz com que sejam difundidas em numerosos folhetos e revistas. Um sofisma de poucas linhas lhe permite varrer de um só golpe todos os estudos aprofundados sobre a invalidade da nova missa. Quanto à questão do papa, o essencial da solução dele está nesta frase: “A questão da visibilidade da Igreja é demasiado necessária à sua existência para que Deus pudesse omiti-la durante décadas”[24]. Não contente com isso, Dom Lefebvre acusa de espírito cismático todos aqueles que pensam diferente. No boletim interno, ele acrescenta às posições dele uma ameaça de sanção: “A Fraternidade sacerdotal São Pio X… não pode tolerar em seu seio membros que se recusam a rezar pelo Papa e que afirmam que todas as missas do Novo Ordo Missae são inválidas”[25]. Segue-se evidentemente um expurgo no seio da Fraternidade. Todos aqueles que não reconhecem João Paulo II devem submeter-se. Alguns abafam sua consciência e permanecem. Outros são expulsos sem consideração alguma, com soberano desdém pelo Direito Canônico. Os dirigentes tradicionalistas regulam seus passos pelos de Dom Lefebvre. Os padres Coache e Ducaud-Bourget, Dom Gérard, prior beneditino de Bédoin, multiplicam os insultos dirigidos aos católicos fiéis. Em 1980, a era do tradicionalismo sectário se inicia.
O surgimento do lefebvrismo
A negociação com a igreja conciliar oferece em teoria três saídas: ou a obtenção de um direito de tendência tradicionalista, ou a adesão pura e simples, ou a via cismática. Mas a nova igreja não tem interesse algum em reconhecer qualquer direito que seja aos tradicionalistas[26], ela não tem necessidade alguma deles. Quantitativamente, eles não são nada[27]. Ora, é isso o que importa aos olhos dos dirigentes conciliares. Recusando-se a lançar o anátema, Dom Lefebvre priva-se da única arma que lhe podia assegurar a vitória. Limitando-se à simples reivindicação de um direito de tendência, apoiado por uma força insignificante comparada à massa dos fiéis do Vaticano II, ele soçobra no naturalismo sem nem mesmo ter meios credíveis, e cava seu próprio túmulo. Quanto à adesão pura e simples, os interesses em jogo são importantes demais para que se possa contemplá-la sem utópicas tratativas[28]. Antes, e sobretudo, os anos provocaram uma ruptura psicológica entre tradicionalistas e inovadores praticamente impossível de reabsorver. A única via aberta permanece a do cisma. A partir de suas posições de 8 de novembro de 1979, Dom Lefebvre se atém, portanto, a uma linha bem precisa: clamar alto e claro sua adesão filial às autoridades a postos, a João Paulo II muito particularmente, reconhecendo-lhes plena legitimidade; recusar-lhes obstinadamente a obediência em tudo, em nome do “direito de fazer a experiência da tradição”. Que Dom Lefebvre desobedece em todos os pontos, é uma questão de fato que não é difícil de provar. Ele continua, ademais, sua obra exatamente como ele a começou. Ao arrepio de uma suspensão que nunca foi levantada, ao arrepio da jurisdição dos bispos conciliares cuja legitimidade ele reconhece, ele ordena, confirma, instala priorados. Ao arrepio do direito sempre em vigor na Igreja, ele concede o poder de confirmar a seus padres. Numa palavra, ele desobedece.
Sem que a contradição os embarace, Dom Lefebvre e todos os que vão na esteira dele cobrem João Paulo II de louvores. Não retêm dele senão as raras palavrinhas que ainda sabem à Tradição. Por vezes as coisas tomam um aspecto cômico. Em fevereiro de 1980, entoa-se em Écône um Te Deum: João Paulo II autorizaria a Missa de sempre e agradeceria a Dom Lefebvre pela ação deste. No dia seguinte, a leitura da carta Dominicae Coenae é de deixar atônito: João Paulo II aprova solenemente o novo Ordo e a teologia que o inspira. A 15 de junho, Dom Lefebvre vem confirmar em Paris. Ele deslocou a data dessas confirmações, para não incomodar a viagem de João Paulo II à França. Dessa triste mascarada, diz ele: “O papa em França é um pouco de oxigênio vindo de Roma. Pois o Papa, diga-se o que se disser, é o Papa. Essa viagem foi, portanto, para os católicos uma alegria, mas há uma sombra no panorama: a situação da Igreja é desastrosa, trágica, dolorosa”. Para lavar o papa dele de toda a suspeita, ele acrescenta: “A liturgia foi-lhe imposta. Ele teria podido recusar-se a assistir ao que se passou em Saint-Denis, que foi uma coisa escandalosa… Um dia o papa nos agradecerá por havermos mantido a Tradição.” Após o atentado contra João Paulo II, Dom Lefebvre, em homilia de 29 de junho de 1981, declara: “E somos realmente obrigados a constatar que a Paixão da Igreja continua. Paixão que se manifesta inclusive, eu diria, na saúde do Cabeça da Igreja. É corporalmente que o Papa sofre, de algum modo, a Paixão da Igreja…”. Ao mesmo tempo que Dom Lefebvre se engaja nessa via absurda, aUnion pour la Fidélité é constituída para não compactuar com a obstinação do prelado. Ela procura por todos os meios esclarecê-lo. Mas todas as iniciativas empreendidas diante dele se defrontam com uma recusa rancorosa. Uma única vez, Dom Lefebvre recebe dois emissários da Union pour la Fidélité. Mas, aos argumentos deles, ele nada opõe a não ser o pedido de que o “deixem em paz”[29].
Coisa mais grave, quando a doutrina católica que lhe é confrontada mostra que a conduta dele é aberrante, Dom Lefebvre se empenha em manipulações doutrinais que cheiram a enxofre. Ele não se compromete pessoalmente, o trabalho é feito por outros, mas ele subscreve a eles explicitamente. Seu esforço visa dois pontos. Cumpre-lhe legitimar sua desobediência tanto no plano canônico quanto no plano teológico. Destarte, ele promove a exposição, por um lado, de uma doutrina do Magistério que restrinja a infalibilidade da Igreja e do Romano Pontífice unicamente às novas definições dogmáticas e crie uma cisão entre o ensinamento e a transmissão do Bom Depósito[30]; e, por outro lado, uma teoria da obediência condicional e da autoridade consentida, grosseiramente mascarada por trás de expressões de aparência canônica[31]. A partir do momento em que seus “teólogos” e seus“canonistas” falaram, Dom Lefebvre prova a cada dia um pouco mais que ele optou deliberadamente por uma solução, ainda que ao preço do cisma. A igreja conciliar, que ele reconhece como sendo a Igreja Católica, não cede um centímetro de terreno e deixa a situação deteriorar-se. Quanto à Fraternidade São Pio X, ela continua a se desenvolver. Dom Lefebvre ordena, os priorados se multiplicam, seminários, escolas, “universidades” são fundados. O direito e a teologia foram reinventados para as necessidades da causa. Nascia a pétite église lefebvrista.
Doutrina
A história de Dom Lefebvre e da sua obra desde o Vaticano II é já rica em ensinamentos referentes à doutrina daquele que, com muita frequência, não é conhecido a não ser através dos prismas deformantes da adulação, do renome, do desdém ou, muito simplesmente, da má informação. Bispo dos tradicionalistas, bispo de ferro, bispo rebelde, novo Atanásio: tantos qualificativos de que, diz-se, o próprio Dom Lefebvre não gosta nada, e que não correspondem à realidade. No entanto, aquilo que se convencionou chamar de “o caso de Écône” fez de Dom Lefebvre um homem público. Todas as suas declarações foram repercutidas pela imprensa ou difundidas em numerosos livros. Quanto a seus fatos e gestos, para quem viveu estes últimos anos no meio tradicionalista sem se desinteressar pela situação da Igreja, o essencial é conhecido. Tudo isso constitui material abundante, do qual se pode extrair a doutrina de Dom Lefebvre.
A crise que atravessa hoje a Igreja obrigou os católicos a pôr-se um bom número de questões que podem ser reunidas numa trilogia: o concílio, a Missa, o Papa. Estava-se no direito de esperar de Dom Lefebvre, Bispo, Sucessor dos Apóstolos, membro da Igreja docente, que ele trouxesse esclarecimentos sobre esses assuntos. Sua ação tornava este dever ainda mais urgente. Ora, paradoxalmente, a argumentação que ele desenvolveu nestes últimos anos se caracteriza com frequência por seu caráter difuso, por vezes mesmo confuso. No que se refere principalmente ao concílio e ao papa, Dom Lefebvre quase falou de tudo, disse tudo e o contrário de tudo, das teses mais complacentes com respeito à apostasia conciliar até as teses mais severas. Como praticamente todos aqueles que foram os primeiros a opor-se ao Vaticano II, Dom Lefebvre começou agindo sem outro motivo que o do instinto da fé[32]. Era normal. Mas ele não fez esta primeira boa reação ser seguida de um esforço de esclarecimento doutrinal. Ele adora repetir aos seus objetores que ele não mudou. Nesse ponto, em todo o caso, isso é verdade. Ele não tem hoje justificativa diferente daquela que ele tinha ontem. Mas, de legítima que ela era na ocasião, essa justificativa tornou-se o imutável álibi de uma práxis aberrante. Mesmo as circunstâncias mais prementes – pensa-se, em particular, nos acontecimentos do ano de 1976 – não decidiram Dom Lefebvre a tomar as coisas a sério. Ele por vezes fez declarações tonitruantes, mas acabou sempre recusando-se a dar testemunho da fé quando as circunstâncias exigiam isso dele.
A justificativa de uma práxis
Desde que criou seu seminário, Dom Lefebvre dá à sua empreitada uma justificativa que se tornou, a partir daí, um leitmotiv: o Concílio Vaticano II precipitou a Igreja numa crise sem precedentes; importa antes de tudo conservar a fé, mantê-la pela missa, os sacramentos, o catecismo; para isso, cumpre formar padres atendo-se ao que a Igreja sempre fez; se permanecemos fiéis à Tradição, não nos arriscamos a nos enganar. “Nós nos atemos firmemente a tudo o que foi crido e praticado na fé, nos costumes, no ensinamento do catecismo, na formação sacerdotal e na instituição eclesiástica pela Igreja de sempre e codificado nos livros publicados antes da influência modernista do concílio, no aguardo de que a verdadeira luz da Tradição dissipe as trevas que obscurecem o céu da Roma eterna. Fazendo isso… nós estamos convictos de permanecer fiéis à Igreja”[33]. “É por isso que eu faço um seminário: para haver padres bons e padres santos, e para a Igreja continuar. É por isso que o bom Deus me pôs neste caminho”[34]. Como se vê, Dom Lefebvre deixa para outros a preocupação de dissipar as trevas e se coloca, de cara, numa perspectiva unicamente defensiva: “Meus colaboradores e eu próprio não trabalhamos contra ninguém, contra pessoas, contra instituições. Nós trabalhamos para construir, para continuar o que a Igreja sempre fez, e nada mais. Não somos ligados a nenhum movimento, a nenhum partido, a nenhuma organização particular. Nós somos ligados à Igreja Católica Romana e nós queremos continuar o sacerdócio da Igreja Católica e Romana. Nada mais… Nós queremos fazer uma obra da Igreja”[35]. É preciso dar o braço a torcer que o argumento de Dom Lefebvre é sedutor. Nos momentos de confusão, efetivamente, ater-se ao que a Igreja sempre ensinou e sempre fez é, mais do que nunca, necessário e é garantia de não se extraviar. Mas, por mais sedutor que seja, caso se detenha aí, esse argumento é insuficiente. Ele tem, especialmente, como consequência imediata introduzir uma questão grave. A Tradição não pode ser concebida, por um católico, à margem do Magistério vivo, exercido pelo colégio dos bispos, exercido de modo primacial pelo Papa. Dom Lefebvre apela à Tradição contra o Vaticano II, contra a quase totalidade dos bispos, contra o “papa”. Essa atitude tem ar de revolta. Se ela é um direito, então cumpre absolutamente assegurar-lhe os fundamentos teóricos. Por outro lado, apelar à Tradição contra os inovadores traz consigo o dever de combatê-los, dever ainda mais premente para um bispo, especialissimamente preposto à defesa da fé. Que outros bispos não tenham feito, por ora, o que convém, em nada escusa a apatia de Dom Lefebvre. Contentar-se com fazer o que sempre se fez no passado, contentar-se com formar padres como se os formou no século XX, com os brilhantes resultados que se conhece, tudo isso é sem proporção com a gravidade da situação. Dá até calafrios só de pensar que os homens do Concílio de Trento pudessem ter tido a linguagem de Dom Lefebvre. Enfim, se é verdade que a formação dos sacerdotes é coisa indispensável, é preciso também previamente que eles tenham o direito e a possibilidade de exercer seu ministério. Contemplar que eles possam fazê-lo de forma duradoura chocando-se contra a hierarquia oficial é escolher a via do cisma, a menos que se tenha demonstrado a ilegitimidade desta última e que se trabalhe pela restauração da verdadeira hierarquia católica. Contemplar que eles possam fazê-lo dentro do quadro do pluralismo conciliar é alimentar-se de ilusões. Ilusão, porque nunca a igreja conciliar concederá a Dom Lefebvre um reconhecimento de direito, senão ao preço de concessões exorbitantes. Ilusão também de pensar que a ordem na Igreja possa ser restaurada pelos fiéis e alguns padres – ainda que padres da Fraternidade São Pio X – à margem da hierarquia e batendo de frente contra impostores solidamente estabelecidos, cuja impostura aqueles se abstêm de denunciar. Dom Lefebvre acalenta sucessivamente essas duas ilusões. A segunda, sobretudo, reaparece incessantemente no discurso dele: “É consolador de constatar que, no mundo católico, o senso da fé dos fiéis rejeita essas novidades e adere à Tradição. É a partir daí que brotará a verdadeira renovação da Igreja. E é porque essas novidades foram introduzidas pelo clero infestado de modernismo, que a obra mais urgente, mais necessária na Igreja é a formação de um clero profundamente católico. Nós nos entregamos a essa obra”[36]. “Os bispos decidiriam os lugares e horários reservados a essa Tradição. A unidade será recuperada imediatamente ao nível do bispo do local. Em contrapartida, quantas vantagens para a Igreja: a renovação dos Seminários, dos mosteiros; um grande fervor nas paróquias. Os bispos ficariam estupefatos de recuperar em poucos anos um élan de devoção e de santificação que eles acreditavam desaparecido para sempre”[37]. Como é que Dom Lefebvre pode realmente acreditar que a Missa de São Pio V dita nas igrejas conciliares arrebataria o assentimento dos fiéis? Como ele pode realmente acreditar que os fiéis abandonariam espontaneamente uma moral laxista por uma moral exigente? Como pode ele realmente acreditar que a verdade, posta em pé de igualdade com o erro, acabaria por triunfar? Aliás, acredita ele verdadeiramente nisso? Dom Lefebvre, que se quer católico e que, além disso, é bispo, sabe que a Igreja é Apostólica e que é inconcebível que a renovação da Igreja possa se fazer sem os bispos, a fortiori contra eles. Contudo, malgrado todas as observações que lhe foram feitas, ele não cessa de se entrincheirar atrás de sua resolução de “formar padres como a Igreja sempre fez”. Ele diz frequentemente, em apoio de sua obra, que os santos não agiram de outro modo[38]. Para além do caráter manifestamente falso do argumento, que se saiba a imitação dos santos não consiste em reproduzir com exatidão seus fatos e gestos, mas em imitar suas virtudes, nas circunstâncias escolhidas para nós pela Providência. Todo o mundo sabe que Dom Lefebvre foi comparado a Santo Atanásio. Ele próprio citou o santo, para justificar seu comportamento[39]. Mas, se Santo Atanásio tivesse se contentado em formar sacerdotes, salvas as promessas feitas por Nosso Senhor à Sua Igreja, o mundo seria ariano. A imutável justificativa de Dom Lefebvre é, portanto, irrisória em vista da importância dos atos postos por ele e da gravidade da situação. Ela é irrisória, mas cômoda, para se esquivar de um dever que urge. Ela também é sedutora. Muitos, aliás, se deixaram enganar, assim como foram enganados, pelas declarações diversas e contraditórias de Dom Lefebvre, tão diversas que cada qual pôde encontrar nelas satisfação.
Declarações de circunstância
Dom Lefebvre escolheu, portanto, uma vez por todas, uma linha de conduta, por mais espantosa e aberrante que ela seja. Contudo, um rápido exame das declarações dele desde o Vaticano II poderia deixar pensar que, pelo contrário, Dom Lefebvre mudou, e isso em múltiplas ocasiões. Depreendem-se delas, com efeito, elementos bem contraditórios.
Um dia, Dom Lefebvre fustiga o Concílio Vaticano II: “Nós recusamos, pelo contrário, e sempre recusamos seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no Concílio Vaticano II e, após o Concílio, em todas as reformas que dele emanaram”[40]. Ele acrescenta: “é um erro dizer que as reformas não têm seu princípio no Concílio”[41]; “as reformas e orientações oficiais pós-conciliares manifestam, com mais evidência do que não importa qual escrito, a interpretação oficial e desejada do Concílio”[42]; e ainda: “é, portanto, impossível para todo católico consciente e fiel adotar essa Reforma e submeter-se a ela, de qualquer maneira que seja”[43]. Num outro dia, Dom Lefebvre declara-se pronto a “assinar uma declaração aceitando o Concílio Vaticano II interpretado de acordo com a Tradição [selon la Tradition]”[44]. Um dia ele verbera contra “a missa de Lutero” que “supõe uma outra concepção da religião católica, uma outra religião”[45]. Ele chega mesmo a precisar os motivos de sua oposição, de maneira categórica: “Que ninguém se engane, não se trata de uma contenda entre Dom Lefebvre e o papa Paulo VI. Trata-se da incompatibilidade radical entre a Igreja Católica e a Igreja Conciliar, a missa de Paulo VI representando o símbolo e o programa da igreja conciliar”[46]. Ele sublinha os graves perigos que a missa nova faz correr: “A missa católico-protestante, fonte doravante envenenada que produz estragos incalculáveis… A Missa ecumênica conduz logicamente à apostasia…”[47]. Mas, um outro dia, Dom Lefebvre não cora de contemplar a coabitação dos dois ritos. Ele distingue as “boas”novas missas das más. E ele não exclui que se assista à missa nova para satisfazer ao preceito dominical: “Eu penso que não se deve abandonar todo ato religioso público, e consequentemente, se a missa que é celebrada o for de modo não sacrílego e respeitoso, penso que é bom assistir a essa missa no domingo, para cumprir o preceito dominical”[48].
Um dia, Dom Lefebvre chama a igreja conciliar, sua hierarquia e principalmente seu “papa” de cismáticos: “Todos aqueles que cooperam com a aplicação dessa sublevação, aceitam e aderem a essa nova igreja conciliar… entram em cisma”[49]. Num outro dia, ele se rebaixa a mendigar desses “cismáticos” um reconhecimento que ele continua esperando: “Santíssimo Padre, pela honra de Jesus Cristo, pelo bem da Igreja, pela salvação das almas, nós vos conjuramos a dizer uma única palavra, uma palavra só…: ‘Liberdade’ [‘Laissez faire’]”[50]. Devemos interromper aqui o recenseamento de todas as incoerências de Dom Lefebvre, para tentar explicá-las. Uma primeira ideia vem ao espírito. Os acontecimentos teriam impelido Dom Lefebvre a esclarecer suas posições. Nada mais natural, então, que suas declarações mudassem. O contrário disso é que seria inquietante. Só que essa explicação não se sustenta. Mostramos que a obra de Dom Lefebvre repousa sobre uma justificativa que não mudou. O principal interessado reivindica o fato: “Penso poder dizer que não variei de opinião sobre esses assuntos”[51]. Por outro lado, um mínimo de análise de suas declarações mostra que, numa mesma circunstância, ele é capaz de dizer uma coisa e o seu contrário: Assim, por exemplo, falou-se bastante do “verão quente” de 1976. E o fato é que, sob a pressão dos acontecimentos, o tom elevou-se um pouco. Em 29 de julho, sob o golpe da suspensão a divinis, Dom Lefebvre declara: “Essa igreja conciliar é uma igreja cismática, porque ela rompe com a Igreja Católica de sempre… Essa igreja conciliar é cismática, pois ela tomou como fundamento de sua atualização princípios opostos aos da Igreja Católica.” “A igreja que afirma tais erros é, ao mesmo tempo, cismática e herética. Logo, essa igreja conciliar não é católica”. Ora, menos de uma semana depois, falando do concílio, ele diz: “Eu não o rejeito em bloco. Eu aceito o concílio na medida em que ele é conforme à Tradição”[52]. Melhor ainda, numa mesma declaração ao jornal Le Figaro, ele realiza uma façanha. Depois de haver reiterado suas declarações bem duras de 29 de julho e levantado a questão da legitimidade de Paulo VI, ele conclui: “Nós estamos, portanto, bem decididos a continuar nossa obra de restauração do sacerdócio católico, aconteça o que acontecer, convictos de que nós não podemos prestar um melhor serviço à Igreja, ao papa, aos bispos e aos fiéis. Que se nos deixe fazer a experiência da tradição”[53]. Alguns quiseram ver nessas incoerências um comportamento tático. Se fosse verdadeiramente esse o caso, o comportamento já seria escandaloso. Na realidade, tudo isso prova que Dom Lefebvre não tem doutrina nenhuma. Fiel à linha que ele escolheu, ou seja, levar adiante impunemente a sua obra, ele reage aos acontecimentos susceptíveis de ameaçar essa obra, para protegê-la e justificar-se. Seria esta uma indução apressada? Lamentavelmente, não. Bastaria, para se convencer disso, recordar-se brevemente da história da Fraternidade São Pio X.
Na origem dela, Dom Lefebvre declara querer fazer o que sempre fez a Igreja. Mas, como não é verdadeiramente tradicional, na Igreja, agir contra um concílio ecumênico, ele recorre à noção de concílio “pastoral”, julgando assim contornar a infalibilidade do Romano Pontífice e da Igreja: “Nós não podemos mudar mais nada no Concílio de Trento, ao passo que o Concílio Vaticano II foi um concílio pastoral que justamente evitou comprometer-se com definições dogmáticas, e é por isso que ele pôde ser isso que ele foi”[54]. Advêm os acontecimentos dos anos de 1975 e 1976. As diabruras vindas de Roma [sic] irritam Dom Lefebvre. A obra dele é ameaçada. Aí então, ele faz as declarações duríssimas que se conhece. Terá Dom Lefebvre aprofundado as graves questões doutrinais que ele não tem como não haver se colocado? Terá ele afinal compreendido que cumpria romper com a seita conciliar? Vai ele enfim cumprir o seu dever de bispo? Na realidade, nada disso tudo. Dom Lefebvre não mudou. As declarações dele são declarações de circunstância[55]. A prova disso é que, uma vez entabuladas negociações com Paulo VI, ele regressará a discursos mais lenitivos. A obra dele tem a oportunidade de se perpetuar na quietude. Mais tarde, certos sacerdotes e seminaristas, que não se deixam engabelar por João Paulo II mais do que por Paulo VI, se inquietam com a questão do Papa e com as justificativas da ação de Dom Lefebvre. Novamente, sua obra está em perigo. Ele faz, então, com que seja publicado o seu pensamento “definitivo” sobre os assuntos candentes e expulsa os chatos. E, quando a Union pour la Fidélité se empenha em mostrar a incoerência que há em reconhecer João Paulo II como papa e, ao mesmo tempo, desobedecer-lhe em tudo[56], ele lança na arena “teólogos” que se apressam em sustentar uma heresia sobre o Magistério ordinário do Papa e da Igreja, de fato reiteração das velhas heresias protestante e galicana. Assim, Dom Lefebvre não acolheu os acontecimentos, queridos ou permitidos pela Providência desde a fundação de sua Fraternidade, como ocasiões de procurar a verdade, de se reassenhorear de si mesmo e de cumprir o seu dever de bispo, mas tão somente como agressões à sua obra. A diversidade dessas agressões explica suas declarações, declarações contraditórias, mas tendo como ponto comum haverem sido ditas com o único objetivo de proteger a quimera que, ao arrepio e contra tudo, ele decidiu perseguir. Assim fazendo, Dom Lefebvre enganou muita gente, e principalmente os católicos cuja compreensão levou algum tempo para acontecer. Dom Lefebvre visava mais ao bem da obra dele que ao bem da Igreja. Só que, enganando os fiéis, dos quais ele, aliás, se serviu abundantemente, e sem os quais a Fraternidade São Pio X não seria nada hoje, – ele se enganou a si próprio, recusando-se em várias ocasiões a confessar a fé.
A RECUSA DE CONFESSAR A FÉ
Dom Lefebvre sabe, por haver dito isso ele próprio, que a Igreja vive atualmente uma crise excepcional, sem dúvida a mais grave de sua história. Ele sabe também que o problema maior é o da legitimidade dos cabeças da igreja conciliar. Incumbia a ele, de modo muito especial, dar uma solução a esse problema, não somente para ele se determinar a agir neste ou naquele sentido e responder à expectativa dos católicos, mas também para testemunhar em face do mundo que a igreja conciliar não é a Igreja de Cristo, que os dirigentes daquela são impostores. Aconteceu de Dom Lefebvre considerar essa questão. Assim, carta enviada a 6 de outubro de 1978 para quarenta cardeais, dentre os quais Karol Wojtyla, ele dizia: “Um Papa digno desse nome e verdadeiro sucessor de Pedro não pode declarar que se dedicará à aplicação do Concílio e de suas Reformas. Ele se coloca, pelo fato mesmo, em ruptura com todos os seus predecessores e, particularmente, com o Concílio de Trento”. Não havia melhor maneira de pôr o problema e de dar o princípio de sua solução. Mas a sequência sempre se faz esperar e, de resto, o acontecimento era bastante excepcional.
Um hábito detestável
De maneira geral, e antes que ele elaborasse por si mesmo ou fizesse ser elaborada por outros alguma tese errônea mais cômoda,Dom Lefebvre sempre tomou o cuidado de colocar esses problemas para imediatamente tirar o corpo fora remetendo-os a um futuro longínquo ou confiando-os a outros. Em 1973, ele já dizia: “Ah! Mas o que eu vou fazer? Nós devemos obedecer aos nossos bispos, nós devemos obedecer ao papa, nós devemos obedecer a Roma. Eu não sei; eu diria que eu não quero considerar essas coisas aí, que o que eu quero é salvar a minha alma, que eu quero é chegar à vida eterna, e a fé me procura a vida eterna. Então, eu prefiro morrer a abandonar a minha fé, e tudo o que me for dito de contrário à fé, eu recusarei categoricamente”[57]. Ele se esquiva do mesmo jeito em 1976: “Um problema grave se põe à consciência e à fé de todos os católicos desde o início do pontificado de Paulo [VI]. Como um papa verdadeiro sucessor de Pedro, assegurado pela assistência do Espírito Santo, pode presidir à destruição da Igreja, a mais profunda e de maior alcance de sua história no espaço de tão pouco tempo, coisa que nenhum herege jamais conseguiu fazer? A essa questão, realmente, será preciso responder um dia, mas deixando esse problema para os teólogos e os historiadores, a realidade nos força a responder na prática conforme o conselho de São Vicente de Lérins”[58]. Essa recusa da provação, escandalosa por parte de qualquer cristão, mais especialmente escandalosa ainda da parte de um bispo, transparece novamente na declaração que Dom Lefebvre faz ser amplamente difundida em novembro de 1979: “Bem-aventurados os que viveram e morreram sem ter de se colocar semelhante questão!”[59]. Outro exemplo mostra bem que Dom Lefebvre recusa o testemunho da fé, para melhor garantir o êxito terreno de sua obra. É sabido como ele se especializou em arrebentar – a justo título – a declaração conciliar sobre a liberdade religiosa. E, no entanto… Em conferência feita em Angers a 23 de novembro de 1980, não é que Dom Lefebvre declarava: “Cumpre esperar que as coisas se arranjarão com o Papa João Paulo II, eu não tenho de modo algum o desespero de que as coisas não se arranjem com ele… Nós pedimos simplesmente, quem sabe, não discutir demais os problemas teóricos, deixar para lá as questões que nos dividem, como essa da liberdade religiosa. Não se é obrigado a resolver todos esses problemas agora, o tempo trará sua claridade, sua solução…”. É preciso render- se à evidência: Dom Lefebvre, que tantas vezes proclamou que admitir a liberdade religiosa professada pelo Vaticano II equivalia a negar os direitos de Cristo sobre o mundo, propõe-se a nada menos que pôr o Reinado de Nosso Senhor sob o alqueire, caso isso possa permitir-lhe reentrar nas boas graças da igreja conciliar. Mas será que ele se dá conta de que, para fazer suas vãs tratativas terem sucesso, ele subordina assim a fé católica ao êxito de sua obra?
A hora da verdade
Para terminar sobre esta questão, devemos também relatar a confrontação entre a Congregação para a Doutrina da Fé e Dom Lefebvre. Com efeito, este último quis que todos os elementos dessa confrontação fossem tornados públicos e reunidos em um número especial da revista Itinéraires[60]. Como introdução, Dom Lefebvre citava sua resposta ao ex-Santo Ofício, que o acusava de dividir a Igreja: “Quando eu penso que nós estamos nas instalações do Santo Ofício, que é a testemunha excepcional da Tradição e da defesa da fé católica, não posso me impedir de pensar que estou em casa e que sou eu, que vós chamais ‘o tradicionalista’, quem deveria julgar-vos. A Tradição representa um passado inabalável como esta casa, o liberalismo não tem fundamento e passará. Um dia a Verdade recuperará os seus direitos”. Como admite o próprio Dom Lefebvre, aí estava uma bela ocasião de julgar e condenar a igreja conciliar, e de fazer triunfar a Verdade. O clímax da confrontação é o colóquio dos dias 11 e 12 de janeiro de 1979. Mas devemos, sem embargo, descrever muito rapidamente aquilo que o precedeu. A primeira carta do Cardeal Seper a Dom Lefebvre data de 28 de janeiro de 1978. Esta carta é acompanhada de um anexo-questionário, ao qual Dom Lefebvre responde em 26 de fevereiro. Sua resposta sendo julgada incompleta, ele recebe a 16 de março um novo pedido de justificação, que é mister citar quase por inteiro:
“1. A propósito do Ordo Missae:
um fiel não pode pôr em dúvida a conformidade com a doutrina da fé de um rito sacramental promulgado pelo Pastor Supremo;
… c)…
Vossas declarações gerais (sobre a autoridade do Concílio Vaticano II e do Papa Paulo VI) se unem a uma práxis que leva a indagar-se: não se está diante de um movimento cismático? Com efeito, vós ordenais padres contra a vontade formal do Papa e sem as ‘litterae dimissoriae’ requeridas pelo Direito Canônico – e continuastes após vossa suspensão a divinis–, vós enviais esses padres para priorados onde eles exercem seu ministério sem a autorização do Ordinário do local; vós fazeis discursos que são próprios a difundir vossas ideias em dioceses cujo bispo vos recusa o consentimento dele; com os padres que ordenastes, vós começais, querendo ou não, a formar um grupo que é próprio a tornar-se uma comunidade eclesial dissidente.
Vós estimais que os padres ordenados por vós tenham a jurisdição prevista pelo Direito Canônico para o caso de necessidade. Não é isso raciocinar como se a Hierarquia legítima houvesse cessado de existir?
O Papa tem a ‘potestas suprema iuris dictionis’ ‘non solum in rebus quae ad fidem et mores sed etiam in iis quae ad disciplinam et regimen Ecclesiae per totum orbem diffusae pertinent’ (Conc. Vat. I, Const. Pastor Aeternus, DS 3064)[61], assim a obediência que lhe é devida não se limita às matérias doutrinais.
Por vossas declarações sobre a submissão ao Concílio e às reformas pós-conciliares de Paulo VI – declarações com as quais concorda todo um comportamento e, em particular, as ordenações sacerdotais ilícitas –, vós caístes numa desobediência grave cuja lógica própria conduz ao cisma”.
O que quer que se pense da qualidade e das intenções dos mercenários da nova igreja, é preciso dar o braço a torcer que eles colocam as questões essenciais. Pode-se pôr em dúvida um rito sacramental promulgado pelo Papa? Se esse rito é objetivamente duvidoso, quem o promulgou pode ser Papa? Agir como age Dom Lefebvre, ao mesmo tempo que reconhecendo os líderes conciliares como líderes legítimos, não é tomar a via do cisma? Ou então, essa ação não pressupõe que a hierarquia legítima cessou de existir? Um católico pode limitar sua obediência ao Papa unicamente às matérias doutrinais? Pode-se verdadeiramente dizer que a tarefa de Dom Lefebvre está enormemente facilitada.
No entanto, por mais assombroso que isto possa parecer, este último não faz caso de responder. Longe de retomar ponto por ponto o questionário, ele se contenta de enviar “considerações gerais sobre a situação da Igreja a partir do Concílio Vaticano II…” e algumas “considerações particulares”. As “considerações gerais” não respondem às questões, mas não passam de repetição de seu imutável discurso. Quanto às “considerações particulares”, elas não respondem tampouco, e justificam a desobediência ao papa pela encíclica de Leão XIII Libertas praestantissimum, ao preço da confusão entre a Igreja una, santa, católica e apostólica e não importa que sociedade natural, e com uma omissão grave, a saber: a da infalibilidade. É, pois, sobre estas bases que se inaugura o colóquio dos dias 11 e 12 de janeiro de 1979. Não podendo reproduzir aqui a integralidade dos debates, nos contentaremos com as duas primeiras questões dos modernistas e com as respostas que deu a elas Dom Lefebvre. São as mais reveladoras.
1.ª QUESTÃO:
“Deve-se concluir dessas afirmações que, segundo vós, o Papa, ao promulgar e impor o novo Ordo Missae, e o conjunto dos bispos que receberam o novo Ordo Missae, instauraram e reuniram em torno de si visivelmente uma nova Igreja ‘conciliar’ radicalmente incompatível com a Igreja Católica?”
RESPOSTA DE DOM LEFEBVRE:
“Eu observo, para começar, que a expressão ‘Igreja conciliar’ não é minha, mas de Sua Excelência Dom Benelli, que, numa carta oficial, exigia que nossos padres e nossos seminaristas se submetessem à ‘Igreja conciliar’.
Eu considero que um espírito de tendência modernista e protestante se manifesta na concepção da nova Missa e, de resto, de toda a Reforma Litúrgica. Os protestantes mesmos o afirmam, e o próprio Mons. Bugnini reconheceu isso implicitamente ao afirmar que essa Reforma Litúrgica foi concebida em espírito ecumênico. (Eu posso preparar um estudo, para mostrar como esse espírito protestante se encontra no Ordo Missae)”.
2.ª QUESTÃO:
“Vós sustentais que um fiel católico pode pensar e afirmar que um rito sacramental, em particular o da Missa, aprovado e promulgado pelo Soberano Pontífice, pode ser não conforme à fé católica ou ‘favens haeresim’?”.
RESPOSTA DE DOM LEFEBVRE:
“Esse rito em si mesmo não professa a fé católica de maneira clara como o antigo ‘Ordo Missae’ e, por conseguinte, ele pode favorecer a heresia. Mas eu não sei a quem atribui-lo, nem se o Papa é responsável por ele.
O que é de pasmar é que um ‘Ordo Missae’ de sabor protestante, e, portanto, ‘favens haeresim’, tenha podido ser difundido pela Cúria romana”.
Ter-se-á notado como a frivolidade das respostas de Dom Lefebvre contrasta com a gravidade das questões colocadas. A ocasião é única. Os mercenários da nova igreja geralmente se limitam a declarações inconsistentes, mas eles colocam neste dia questões de uma extrema precisão. Trata-se, da parte deles, de um erro? Ou então, seguros com as respostas escritas que já lhes enviou o prelado, eles sabem que ele se esquivará e pensam reverter assim a situação em vantagem própria? Seja como for, a Providência quis que essas questões fossem postas. E é forçoso constatar que Dom Lefebvre se recusa a responder. Ele é intimado a dizer se, sim ou não, uma nova igreja nasceu com o Vaticano II, se essa igreja é incompatível com a Igreja Católica. São os lobos disfarçados de pastores que o interrogam. A resposta é fácil. Ele mesmo disse que ele deveria julgá-los. E é por uma pirueta, algumas vagas considerações sobre o espírito da reforma, que ele se esquiva. Uma segunda vez, a nova igreja coloca uma questão pela qual ela pronuncia a sua própria condenação. Um católico racional pode sustentar que o Soberano Pontífice da Santa Igreja é capaz de promulgar aquilo que ele, Dom Lefebvre, chamou tantas vezes de “a missa de Lutero”? E, pela segunda vez, ele se esquiva. Pois o respeito obriga-nos a pensar que essa ignorância sobre a responsabilidade do “papa” no novo ordo missae é uma ignorância afetada, uma lamentável fuga. Essa questão não tem como surpreendê-lo, pois, ela é submetida a ele pela terceira vez em menos de um ano: um ano para preparar a única resposta que se impõe.
A obstinação que cega
Desde essa recusa de confessar a fé, as coisas se agravaram consideravelmente. Como fruto dessa terrível demissão, vem a declaração de 8 de novembro de 1979, ato de nascimento daquilo que cumpre bem chamar de o lefebvrismo. De um lado, Dom Lefebvre ignora cegamente as objeções que a ele faz a doutrina católica[62], por outro ele abençoa tudo o que vai no sentido de sua obstinação. Cego, ele guia outros cegos. Seu séquito doutrinal é o dos incondicionais, pouco exigentes quanto aos princípios, hábeis em acomodá-los, que pesam e julgam tudo em função de sua práxis. As tendências são diversas, vigora a nebulosidade doutrinal, mas que importa? Contanto que as práticas do bispo Lefebvre não sejam postas em questão. O lefebvrismo foi enriquecido, ao longo dos anos, por contribuições doutrinais aparentemente sem grande unidade, mas que tentam todas lavar o bispo de toda a suspeita.Dissemos bem: lavar o bispo de toda a suspeita. Pois não se trata, para os “pensadores” lefebvristas, de exprimir os pontos do ensinamento católico susceptíveis de escorar uma conduta. Trata-se, antes de tudo, de proteger seu mestre contra os ataques da verdadeira doutrina, e de inventar algumas respostas de aparência tradicional. Assim, viram-se aparecer os sofismas protestantes do Pe. Williamson em maio de 1980, depois as proclamações galicanas do cônego Berthod em janeiro de 1981 (Una Voce Helvetica, número de jan. 1981), depois as divagações rousseaunianas sobre o Direito Canônico do Prof. Roger Lefebvre em abril, depois o comunicado da “santa resistência” em maio, depois enfim, e no aguardo de coisa melhor, as falsificações de Georges Salet, também conhecido por seu pseudônimo: Michel Martin, em fevereiro de 1982. Admirar-se-á que Dom Lefebvre nunca ponha diretamente a mão na elaboração dessa miscelânea das mais clássicas heresias. Mesmo o comunicado, que ele assinou, aparece muito claramente como obra do Pe. Coache. Estará ele consciente do caráter eminentemente factício dessas produções? Temerá ele comprometer seu nome em construções do espírito que sabem demasiadamente à má-fé? Permanece que ele, de um jeito ou de outro, os encoraja e aprova.
ANEXO:
DUAS TENTATIVAS DESONROSAS
Para justificar sua impossível posição, os partidários de Dom Lefebvre adotam todos a mesma atitude: eles se esforçam a todo custo em reduzir as evidências a simples hipóteses e a doutrina mais certa a opiniões particulares, o que lhes permite em seguida denunciar nossa insuportável pretensão de estarmos com a verdade. Nessa via, cada qual se esforça na medida de seus meios e de sua imaginação. Alguns brilham por uma sofística avançada. O que se sabe menos é que o próprio Dom Lefebvre dá o exemplo. Vejamos já agora como ele professa a lógica.
A lógica de Dom Lefebvre
Um de nossos amigos, o Sr. Pe. Delmasure, enviou nosso livro sobre Le devoir des catholiques a Dom Lefebvre. Este responde, pouco tempo depois, com as linhas seguintes:
“Por que teimais em seguir aqueles que se perdem numa lógica que é falsa por falta de estudo das premissas?
A simplificação geralmente se opõe à realidade. É fácil dizer: a Igreja oficial é a Igreja conciliar, a Igreja conciliar é herética, logo o Papa que preside essa Igreja é herege e não é Papa.
Entre dizer que a Igreja conciliar não é católica e dizer que ela é herética, há uma nuança. Muitos bispos, fiéis e padres deixaram de ser católicos, eles são liberais, mais ou menos modernistas, eles nem por isso são hereges no sentido canônico do termo. Nenhum Papa o afirmou, nem mesmo São Pio X…
Estou inteiramente de acordo acerca de todas as acusações feitas ao Papa e ao Vaticano, mas não sobre a conclusão que daí se tira. Ela ultrapassa as premissas”[63].
Antes de comentar essas afirmações espantosas, recordemos a posição que defendemos em nosso livro, posição conforme, no estado atual de nossas informações, à doutrina católica e à materialidade dos fatos:
1.ª maior – O magistério universal do Romano Pontífice, sozinho ou com os bispos unidos a ele em concílio, é infalível.
1.ª menor – Ora, Paulo VI, sozinho e em concílio, exerceu todas as aparências de um tal magistério; João Paulo II, que prosseguiu-lhe a obra, igualmente.
1.ª conclusão e 2.ª maior – Segundo todas as aparências, o ensinamento deles é, portanto, infalível.
2.ª menor – Ora, uma contradição existe entre o conteúdo do que eles ensinam ou prescrevem para a Igreja universal, e a doutrina definida anteriormente de maneira irreformável.
Conclusão geral – Dado que a 1.ª maior é de fé, a conclusão se impõe: o ensinamento do Vaticano II, promulgado e aplicado por Paulo VI e confirmado por João Paulo II, não é o ensinamento da Igreja, e nem Paulo VI nem João Paulo II podem ser reconhecidos como papas. O que Dom Lefebvre apresenta como nosso silogismo não tem absolutamente nada a ver com o que acabamos de ler:
Maior – A Igreja oficial é a Igreja conciliar.
Menor – A Igreja conciliar é herética.
Conclusão – Logo, o papa que preside essa Igreja é herege e não é papa.
A falsificação é tão gritante, que não há nada a dizer sobre ela. Mas sejamos complacentes. Afinal de contas, malgrado uma formulação bem imprecisa, o raciocínio que nos atribui Dom Lefebvre não é tão falso assim. É sem dúvida isso o que excita a sua ira lógica. A maior seria falsa? Seria falso identificar “a igreja oficial” e “a igreja conciliar”? Parece, todavia, realmente que o organismo que passa oficialmente por Igreja Católica – mas que nada mais é que seu dublê hipócrita – é o mesmo que seus líderes chamam com prazer de “a igreja conciliar”. Dom Lefebvre inclusive acusou-os disso muitas vezes. Reciprocamente, essa “igreja conciliar” possui, aos olhos do mundo, todas as aparências oficiais. A menor seria falsa? É o que nos quer mostrar o bispo: “Entre dizer que a Igreja conciliar não é católica e dizer que ela é herética, há uma nuança”. O que é verdade. Ela não é necessariamente herética somente. Ela pode ser cismática, ou apóstata, ou mais verossimilmente as três coisas juntas. Mas não é isso que Dom Lefebvre quer dizer: “Muitos bispos, fiéis e padres deixaram de ser católicos, eles são liberais, mais ou menos modernistas, eles nem por isso são hereges no sentido canônico do termo”. E acrescenta esta observação profunda – trata-se, como acabamos de ler, dos modernistas de hoje em dia –: “Nenhum Papa o afirmou, nem mesmo São Pio X”. Certamente que nenhum papa declarou hereges, no sentido canônico do termo, os homens da nova igreja. E, mesmo que o dom da profecia lhes tivesse sido dado, eles não o teriam dito nesses termos. Com efeito, o modernista, como o luterano, como o nestoriano, não é herege no sentido canônico do termo senão a partir do momento em que ele adere com pertinácia aos erros que ele professa. De sorte que hoje nem todos aqueles que estão do lado da nova igreja são necessariamente hereges no sentido canônico, ou seja, não estão fora da Igreja. Mas, se por um lado nenhum papa pretendeu essas coisas, nenhum papa disse tampouco que, deixando de ser católico, podia-se, todavia, permanecer dentro da Igreja. Então, o que foi que Dom Lefebvre quis dizer? Talvez sua expressão tenha ultrapassado seu pensamento, talvez ele tenha escrito “deixaram de ser católicos” pensando em “deixaram de ser plenamente católicos”. Sejamos complacentes mais uma vez e o concedamos a ele. Mas, nesse caso, fica ainda mais surpreendente vê-lo tirar uma conclusão que, por sua vez, ultrapassa com certeza suas premissas. Para ele, assim como para nós, aliás, “muitos bispos, fiéis e padres deixaram de ser (plenamente) católicos, eles são liberais, mais ou menos modernistas, eles nem por isso são hereges no sentido canônico do termo”. Mas então, e os outros? Os que são pertinazes no erro? Os que apostataram publicamente? Estes seguramente são hereges no sentido canônico do termo. Os Papas – inclusive São Pio X – e o Direito Canônico previram o caso deles: “Se alguém, após haver recebido o batismo, embora conservando o nome de cristão, nega com pertinácia ou põe em dúvida alguma daquelas verdades que devem ser cridas com fé divina e católica, é herege”[64]. Dom Lefebvre não ignora isso, evidentemente. Por que então ele precisa deformar, como que ao seu bel-prazer, a nossa posição e, com ela, a doutrina católica que acabamos de referir aqui mais uma vez? Que se reflita um instante no fato seguinte: nosso livro não foi objeto de nenhum comentário público da parte dos líderes do meio tradicionalista. Todos extraíram um prazer maligno em tê-lo como inexistente. Dom Lefebvre fez a mesma coisa, publicamente ao menos. A carta que acabamos de citar representa uma exceção, mas ela é privada, e nem sequer menciona explicitamente o título da obra! E, como inteira refutação, ela não traz mais que alguns sofismas apresentados de modo puramente afirmativo. Uma atitude dessas é uma vergonhosa escapatória, mas também uma admissão inglória: o bispo conhece pertinentemente o fundo da questão, a única que pode se pôr hoje às consciências que permanecem católicas. Mas ele teima em não querer abordá-la com honestidade, e para se desembaraçar do que o importuna, ele é o primeiro a fazer uso de uma lógica da mentira. Dom Lefebvre queria nos desacreditar, mas é ele quem se desonra. Ele não é, infelizmente, o único.
Um defensor magistral
Dentre aqueles que respaldam as incoerências de Dom Lefebvre, é de guardar o nome de G. Salet, que publica, sob o pseudônimo de Michel Martin, cartas multicopiadas intituladas De Rome et d’ailleurs [De Roma e alhures]. Mal apareceu, o n.º 26 desse folheto suscitou o entusiasmo dos lefebvristas e de alguns outros, que correram para saudar essa magistral refutação de nosso livro. Já tivemos ocasião de mostrar o que valia essa grosseira produção[65]. Por isso, não voltaremos a ela senão para sublinhar um ponto, que é também a suprema astúcia do engenheiro em teologia G. Salet[66]. Para este último, quando constatamos que o ensinamento de Paulo VI, e do concílio com ele, revestiu as aparências jurídicas do magistério universal da Igreja, nós cometemos um erro profundo. Por qual motivo? Muito simplesmente porque, a despeito das aparências gritantes, Paulo VI e seu concílio não ensinaram absolutamente nada. Aí está a revolução copernicana do Vaticano II! No final de todos os documentos promulgados em sessão solene por J.B. Montini, uma fórmula não menos solene enuncia a vontade de Paulo VI de ensinar à Igreja universal, mas não se deve levá-la em conta, e, sim, esforçar-se em julgar encontrar obscuridade no que é claro: “…Todo o conjunto e cada um dos pontos que foram estabelecidos nesta constituição dogmática foram aprovados pelos Padres. E Nós, em virtude do poder apostólico que recebemos de Cristo, em união com os veneráveis Padres, Nós o aprovamos, decidimos e decretamos no Espírito Santo, e Nós ordenamos que aquilo que foi assim estabelecido em Concílio seja promulgado para a glória de Deus. Roma, em São Pedro, a 21 de novembro de 1964, Eu, Paulo, bispo da Igreja Católica”[67]. Mas um tal enunciado não detém nosso amador de paradoxos: “Paulo VI e o próprio concílio manifestaram de diversas maneiras sua vontade de não obrigar os fiéis a aceitar os ensinamentos conciliares”. Bela assertiva reconfortante, que G. Salet pretende respaldar recorrendo a um sofisma (mais um) cuja substância é a seguinte: “Para haver infalibilidade, é preciso que haja manifestação suficiente (explícita ou implícita, mas suficiente)da vontade do Magistério de impor assentimento firme a toda a Igreja”. Até aí, nenhuma dificuldade: G. Salet arromba portas abertas. “Essa vontade manifestou-se muito explicitamente em todos os concílios ecumênicos até o Vaticano II pela breve, mas enérgica, fórmula ‘Anathema sit’”. Muito bem, mas aonde ele quer chegar? No rodapé da página em que ele escreve isso, G. Salet declara que “uma simples encíclica como Quanta Cura” é infalível (pois ela emitiu condenações). As outras encíclicas seriam desprovidas de infalibilidade por não conterem condenação alguma? A promulgação do Missal Romano por São Pio V é falível por não condenar absolutamente nada? Estranha concepção, a bem dizer, que pretende subtrair ao Romano Pontífice o direito de ensinar positivamente a verdade, ou ao menos a garantia de que esse ensinamento seja efetivamente o do próprio Cristo. Mas suas assertivas, G. Salet estabelece-as mediante provas definitivas, seguramente. Que vai ele buscar para pretender que não somente o Vaticano II não quis ensinar à Igreja universal, mas melhor ainda, que esse mesmo concílio, a despeito das promulgações solenes, teve a vontade expressa de não ensinar? Muito simples: quatro declarações de ordem geral que não têm nada a ver com o assunto. João XXIII dissera, quando da abertura do concílio, querer “utilizar o remédio da misericórdia antes que as armas do rigor” e Paulo VI fazia-lhe eco na Ecclesiam Suam: “Ela (a Igreja) poderia propor-se assinalar os males que venha a encontrar ali (no mundo), anatematizando-os… Parece-nos, porém, que a relação da Igreja com o mundo se representa melhor pelo diálogo”. A partir desses textos, que constituem tantas declarações de intenção dos principais atores do Vaticano II, G. Salet pretende extrair que Paulo VI não quis ensinar à Igreja universal. Quando se sabe os esforços despendidos por esse homem para impor sua utopia a todos os católicos, usando e abusando dos poderes inerentes à sua função [sic], fica-se abismado. Verdadeiramente, G. Salet faz de tudo para chegar a seus fins. Será que ele se dá conta de que ultrapassa os limites da decência? Permanece o fato de que o seu labor se remata na confusão: “É coisa bem certa que, comparado aos vinte concílios ecumênicos precedentes, o Vaticano II constitui um caso atípico” (o concílio, atípico? Muito mais o pensamento do imaginativo defensor). “É evidentemente desconcertante e a priori difícil de admitir” (palavra lúcida!) “mas isso resulta rigorosamente da doutrina católica”: deixemos aqui esse novo Doutor em Israel outorgar a si próprio esse atestado conclusivo de perfeita ortodoxia, e não falemos mais dele. Acrobacias desse tipo são desonrosas para seus autores.
Obra
Acabamos de mostrar que Dom Lefebvre é um homem sem doutrina, decidido a agir como bem entende, custe o que custar. Como muitos outros, ele poderia ter sido vítima de erro, senão involuntário, ao menos no qual seu consentimento estivesse pouco envolvido. Só que todo o comportamento dele demonstra o contrário. Sua atividade resulta de uma vontade bem decidida, totalmente indiferente às diversas incitações, exceto para rejeitá-las. Muitas vezes, a Providência intimou-o a fornecer os esclarecimentos que a sua ação requeria, a tirar daí todas as consequências e cumprir o seu dever de bispo. Surdo a essa vocação, Dom Lefebvre recebe os acontecimentos como tantos obstáculos inoportunos que, na lógica dele, convém apartar por todos os meios, exceto o da conversão. Compreendemos, portanto, que o lefebvrismo seja, primeiro e antes de tudo, uma práxis: em nome da Tradição – entendida aqui em sentido impróprio, pois separada do Magistério vivo –, agir em tudo contra as autoridades que se reconhece serem as da Igreja. Com os anos, a imutável justificativa dessa práxis deu à luz um sistema que não tem, evidentemente, o objetivo de explicar a realidade, mas, sim, de formar uma ideia da realidade que seja própria a deixar intacta a Obra (com “O” maiúsculo). Um tal sistema, que a tudo julga, que justifica tudo, é uma ideologia. A ideologia tem isto de particular: ela aprisiona tanto seus autores quanto suas vítimas. Quanto mais o tempo passa, mais difícil fica o retorno à verdade, no mínimo em razão das perturbações que a acompanham necessariamente. Além disso, por força de enxergar a realidade de maneira deformada, perde-se o gosto pela veracidade e, por conseguinte, pelo comportamento moral. A ideologia contém em si mesma seu próprio castigo: o autoengano da inteligência e o endurecimento do coração. O lefebvrismo infelizmente não escapa à regra. Funestas são as consequências para Dom Lefebvre. Funestas as consequências para os indivíduos que ele tem o encargo de formar e para a obra que ele dirige. Pois a Fraternidade São Pio X é toda à imagem de seu fundador.
Um seminário inconsistente
Pretende-se formar em Écône “verdadeiros e santos sacerdotes”. A realidade, porém, é menos entusiasmante. Os padres da Fraternidade São Pio X brilham antes por seu nível aflitivo. Todos já tiveram ocasião de suportar os fastidiosos sermões recheados de banalidades, de imprecisões de linguagem que escondem mal a ignorância, quando não de francas heresias. Aqui um padre afirma que a nova missa é válida, que nela há sacramento, mas não há sacrifício, um de seus colegas declara que o corpo físico de Nosso Senhor não está sobre o altar[68]. E poderiam-se multiplicar os exemplos. Se nos voltamos para os que são considerados um pouco mais cultivados, somos acometidos pelo mesmo problema. O Pe. Aulagnier, diretor da revista Fideliter, distingue-se na exegese livre e liberal do pobre Padre Schwalm, que não pode fazer nada a respeito[69]. Ele deixa passar, na sua revista, algumas revelações surpreendentes: por exemplo, teria sido o pecado dos judeus do tempo de Moisés que nos teria valido o Redentor[70]. Quanto ao Instituto Universitário São Pio X, ele é dirigido pelo Pe. Lorans, mas os próprios interessados admitem que unicamente as contribuições vindas de fora puderam diferir a sua ruína. Todas essas infantilidades seriam, no mais, antes cômicas e facilmente suportáveis, se não contrastassem com uma grande presunção[71]. O Pe. Simoulin, mais padre de Dom Lefebvre impossível, testemunha sem querer os sofrimentos a que seus colegas e ele próprio submetem os fiéis, todavia geralmente bem pouco exigentes quanto à qualidade de seus sacerdotes: “Seria-nos permitido exprimir a amargura de muitos jovens padres formados em Écône? Leigos piedosos e eruditos se aplicam faz um bom tempo a esfolá-los por eles serem jovens e inexperientes, sem atinar que eles talvez sejam frágeis! Alguns põem em dúvida a pureza doutrinal do ensinamento de Écône, outros a competência ou inteligência dos padres ali formados!” Essa confissão é cândida, mas dá testemunho de uma realidade. A coisa pode parecer surpreendente em quem se considerava reconquistar o mundo para a verdadeira religião. Ela o é menos, quando se considera sobre quais princípios repousa a formação dada em Écône. Esses princípios decorrem diretamente da doutrina, ou mais exatamente do pragmatismo, de Dom Lefebvre: primado da quantidade sobre a qualidade, vontade de fazer padres como antigamente, vontade de fazer silêncio sobre todas as questões que causem dificuldade. Já evocamos as ilusões de Dom Lefebvre quanto à influência decisiva de sua obra contra a vontade conciliar de destruir a Igreja. Para ele, cumpre antes de tudo garantir os sacramentos e, para tanto, estar presente em toda a parte. Para ele, o trigo fatalmente prevalecerá sobre o joio, aliás com o risco de não ser ;muito exigente ou observador quanto à qualidade do grão. Nada espantoso, portanto, que se dê a primazia à quantidade: os padres de Écône serão caolhos no reino dos cegos. A coisa se manifesta claramente no recrutamento dos seminaristas. As condições de admissão são mínimas: conclusão do ensino secundário, recomendação de um padre tradicionalista, uma visita ao diretor do seminário, a bem dizer mera formalidade. Não há praticamente nenhum exame do valor pessoal, da doutrina ou da realidade da vocação do candidato[72]. A coisa se manifesta também na rapidez das promoções. Dom Lefebvre tem o costume da ordenação adiantada, quando a ocupação do terreno pela Fraternidade São Pio X o exige. Por outro lado, sacerdotes que acabam de ser ordenados, sem experiência alguma do sacerdócio nem sequer da vida prática fora do conforto macio de Écône, veem-se, sem transição alguma, proclamados “doutores em Israel”, aqui com o título de prior, ali na direção de uma escola, aqui na chefia de um instituto universitário, ali como professor de filosofia. Claro que a falta de seleção, a rapidez das promoções, poderiam eventualmente se justificar, se a formação estivesse à altura dos rigores dos tempos. Mas não é o caso, muito pelo contrário. Dom Lefebvre quer ter padres como antigamente, ou seja – e dizer isto não é fazer injúria aos antigos – padres piedosos, mas pouco instruídos, ao passo que a situação exigiria que eles fossem, no mínimo, igualmente piedosos e, sobretudo, muito bem formados. Reproduzindo as taras dos seminários deste século, ele faz sacerdotes tão pouco premunidos quanto aqueles todos que se deixaram arrastar pela tormenta do Vaticano II[73]. O fato é agravado ainda pela vontade de manter os seminaristas, e os padres, na ignorância dos pontos de doutrina que deveriam constituir sua razão de ser. Em Écône, afronta-se a autoridade do “papa” sem dar as razões disso, põe-se em dúvida os novos sacramentos sem dizer por quê. Mais ainda, recusa-se a dar explicações aos que as pedem, o próprio fato de ousar pedi-las sendo considerado impertinência ou mau espírito[74]. Os seminaristas de Dom Lefebvre são, assim, formados em abstrato, como se devessem viver fora do tempo, sob o pretexto de fazer como a Igreja sempre fez. Na realidade, os meios de confrontar a situação da Igreja lhes são recusados. Quando muito, lhes é dado o necessário de doutrina para salvar as aparências. O ensinamento dado em Écône é, portanto, em seus princípios, medíocre. Essa mediocridade é mantida pela qualidade do corpo professoral. O critério que decide que este ou aquele deve ensinar não é, antes de tudo, a ciência católica real, mas a concordância com a linha de “Monsenhor”: uma anomalia a mais no contexto. Com os anos, os professores que permaneceram, ou se fundiram ao molde lefebvrista, ou então foram produzidos por este. De fato, os melhores se contentam em fazer abstração de tudo isso. O ensinamento deles é uma compilação de questões de curso para seminário medíocre de entre-guerras.
A isso se soma a ausência de um verdadeiro controle dos conhecimentos. Todo seminarista, a menos que seja um profundo ignorante, vai bem nos exames. A isso se soma a ausência de direção nos estudos. Em Écône, a formação é obtida como se quer ou como se pode. E, de fato, os que se formam fazem-no contra o espírito do seminário, contra seus professores, contra seus superiores. A isso se soma, enfim, a espiritualidade do seminário. Nesse domínio, na falta de uma direção de conjunto, a diversidade reina, donde se depreendem, todavia, três tendências. Os mais exigentes, na esteira do Pe. Barrielle e do sucessor preferencial deste, o Pe. Williamson, referem-se ao modelo inaciano. Outros, na sequela do AbbéCottard, se inspiram numa espiritualidade de que é difícil dizer se ela pretende ser dominicana ou carmelita, mas da qual é certo que ela é francamente liberal. Enfim, o maior número, nas pegadas do Pe. Tissier de Mallerais, adota “a espiritualidade de Monsenhor”. Esta, no dizer dos interessados, inspira-se em São Francisco de Sales e consistiria na busca da humildade e da doçura. As atitudes exterior responderiam talvez deixar pensar isso. Mas, se cavamos um pouco, as coisas são menos reluzentes. Basta, por exemplo, pôr alguma questão incômoda aos arautos dessa escola, para ver-se imediatamente acusado de falta de humildade e zelo amargo. No espírito deles, a verdadeira humildade consiste em não contrariar o seu bispo. Se a isso se soma uma boa dose de clericalismo e a apologia da via média entre o liberalismo e o catolicismo, tem-se uma noção mais exata da “espiritualidade de Monsenhor”. E nada mais resta senão atitudes: distribuição de imagens santas, tom adocicado, ar piedoso, olhos semicerrados, cabeça inclinada e mãos juntas. O que acabamos de relatar explica, em grande parte, a constatação que fazíamos no preâmbulo deste capítulo. Os erros e as trapaças da revista Fideliter, a indigência doutrinal dos padres de Écône e todas as suas manifestações são frutos evidentes do seminário. Pode espantar, nessas condições, que a Fraternidade São Pio X continue seu caminho, aparentemente sem grandes problemas. Na realidade, o vazio doutrinal e espiritual de Écône é largamente preenchido pelo lefebvrismo, ou seja, o culto – sincero ou não – devotado à ação e à pessoa do bispo. Os homens de Écône pensam como “Monsenhor”, adotam seu sistema. Eles estão na linha de “Monsenhor” e seguem todas as variações deste, por mais aberrantes que sejam. Eles imitam aquele que eles consideram – ou afetam considerar – um santo. No fim das contas, não há verdadeiramente contradição entre o desejo afirmado por Dom Lefebvre de formar sacerdotes e os resultados concretos de sua obra. A contradição é apenas aparente. Para o prelado de Écône, trata-se antes de tudo de ter padres, muitos padres, que lhe sejam fiéis. Trata-se, antes de tudo, de ter executantes subservientes. A tal ponto, que a Fraternidade São Pio X forma mais militantes do que sacerdotes católicos.
O ESPÍRITO DE PARTIDO
Havendo a Fraternidade São Pio X, na pessoa de seu superior, recusado apoiar-se solidamente na doutrina católica e havendo, finalmente, dado as costas a esta para adotar um sistema, a manutenção da sua coesão exigiu tomar algumas liberdades sem muita relação com um exercício normal da autoridade. Como sempre nos grupos ideológicos, é preciso encontrar outro princípio unificador. E, assim como “o espírito de Marc” – trata-se de Marc Sangnier – animava no início do século o Sillon, que São Pio X condenou, “o espírito de Monsenhor” anima toda a Fraternidade.
Uma direção carismática
Para Dom Lefebvre, a situação é de certo modo sumamente tranquila. Ele é o único bispo do seu partido, ele é o único a poder conferir ordenações. Por esse fato mesmo, ele não tem o mínimo receio de ser vítima das querelas intestinas. Sua autoridade – se ainda podemos chamar a coisa assim – se exerce sem atritos, oscilando da intransigência sectária ao mais profundo liberalismo, conforme a ideologia lefebvrista esteja ou não esteja em questão[75]. Para seus subordinados, a arte é perigosa. Trata-se para eles de seguir a linha que, na ausência de verdadeira doutrina, por vezes reserva surpresas. Estar ou não estar nas boas graças do líder, eis como se põe a questão da sobrevivência dentro da Fraternidade São Pio X. Desde sua fundação, esta última vive como que na corda-bamba: fidelidade à “tradição” e “fidelidade” aos pontífices conciliares. Os partidários de uma adesão [‘ralliement’] efetiva à nova igreja, de um lado, e os de uma ruptura com ela, de outro, puderam crer por algum tempo ser os dois únicos clãs face a face .Eles se enganavam redondamente. Pois a sobrevivência em Écône consiste em pertencer, sejam quais forem suas opiniões, a um terceiro grupo, o da admiração subserviente da conduta do bispo[76]. Em condições tais, não havia como não ocorrerem crises sucessivas, que acarretaram todas expurgos coletivos: em 1972, o Pe. Masson, primeiro diretor do seminário, seguido de três professores e vinte seminaristas – eles queriam assistir ao novo ordo missae–; em 1974, os partidários da submissão aos dirigentes conciliares; em 1977, o núcleo duro dos liberais após uma tentativa de putsch; no mesmo ano, os primeiros atos de intimidação contra os que se inquietam com a orientação de Dom Lefebvre; de 1978 a 1980, todos aqueles que se recusam a reconhecer João Paulo II e ousam dizê-lo são eliminados um a um; em 1981, o Pe. Cantoni, professor, e alguns seminaristas se juntam à igreja conciliar. O fenômeno toca também padres isolados: assim, em 1980, o Pe. Samson abandona a Fraternidade São Pio X pelo motivo de que não compreende como conciliar a prática de Écône com a doutrina católica da submissão ao Magistério. O que quer que se pense das razões de uns e de outros, razões por vezes opostas, o fato é que essas crises sucessivas tiveram por efeito laminar todo desviacionismo e tornar hoje a atmosfera da Fraternidade São Pio X penosa e sufocante para quem não seja lefebvrista autenticado. Elas manifestaram, além disso, injustiças indignas de uma sociedade, a fortioride uma comunidade religiosa, católica, e bem reveladoras do menosprezo do bispo Lefebvre pelos homens, pelo bem das almas, pelo bem da Igreja. Todos os que vivenciaram esses expurgos, como atores ou espectadores, sabem que, ao contrário de um exercício normal da autoridade, elas foram ocasião de arbitrariedade, desprezo ao direito, chantagem pela ordenação, pressão de grupo. Assim, por exemplo, a exclusão de uma sociedade religiosa é coisa grave. Mas nunca Dom Lefebvre dá os motivos claros das exclusões que ele decide, nunca ele deixa aos acusados a possibilidade de se defender. Esses expurgos, que atingem ora de um lado, ora do outro, também mostram bem em que nebulosidade foram sempre deixadas as questões de fundo. Notar-se-á, ademais, o drama interior de certos sacerdotes, tais como os padres Samson e Cantoni, que se dão conta de que Écône levou-os para um mau caminho e julgam por bem, pois não lhes foi dada doutrina, juntar-se à nova igreja[77]. Atualmente, Écône parece haver reentrado numa fase estável. Os corpos estranhos foram eliminados, e as consciências, abafadas. O essencial para Dom Lefebvre é que a Obra seja próspera. O essencial para seus seminaristas é que o bispo queira realmente ordená-los. A questão de fundo não estando verdadeiramente resolvida, todo acontecimento grave é, no entanto, suscetível de provocar uma nova crise. Mas instaurou-se uma espécie de contrato tácito, em que cada parte encontra satisfação para o seu interesse: de um lado, quer-se o sacerdócio não importa a que preço; do outro, exige-se que as consciências se calem, sobretudo se elas têm ainda algum bom senso; exige-se que cada qual siga a linha de modo subserviente. Não haverá confronto, a menos que uma das partes não execute os termos do contrato.
O culto à personalidade
O exercício que consiste em adquirir “o espírito de Monsenhor” faz, muito evidentemente, perder o gosto pela razão. Dele resulta, ao fim e ao cabo, uma consideração maior pela pessoa do bispo do que por algum ideal a procurar. Sempre existiram indivíduos dispostos a prestar culto à personalidade. Em Écône, porém, a coisa tornou-se parte integrante do sistema. Pois Écône é, antes de tudo, um Dom Lefebvre. Tudo é centrado nele, tudo repousa nele. Os membros da Fraternidade São Pio X são, primeiro que tudo, discípulos. Os problemas doutrinais, o bem da Igreja, vêm depois. De resto, o que os lefebvristas mais censuram nos que criticam o caminho seguido pelo prelado não são tanto os argumentos apresentados – alguns, inclusive, estariam dispostos a adotá-los –, quanto o fato de prejudicar a pessoa de Dom Lefebvre. Mesmo os que tiveram de sofrer suas perseguições, por desconformidade com a sua práxis, raramente ousaram atacá-lo abertamente, sem dúvida vítimas inconscientes do culto à personalidade.
Esse culto se exerce tanto coletivamente quanto individualmente. Os lefebvristas habituaram-se, doravante, a desfazer-se em adulações ao seu “santo”. Pensa-se no livro do Pe. Marziac, ridículo de obsequiosa bajulação[78]. Pensa-se também no jubileu de 1979, custosa operação toda para a glória daquele que é “o” Bispo (com “B” maiúsculo)[79]. Desde 1976 que os lefebvristas não deixam, por nada deste mundo, de cantar o Tu es Petrus à passagem do bispo “deles”. Não resta dúvida que, no espírito de muitos, trata-se menos de cantar a fidelidade dele ao pontífice conciliar, do que sua própria adesão indefectível ao bispo dos tradicionalistas, e quem sabe até mesmo uma esperança insensata. Quando se exprime individualmente, o culto prestado a Dom Lefebvre assume proporções igualmente duvidosas, mas mais divertidas. Assim, os padres da Fraternidade São Pio X, conscientes, por ocasião, do caráter eminentemente absurdo de certas declarações de seu superior, não hesitam em invocar, para desculpá-lo, suas incomparáveis virtudes. Por vezes, as coisas tomam um viés francamente hilariante. Todos se lembram do poema gentilmente anotado para a compreensão de seus ouvintes considerados ignorantes – que o Pe. Jean-Paul André dedicara a Dom Lefebvre por ocasião do décimo aniversário da Fraternidade São Pio X. Que ninguém se engane. O culto votado ao prelado de Écône é raramente inocente, muito frequentemente interesseiro. E isso tanto nos praticantes como naquele que é seu objeto. Esse culto serve bem a Dom Lefebvre, que não o desencoraja. Evita, especialmente, que ele tenha de justificar seus atos perante indivíduos inteiramente aderidos à sua causa, antes mesmo de o terem escutado. Para estes últimos, as ordenações, as confirmações, os apoios financeiros, a conservação de uma clientela, valem bem a pena de bajulá-lo. E depois, mesmo que ele não tivesse nada a oferecer, consagrar o tempo a adulá-lo evita de pensar.
Intolerância e livre-pensamento
Insistimos bastante na necessidade, para quem queira fazer parte da Fraternidade São Pio X, de rivalizar em subserviência para com seu superior. Dado o pragmatismo deste último, pode-se imaginar facilmente as consequências em matéria de seleção humana. Voltaremos adiante a este assunto. Há, é claro, os que abdicaram daquilo que até então lhes servia de inteligência, para os quais a solução é simples: deixar o encargo de pensar a Dom Lefebvre. Mas há outros, no seio da Fraternidade São Pio X, que não se recusam totalmente a pensar. Pois o direito de tendência não é proibido aos lefebvristas, com a condição somente de que saibam fazê-lo calar nos momentos oportunos. Eles podem pensar, mas devem ser suficientemente pouco escrupulosos para abafar sua consciência quando for preciso. No limite, o fato de não reconhecer João Paulo II pode ser admitido. Basta não fazer publicidade dele. Certos padres viram-se, assim, recebendo postos nalgum priorado bem distante, lá onde sua “anormalidade” não arriscasse muito de contrastar com a linha oficial. Igualmente, os partidários discretos do Pe. Guérard des Lauriers, hoje tornado bispo cismático [N. do T. – Cf., porém, o Apêndice 1], puderam permanecer durante muito tempo, e até estes últimos meses, servidores de Dom Lefebvre. Ainda hoje, um Pe. Philippe Laguérie, guérardiano convicto e que não se esconde em privado, vive confortavelmente dentro da Fraternidade São Pio X. Ele simplesmente tem de pagar o preço de um acordo de silêncio com a sua consciência[80]. O próprio Pe. Aulagnier, superior do distrito franco-belga, não escondia na ocasião suas simpatias pelo bom senso católico. Mas ele foi suficientemente “prudente” para dobrar suas preferências quando Dom Lefebvre deu a conhecer suas próprias posições. Doravante o Pe. Aulagnier se aborrece de não poder desancar João Paulo II e a igreja deste. Seu coração pende para a direita, mas seus interesses levam-no a tomar uma posição de centro-direita sujeita a todas as correções de rota que venham a ser impostas pelos próximos caprichos de seu superior. E os padres Aulagnier e Laguérie não são casos isolados. Quer se tenha abdicado de toda inteligência, quer se tenha escolhido o silêncio poltrão das consciências subservientes, o resultado é o mesmo. Os que permanecem dentro da Fraternidade São Pio X, com poucas exceções, sacrificam ao espírito de partido. Mais que sacerdotes católicos, eles são perfeitos militantes lefebvristas.
Mentes estreitas e duras
Dom Lefebvre queria e quer ainda padres, muitos padres. Nesse âmbito, ele foi manifestamente bem-sucedido e não deixa passar uma ocasião de congratular-se por um tal sucesso. Contudo, o vazio doutrinal e espiritual da Fraternidade São Pio X, o espírito de partido que ali reina, não é evidentemente sem consequências na qualidade dos produtos da empreitada. Mais ou menos fiéis reproduções de Dom Lefebvre, encontram-se neles características que não são geralmente o apanágio de sacerdotes católicos: especialmente a incapacidade de justificar seus atos e a dureza de coração. Não repisaremos o que já sublinhamos: o nível aflitivo dos membros da Fraternidade São Pio X. Devemos, não obstante, insistir num ponto gravíssimo. Todos são chamados a exercer um ministério em condições particulares, ou mesmo irregulares caso nos situemos dentro da lógica lefebvrista. Todos se deparam com um mundo que nunca foi tão inimigo da verdadeira religião. Todos são levados a ter responsabilidades esmagadoras: condução das almas, direção de comunidades, de escolas etc. Ora, não há um único que seja capaz de justificar aquilo que faz. Sabemos que o próprio Dom Lefebvre não quer fazê-lo. Mas essa lacuna é ainda multiplicada em seus fiéis súditos. A obra do prelado de Écône brilha pelo fato de não contribuir em nada no debate das questões doutrinais. Nem Cor Unum, o boletim interno, nem Fideliter, a revista de grande tiragem, estão ou querem estar à altura da tarefa. Às vezes alguns indivíduos, falando em seu próprio nome, arriscam-se a considerações doutas, mas sempre em documentos o menos difundidos possível, desencorajadores em sua apresentação e que, como dissemos, têm sempre por objetivo justificar retrospectivamente e a todo o custo as práticas de Dom Lefebvre. Quanto aos padres de base, eles se recusam até mesmo a falar de doutrina. Num primeiro momento, contentam-se com as mesmas desculpas batidas: nós não somos a Igreja docente, deixemos isso para os teólogos; deixemos “Monsenhor” agir, ele sabe aonde vai – entenda-se: ele pensa por nós –; sejamos humildes; etc. Pressionados a recuar até suas últimas trincheiras, eles têm este argumento acachapante: vós atacais Dom Lefebvre[81]. Uma tal ciência não pode engendrar comportamentos morais. E, para os fiéis que aceitam lucidamente abrir os olhos, os padres da Fraternidade São Pio X aparecem, em seu conjunto, como mentes estreitas e duras. É verdade que, uma vez mais, o superior deles deu o exemplo. Perseguindo obstinadamente o seu caminho, ele suporta muito mal o que poderia lhe servir de obstáculo ou lhe fazer sombra. Ele passa por homem afável, doce e humilde. Todos que o encontram pela primeira vez pensam isso dele, tanto mais que ele sabe mostrar-se variável, inapreensível, e usar linguagens diferentes, senão opostas, em função de seus interesses e de seus interlocutores. Mas a verdadeira personalidade de Dom Lefebvre nunca aparece tanto como quando ele é contradito ou incomodado. Ele se mostra então indiferente aos homens e duro para com eles. Isso se manifesta claramente na conduta que ele adota com os padres ou seminaristas que saem da Fraternidade São Pio X, por fidelidade a João Paulo II, por recusa de reconhecer a este último como papa, ou por qualquer outro motivo. Na ótica de um superior católico, deveriam ser ovelhas desgarradas que a moral lhe daria o dever de reconduzir ao redil. Ora, jamais ele os trata como tais. Para ele, são uns maçadores. E, aos pedidos reiterados deles por explicações, aos desejos deles de serem ouvidos, ele só sabe responder, sem nenhuma benevolência: vocês não estão de acordo comigo, vão embora[82]. De igual maneira, Dom Lefebvre, que é bispo – seu comportamento tende a fazer esquecer disso –, deveria responder a quem lhe mostra seus erros com argumentos que não sejam afirmações gratuitas sem nexo com a doutrina católica. Aqueles que, procurando esclarecê-lo, têm a audácia de exercer a caridade para com ele perderam seu tempo: na melhor das hipóteses o silêncio; na pior, respostas venenosas. O Padre Barbara pôde experimentar o fato em numerosas ocasiões. Objeto, já em 1977, de ostracismo cruel por parte dos lefebvristas incondicionais, ele assumiu o risco, a 3 de dezembro desse ano, de escrever a Dom Lefebvre para perguntar-lhe as razões de uma tal situação. A carta foi enormemente respeitosa[83]. A resposta, datada de 8 de dezembro, o foi menos. Entre outras amenidades, o bispo deslizava esta caridosa alfinetada: “No estado de espírito em que vos encontrais, eu me pergunto como vós consegui ainda rezar”. Em 1980, o Pe. Barbara escrevia novamente, a 23 de fevereiro e a 2 de junho, cartas exatamente tão respeitosas quanto a primeira, para recordar a Dom Lefebvre seus deveres de bispo católico. A afronta devia ser intolerável, pois seu destinatário nem sequer julgou por bem responder a elas[84]. Essa frieza e essa dureza, tanto mais escandalosas quanto vêm de um homem que recebeu a plenitude do sacerdócio e que deveria ser um bom pastor, encontram-se novamente, em graus diversos, nos padres da Fraternidade São Pio X, coisa da qual alguns sem dúvida nem mesmo são conscientes[85]. A isso se soma o fato de que o luxuoso casulo de Écône não prepara, em absoluto, para as realidades presentes. E, de fato, os jovens padres que brotam dali são totalmente irrealistas: irrealistas quanto às condições nas quais devem exercer seu sacerdócio, irrealistas quanto a suas verdadeiras capacidades, irrealistas quanto à vida quotidiana dos fiéis etc. Iludidos pela ideia de que são “os apóstolos dos últimos tempos”, detentores de um monopólio quase absoluto, sabendo-se aguardados por fiéis que não têm o lazer de ser exigentes, autorizados a viver largamente na mesma linha do luxo ostentado por sua sociedade religiosa, eles agem por toda a parte aonde vão como pedantes, sem consideração por aqueles que, por vezes à custa de lutas penosas, lhes prepararam o terreno; indiferentes às objeções que lhes são feitas – afinal, não são eles padres de “Monsenhor”? –; impiedosos com quem tenha a audácia de não se dobrará sua vontade[86]. Formados no molde de um seminário oco, sem outra inteligência nem outra consciência além das do bispo Lefebvre, investidos de missões que eles são incapazes de bem realizar, esses perfeitos militantes não agem como sacerdotes, mas como bárbaros. O fato é tanto mais escandaloso para os fiéis que os suportam, quanto esses espíritos estreitos e endurecidos aprenderam as belas maneiras eclesiásticas e realizam suas más ações por trás da fachada, mas só da fachada, de uma atitude piedosa e lenitiva. O fato é ainda mais escandaloso também por a Fraternidade São Pio X, longe de praticar a humildade que conviria a seus verdadeiros recursos, não cessar de dar mostras de presunção.
Presunção coletiva
A mediocridade da obra de Dom Lefebvre se esconde por trás de uma pretensão sem igual. Para a Fraternidade São Pio X, as aparências têm a primazia sobre o ser. E seus membros se sobressaem em exibir um belo organograma, é verdade que bem abastado: seminários internacionais, distritos, priorados, casas de religiosos, de religiosas, mosteiros, escolas, universidades etc. Essa pompa permite fazer esquecer todo o resto. Também aqui a quantidade tem a primazia sobre a qualidade. Dom Lefebvre mesmo especializou-se em insistir sobre o incremento de sua obra. À parte algumas considerações sobre os progressos, sempre postergados, do “arranjo” com Roma, suas Cartas aos amigos e benfeitoressão sempre postas sob o signo da euforia expansionista: constrói-se uma escola aqui, abre-se um seminário ali, nós não cessamos de crescer etc. Cumpre bem explicar um tal incremento. Nada mais fácil para o fundador de Écône: sua obra é “visivelmente abençoada por Deus”, como ele escreveu em prefácio a uma brochura, amorosamente confeccionada por seus seminaristas e humildemente intitulada: “A Fraternidade São PioX. Uma obra da Igreja. O milagre de Écône”. Pois, para Dom Lefebvre e seus aduladores, não se trata de menos que um milagre. A brochura cujo título acabamos de dar contém, por exemplo, um capítulo revelador intitulado “Olhar retrospectivo”, que temos de citar quase integralmente:
“Há onze anos já que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X tem manifestado de forma contínua e sem falha sua adesão à Santa Igreja Católica Romana, a todas as suas instituições, a toda a sua doutrina e, particularmente, ao seu sacerdócio, ao Santo Sacrifício da Missa e ao Magistério multissecular que encontra na Tradição sua expressão plena e vivificante[87].
Assim, um olhar retrospectivo para a Fraternidade desde sua preparação e a partir de sua existência, datando do 1.º de novembro de 1970, manifesta com certeza a ação da Providência, não somente nos acontecimentos, como também na permanência de sua finalidade, no vigor de seu crescimento, malgrado as provações vindas do interior e do exterior.
Desde suas primeiras fundações… a Fraternidade não cessou de se expandir de maneira praticamente milagrosa (em 1.º de janeiro de 1981, ela conta 44 casas espalhadas pelo mundo inteiro).
E, se é verdade que o milagre aparece na expansão, ele aparece também no fato de que essa expansão não foi detida pelos ataques selvagens dos bispos e clérigos progressistas de França ou da Suíça, nem pelos dos cardeais da Cúria Romana.
Ora, é bem evidente que, de um ponto de vista humano, essas oposições externas e internas deveriam ter aniquilado a Obra. As testemunhas desses acontecimentos são unânimes. A Obra só permanece de pé porque ela continua a Igreja…”.
Assim, os lefebvristas veem no sucesso “da Obra” o sinal evidente de que são abençoados por Deus, de que eles continuam a Igreja. O argumento é, quando muito, bom para impressionar os ignorantes e os débeis. Pois é grosseiro. Nada mais faz que reproduzir a autossatisfação corriqueira dos herético-cismáticos, os calvinistas por exemplo, que veem no sucesso material – e ter-se-á notado com que desvelo o bispo Lefebvre e seus adeptos insistem no incremento numérico – o sinal de sua predestinação. Os lefebvristas, satisfeitos com sua recompensa aqui embaixo, não cessam de exibi-la para afirmar que eles são os “benditos de Deus”. Estão de tal modo persuadidos disso, que se creem autorizados a tudo, especialmente a apropriar-se ou sufocar tudo aquilo que pôde ser feito, fora deles e sem eles, pela Igreja.
Hegemonismo
Em sua origem, os tradicionalistas são padres e sobretudo leigos que, perante a conduta do clero e as inovações litúrgicas e sacramentais do pós-concílio, tomam a iniciativa de uma ruptura com a nova igreja. Diante da indiferença, do desdém ou do ódio da maioria dos bispos e padres, eles empreendem conservar os verdadeiros sacramentos, o verdadeiro catecismo. Eles o fazem nas maiores dificuldades. Do ponto de vista material, seus efetivos são insignificantes, os sacerdotes são raros, os lugares improvisados são miseráveis. Do ponto de vista moral, eles são alvo de sarcasmos, confrontados com a apatia da maioria, sem líderes e sem organização. Isso quer dizer que eles não fazem isso por prazer, mas por saberem mais ou menos confusamente que algo de grave está em jogo. Eles não tiveram tempo de fazer a respeito uma análise completa e precisa, mas o instinto da fé advertiu-os de que deviam reagir. Eles não apreenderam ainda toda a amplitude da crise e, notadamente, eles não se interessaram verdadeiramente de perto pelo concílio, mas muitos percebem bem a necessidade de aprofundar a doutrina católica, para ver aí mais claro e para escorar suas posições. Num tal contexto, a aparição de Dom Lefebvre e da Fraternidade São Pio X teria podido ser muito benéfica. Deveria ter sido isso. Para tanto, teria sido suficiente que Dom Lefebvre se decidisse a ser verdadeiramente bispo e a combater os erros novos com as armas da boa doutrina. A sequência mostrou que ele não era o bispo que a Providência exigia dele que ele fosse. Pior ainda, longe de responder à expectativa do meio social que o havia impulsionado, ele viria a servir-se deste unicamente para benefício de sua obra. O meio tradicionalista, portanto, já existia sem a Fraternidade São Pio X, ao menos em certos países, e muito especialmente na França e no México. Sem dúvida, uma tal empresa não teria jamais decolado sem esse meio, que nos primeiros tempos estava inteiramente aderido à sua causa. Aliás, como poderia ser diferente? O meio tradicionalista esperava tudo de Dom Lefebvre. Este último mostrava-se amável e discreto com os que haviam começado a agir sem ele. Ele prometia-lhes padres para um futuro muito próximo. Ainda mesmo que ele houvesse entretido, na época, intenções hegemônicas, seus meios não lhe teriam permitido traduzi-las em fatos. Acreditava-se que ele visava um papel bem apagado. Não repetia ele que não queria nada além de “formar bons padres como antigamente”, que ele não queria ser o bispo dos tradicionalistas? No entanto, com o desenrolar dos anos, ao mesmo tempo que ele se recusava a fazer seu dever e que a sua Fraternidade prosperava, a atitude de Dom Lefebvre mudou. Contrariamente a todos os seus desmentidos, ficou claro que ele se afirmava nos fatos como o chefe dos tradicionalistas. Ele se aproveitava das fraquezas destes, para melhor assegurar sua dominação. Ele fazia de maneira que todas as realizações deles caíssem sob a dependência de sua Fraternidade. Destarte, a Fraternidade São Pio X atingiu um tal nível de crescimento, que ela se autoriza a absolutamente tudo e julga ser, ao menos na prática e cada vez mais na teoria, o ponto de passagem necessário e obrigatório de todo fiel católico. Longe de prestar algum reconhecimento àqueles que lutaram durante muito tempo sem ela e sem os quais ela não existiria, ela exige deles, pelo contrário, que desapareçam, para dar lugar à todo-poderosa obra de Dom Lefebvre.
Na prática, o hegemonismo da Fraternidade São Pio X em nada se diferencia dos casos clássicos. Ele consiste em ela implantar-se por toda a parte. A coisa não teria, em si, nada de escandaloso, se isso não fosse feito sem consideração alguma pelas situações pré-existentes. Tanto quanto os bispos a postos e reconhecidos como legítimos, os esforços e realizações dos católicos fiéis não caem nas graças da petite église lefebvrista. Para estes últimos, a escolha é simples: deixar-se absorver, ou guerra. A primeira solução não é tão gratuita quanto se poderia pensar. Quanto à segunda, ela é inelutável para quem tenha a intenção de permanecer católico fora da égide do bispo Lefebvre. Diante das resistências, a Fraternidade São Pio X não hesita, com efeito, em implantar-se em situação de concorrência. Que importa se aquele que deve ser devorado trabalhou a vida inteira pela Igreja, que importa se ele preparou o terreno, ele deve desaparecer. Esse gênero de situação não oferece risco para a petite église lefebvrista, a qual tem sempre garantida uma clientela de mundanos. Ainda por cima, os membros zelosos da Fraternidade São Pio X guardam na manga certos meios dentre os mais imorais para fazer ceder os recalcitrantes: mentira, calúnia e até mesmo, por que não, chantagem com os sacramentos. À primeira vista, pode-se ficar espantado com um tal comportamento da parte daqueles que dizem não ter outra intenção além da de fazer “uma obra da Igreja”. Na realidade, as práticas hegemônicas da Fraternidade São Pio X procedem de uma lógica interna. Tendo abandonado a doutrina católica, persuadidos de continuar a Igreja, obstinados em suas práticas cismáticas, Dom Lefebvre e seus adeptos zelosos não mais trabalham pela Igreja, mas por sua própria conta. Pode ser espantoso também que tão poucos católicos tenham reagido contra o expansionismo da Fraternidade São Pio X. Fazendo a ressalva de que, aqui e ali, começam a elevar-se os primeiros brados de alarme[88], cumpre mesmo reconhecer que os tradicionalistas, em sua grande maioria, seguiram Dom Lefebvre. Quaisquer que tenham sido as suas intenções no início, para muitos o esforço contrário à nova religião realmente abortou numa consideração cega pelo homem providencial do qual esperam que salve tudo. Dom Lefebvre pretende fazer “uma obra da Igreja”. Infelizmente, a realidade é outra. Ele exerce sobre sua obra uma direção carismática sem nexo com a autoridade de um superior católico. Ele tem seus militantes, sectários duros e ignorantes. Malgrado todas as admoestações que lhe foram endereçadas, ele virou as costas à verdade católica e forjou sua própria doutrina, arrastando em sua queda sua Fraternidade. Esta última vive doravante em admiração de seu próprio desenvolvimento. Ela é seu próprio fim. Ela pretende absorver tudo o que se queira católico fora dela. Ela estabeleceu-se por toda parte, paralelamente à nova igreja cuja legitimidade, porém, ela reconhece. Em suma, a Fraternidade São Pio X tornou-se uma nova igreja com suas próprias estruturas e leis[89]. Numa palavra, que assusta, mas é exata, uma seita. Terminaremos, enfim, com uma longa citação: “Acerca das cerimônias, falamos com frequência, aqui mesmo, de nosso ponto de vista: nós fazemos questão de conservar a liturgia dita de SãoPio V (missa e ofício divino, aceitando para este último as reformas feitas por São Pio X) e o canto gregoriano, recomendado ainda pelos papas Paulo VI e João Paulo II. Acerca dos quatro Cânons da missa dita de Paulo VI, não dizemos e jamais pretendemos que sejam inválidos, mas eles não respondem às necessidades dos fiéis de nossa comunidade. Procuraremos rever nossas posições caso o Santo Padre proíba nosso modo de celebrar o Santo Sacrifício conforme o rito tridentino. Em todas as missas celebradas pelos padres de nossa comunidade, o nome do Santo Padre é citado no Cânon: ‘Una cum famulo tuo papa nostro Joanne Paolo…’. Nossa comunidade não é solidária, de modo nenhum, daqueles que negam a existência, a supremacia ou a autoridade do papa. Do ponto de vista da indumentária e dos hábitos de vida, atemo-nos em conservar, sem excesso, maneira dos curas de antanho. Aí está o que nos esforçamos modestamente em dar e transmitir. Não oferecemos um tradicionalismo puro e sectário, mas, sim, adaptado, o melhor que podemos, ao mundo atual.” Acrescentemos, para esclarecer o leitor, que, malgrado todas as aparências, este discurso não é de Dom Lefebvre, mas dos sectários da igreja latina da Toulouse[90].
[N. do T. – Comparando os índices, nota-se que a versão em inglês traz aqui um Anexo intitulado “Caso de consciência”: lendo-o, consta de três breves relatos que, apesar de bastante interessantes, são omitidos na presente tradução, que quer seguir à risca a edição francesa original.]
Balanço
Todo o drama de Dom Lefebvre consiste em haver ele passado ao largo de sua vocação. A vocação é uma escolha que pede, em retorno, um dom de si livre de todo entrave. Comentando o chamado do jovem rico e a recusa deste por causa de seus muitos bens (Mt XIX, 16-24), os autores espirituais mostram a imperiosa necessidade de nos desapegarmos de todo afeto desordenado por algum bem, qualquer que seja ele. Essa renúncia pode ir muito longe. Que nos baste recordar o chamado de Abraão, de quem o Senhor exigiu o sacrifício, não somente de seu país e de sua parentela, mas inclusive daquele único filho que ele finalmente tivera na velhice e unicamente pelo qual podiam realizar-se as promessas divinas. Semelhante renúncia exige a fé em toda a sua obscuridade, pois obriga a esperar contra a esperança mesma (Rom IV, 18).
Uma vocação perdida
Parece incontestável que Dom Lefebvre tenha sido escolhido por Deus para defender a Igreja proclamando a fé. Em todo o caso, foi assim que ele apareceu perante nossos olhos e foi por isso que o apoiamos e auxiliamos. Com efeito, apraz-nos recordar isto em sua honra, ele foi o único bispo católico a erguer-se para cumprir o seu dever de epíscopo, de “vigilante”, de “Doutor da fé”. E, para defender a fé, ele não receou de tratar a chaga com ferro quente e de acusar o Vaticano II de ser “um concílio cismático”. Então, com os aplausos da verdadeira Igreja que reconhece nele a voz do Bom Pastor (Jn X, 14), ele adota a linguagem intrépida de Nosso Senhor (Mt V, 37). Ele afirma sem rodeios: “Essa igreja conciliar é uma igreja cismática… A igreja que afirma erros tais é ao mesmo tempo cismática e herética. Essa igreja conciliar não é, portanto, católica. Na medida em que o papa, os bispos, padres ou fiéis aderem a essa nova igreja, eles se separam da Igreja Católica” (Declaração de 29 de julho de 1976). Jamais então nós teríamos aceitado a ideia de que o autor de palavras tão claras, tão católicas, poderia frustrar nossa expectativa. Por isso, repitamo-lo, com confiança nós o ajudamos e apoiamos. Sem dúvida, mesmo em suas declarações mais claras, notavam-se expressões que desconcertavam, mas a confiança que púnhamos nele fazia-nos tomá-las como tantas fórmulas hábeis, políticas ou mesmo como um estender a mão aos da nova igreja que quisessem se recompor. É pena! Essas ilusões não duraram muito tempo, e, em 1979, foi preciso nos rendermos à evidência: Dom Lefebvre declinava o chamado de Deus. Ao relatar a esquiva do jovem rico do Evangelho, São Mateus sublinha o porquê dela. Esse rapaz “tinha muitos bens” (XIX, 22). E, como ele não se desapegou desses bens, a ideia de abandoná-los impediu-o de responder ao chamado do Mestre. Os muitos bens desse rico não consistiam somente naquilo que ele possuía, mas também na ideia pessoal de que ele se fazia da maneira de obter o reino de Deus. Sem dúvida alguma, esse jovem rico queria operar sua salvação, pois ele interrogou a Jesus o que deveria fazer para obtê-la (Mt XIX, 16). Mas ele não conseguiu resolver-se a abandonar aquilo que possuía, para ir a Deus. É o que constatamos no comportamento de Dom Lefebvre. Por uma série de circunstâncias, ele chegou a possuir seminários, universidades, casas de religiosos, de religiosas, priorados. Considerado por muitos como “o homem providencial”, vítima da imagem que dele se fez, ele é acumulado de honrarias. E hoje ele está preocupado com a sobrevivência de todos esses bens. Só que Deus não o escolheu para isso. Ele é bispo, ele foi escolhido para ser defensor da Igreja, para proclamar a fé, para despertar seus irmãos no episcopado, para chamar as ovelhas abandonadas por seus pastores, e consequentemente para denunciar e condenar, com sua autoridade episcopal, os novos heresiarcas que destroem a Igreja e a fé. Sabemos que é preciso um verdadeiro heroísmo para fazer tudo isso. Sabemos especialmente quanta coragem é necessária para denunciar os poderosos do dia e lançar contra eles o anátema, com o risco de perder bens e reputação. Mas é, no entanto, o que exige o Primeiro Mandamento: amar a Deus mais que tudo e mais que a si mesmo. Dom Lefebvre quer, sim, defender a Igreja, mas levando Deus à sua maneira de ver, ou seja, conservando os bens e a reputação que ele adquiriu. Com este fim, ele descura completamente de cumprir seu dever indo atrás de outros bispos, como se estes últimos pudessem ser seus concorrentes[91]. Com este fim, ele prefere engajar-se num diálogo com aqueles que ele devia condenar. Ele deixou-se fisgar pela isca que os modernistas lhe estenderam. O que ele obteve? Nada. Por que razão? Porque a nova igreja, que não pode lhe conceder nada sob pena de destruir a si própria, despreza-o ao mesmo tempo em que o embala com ilusões, pois ela sabe que ele é seu melhor auxiliar. E os resultados estão aí. Os católicos que, em julho de 1976, fizeram tremer a igreja conciliar, desde a declaração de novembro de 1979 estão divididos e, em grande parte, arrastados à via do cisma e da heresia. Os fundadores da nova religião não eram, em sua maioria, nem monstros, nem inimigos infiltrados no seio da Igreja para destruí-la; eles eram, sobretudo, uns liberais. Crendo possível a união das trevas com a luz, eles avançaram o mais que podiam de mãos dadas com o mundo, que se apresentava a eles sob todas as formas da revolta contra Deus. E, nesse desejo de aproximação, de união, eles foram tão longe, que ultrapassaram os limites da ortodoxia e se separaram da verdadeira Igreja de Cristo. Tal foi a imprudência de Dom Lefebvre. Também ele quis tentar aceitar até o erro, mas interpretado no sentido da Tradição. Nosso Senhor, porém, nos preveniu: “Seja o vosso falar sim quando é sim, não quando é não; todo o restante vem do Maligno” (Mt V, 37). “Um concílio cismático que dá as costas à Tradição e rompe com a Igreja do passado”, “erros ao mesmo tempo cismáticos e heréticos” não podem de maneira alguma ser aceitos por uma alma católica, pois o católico sabe que, julgados pela Tradição, tal concílio, tais doutrinas já estão anatematizados e devem ser rejeitados como heréticos. Comparou-se o prelado de Rickenbach ao bispo de Alexandria. Alguém imagina, sequer por um instante, Santo Atanásio aceitando as teorias de Ário, mesmo interpretadas no sentido da tradição de Niceia? Só de pensar isso, ele já teria tido um sobressalto. O que quer que pudesse lhe custar ser banido de sua diocese e perseguido, como verdadeiro discípulo de Jesus sua linguagem foi sempre sim para confessar a fé e não para rejeitar o erro. O Apóstolo é formal: “Não vos enganeis: de Deus não se zomba” (Gál VI, 7). E o principal castigo do Céu, é ainda o Apóstolo quem o precisa: “Para aqueles que não abriram o coração para o amor da Verdade que lhes teria salvo,… Deus envia ilusões poderosas que os levarão a crer na mentira” (2Tess II, 10-12). Ao invés de reconhecer seu erro e de retornar à doutrina católica, Dom Lefebvre, para justificar sua atitude cismática, fez ser elaborada por seus corifeus toda uma teoria sobre a obediência e a autoridade, teoria cuja heterodoxia denunciamos. Ao mesmo tempo, vieram outras consequências normais da cegueira do espírito: o endurecimento do coração, o zelo amargo, os efeitos da potestade para tentar dividir e esmagar tudo o que não se incline perante o novo Golias, e o desprezo, senão ódio, por quem quer que não se resolva a pensar como ele. “Se teu irmão pecar contra ti, vai e corrige-o” (Mt XIII, 15). Esse dever da caridade fraterna, Dom Lefebvre não o observou nem conosco, se estivéssemos errados, nem com os seus irmãos no episcopado. A observação de Caim, “Sou eu o guarda de meu irmão?” (Gên IV, 9), caracteriza toda a sua conduta. Sua dureza de coração é tamanha, que ele permaneceu surdo até mesmo às súplicas que lhe foram endereçadas. Esse endurecimento de Dom Lefebvre não pode ser senão consequência de seu apego a seus bens. Como então não nos recordarmos da constatação de Jesus: “Como é difícil um rico entrar no Reino dos Céus!” (Mt XIX, 23).
O tempo da correção fraterna
“Se teu irmão pecar contra ti, vai e corrige-o entre ti e ele só; se ele te ouvir, terás ganhado o teu irmão”. Foi para responder a esta ordem do Mestre que, num primeiro momento, tentamos resolver essas contendas por correspondência particular. Essa iniciativa havendo se defrontado com um silêncio desdenhoso, seguimos o segundo conselho de Nosso Senhor: “Se teu irmão não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que toda a questão se decida pela boca de duas ou três testemunhas”. O Prior de Bédoin, Dom Gérard, tendo se recusado, nós incumbimos dois membros de nossa União a ir pessoalmente levar uma nova carta particular a Dom Lefebvre, uma vez mais em vão. Aí então, acrescenta o Mestre: “Se ele não os ouvir, dize-o à Igreja”. Eis por que tornamos públicas as nossas iniciativas, esperando que o prelado tomasse consciência do escândalo que ele causava e, percebendo a gravidade da situação, se arrependesse afinal. Ainda outra vez, foi em vão. “Se ele não ouvir tampouco à Igreja, considera-o como um pagão e um publicano” (Mt XVIII, 15-18). Chegamos a esse ponto. Que o leitor se tranquilize: não consideramos que sejamos a Igreja nem que sejamos o Magistério, e não nos atribuímos jurisdição alguma. Mas, se bem que não sejamos a Igreja, nós somos da Igreja e, sendo da Igreja, temos não apenas o direito como o dever de conhecer a doutrina, de vivê-la, de proclamá-la e de “insistir a tempo e fora de tempo, repreender, ameaçar, exortar, com toda a paciência e sempre instruindo com a doutrina” (2Tim IV, 2). Instruir recordando a doutrina católica, insistir a tempo e fora de tempo, repreender, ameaçar recordando as censuras que a Igreja inflige para os delitos precisos: é o que fizemos com paciência, muito especialmente em nossa revista. É o que estamos fazendo também hoje. Temos o direito e o dever de recordar e proclamar a doutrina católica, e de denunciar como hereges aqueles que, com obstinação, professam doutrinas ou adotam comportamentos já condenados pelo Magistério. Pois, não nos esqueçamos disto, as decisões irreformáveis do Magistério permanecem inclusive durante a vacância da Santa Sé. E, como a Igreja é um corpo vivo, sempre dirigida diretamente por Cristo, que prometeu estar conosco até o fim dos tempos, sempre vivificada pelo Espírito Santo que é a alma dela, ela não cessa de ter por seus membros o instinto de conservação que se encontra em todos os seres vivos. Quando um pastor se transforma em mercenário, cabe a todos e cada um gritar “lobo!”. É para cumprir esse dever que nós queremos, em conclusão, denunciar publicamente Dom Lefebvre e pôr em guarda contra ele. Seu comportamento é cismático. É o Direito da Igreja que o diz: “É cismático quem, tendo recebido o batismo e não rejeitando a qualidade de cristão, recusa com pertinácia seja submeter-se ao Soberano Pontífice, seja manter comunhão com os membros que a este são submissos”[92]. Que João Paulo II não seja mais que um impostor não muda nada no caso de Dom Lefebvre. Quem mata um homem que não é seu pai, mas que ele considera como tal, comete o pecado de parricídio. Assim também, desobedecendo em tudo a quem ele considera como sendo o papa, Dom Lefebvre é cismático [N. do T. – Cf., porém, o Apêndice 1]. Para justificar seu comportamento, ele invoca razões heréticas, negando com pertinácia a infalibilidade do Papa tal como foi definida pelo Concílio Vaticano [I].
Em consequência, a caridade, que é o amor de Deus acima de tudo, faz com que seja um dever, para nós, romper publicamente com ele e com os que optam por sua dissidência. É a ordem do Mestre: “Considera-o como um pagão e um publicano” (Mt XVIII, 18). Quanto aos fiéis, eles devem recordar-se de que a Igreja sempre proibiu a “communicatio in sacris” com os herético-cismáticos. Ainda que alguns dos sacramentos deles sejam válidos, é formalmente interdito aos fiéis recebê-los, excetuando a penitência em perigo de morte[93]. Cumpre deter-se aí? Não, pois resta a graça de Deus. É por isso que nós queremos ainda dirigir um apelo à conversão para todos os desviados. Nós o dirigimos primeiro e sobretudo a Dom Lefebvre. Uma vez& mais nós o adjuramos, por amor a Cristo crucificado e à sua Igreja, a voltar a si, que perceba o seu erro e que o repare. Quaisquer que tenham sido as suas intenções, que não cabe a nós apreciar, nós lhe recordamos o que já escrevemos dele em 1980. Escolhido por Deus, esse prelado não o foi somente enquanto batizado, mas na sua condição de bispo. Ora, o primeiro, o principal dever de um bispo não é nem o de confirmar, nem o de ordenar sacerdotes, nem o de fundar priorados, mas o de guardar e transmitir o Bom Depósito da fé. Não pode assegurar a transmissão do Bom Depósito o bispo que não mobiliza todas as suas forças, “doando-se a si mesmo por inteiro” (2Cor XII, 15), para que outros bispos se levantem também e, com ele, assegurem dentro da ortodoxia a sucessão apostólica, a fim de que a Igreja obtenha o quanto antes um Papa. Desse primeiro dever de seu encargo, dessa vontade expressa de Deus para ele, Dom Lefebvre obstinadamente esquivou-se. Não lhe resta senão lamentá-lo, confessá-lo e fazer penitência por isso. Sem dúvida, a conversão é sempre muito penosa para a natureza, mas a graça de Deus, que nunca falta, está presente, pois ninguém é tentado acima de suas forças. O que conta, assegura-nos o Evangelho, não é ter começado bem, mas é findar bem.
PONTO FINAL
Ponto final, dissemos nós. Pois cumpre bem concluir um dia. Ninguém pode escapar a esta prova da verdade. Dom Lefebvre e sua organização estão no cisma [N. do T. – Cf., porém, o Apêndice 1]. É brutal, mas é certeza. É tentador introduzir dúvidas lá onde existe claridade, prolongar as interrogações lá onde há resposta, pois esta última é prenhe de consequências custosas e dilacerantes. Nós sabemos: “Eu não vim trazer a paz, mas a espada. Porque vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra; e os inimigos do homem serão seus próprios domésticos” (Mt X, 34-36). Por qual razão Deus permite o mal? Porque Ele é assaz poderoso para dele tirar o bem: “Nós sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom VIII, 28). Deus permitiu a crise que sacode a Igreja para purificar a fé dos seus, “a fim de que a prova da vossa fé, muito mais preciosa que o ouro (o qual, embora perecível, se prova com fogo), se ache digna de louvor, de glória e de honra, quando Jesus Cristo se manifestar” (1Pdr I, 7).
Deus permitiu também a queda de Dom Lefebvre. Essa queda, agrada-nos sublinhar, foi para alguns ocasião de um despertar salutar. Ela pode-o ser ainda para muitos. Mas, para superar a provação e dominá-la, é preciso amar a linguagem única da verdade, aceitar ver lucidamente os fatos.
Um caminho sem saída
Os dirigentes do meio tradicionalista praticam a linguagem dupla. Há a fachada, e a realidade. A fachada é a perfeita união, entre si e entre eles e a Fraternidade. Na linguagem estereotipada deles [langue de bois], tudo vai de vento em popa no melhor dos mundos: fala-se invariavelmente desse “querido Monsenhor”, do “excelente e bom padre Coache” etc. Mas, ao lado dessas pantominas oficiais, existe outra realidade, uma outra linguagem, reservada aos iniciados. Desse ponto de vista, a leitura dos numerosos panfletos desse meio é muito instrutiva. Fica-se sabendo por aí, por exemplo, que o bom Pe. Coache, promotor da grande fraternização dos dirigentes, Dom Lefebvre incluso, que redundou no comunicado de 28 de maio de 1981, tem dificuldade de se fazer seguir quando tenta mobilizar seus colegas numa ação comum. Basta ler o Combat de la Foi com atenção, para compreender a mentalidade de seu autor e, indiretamente, a dos outros. No cair da noite mesma do célebre comunicado, o bom padre lança a ideia de um grande mutirão em Roma. No seu folheto de 7 de junho, ele precisa: “Eu espero um grande esforço de todos, o auxílio dos confrades e, sobretudo, de ‘dirigentes’. Monsenhor Lefebvre, consultado em Rickenbach e em Flavigny, olha para esse projeto com simpatia, mas eu desejo ardentemente mais, ou seja, ou o patrocínio oficial dele, ou sua participação como peregrino (um peregrino de renome!)…”. Mas o bom padre perderá seu tempo: nenhum eco havendo respondido às suas esperanças, ele tem de anular embaraçosamente a manifestação e transmutá-la numa nova peregrinação a Lourdes. Também para esse local menos comprometedor ele conta com o apoio de seus caros colegas e daquele “querido Monsenhor”! Mas ele, outra vez, tem de perder as ilusões. Leiamos antes seu folheto de 25 de janeiro de 1982: “Minha defesa de Monsenhor é tanto mais desinteressada quanto jamais pôde ele desprender-se para vir presidir uma grande procissão de Corpus Christi em Monjavoult ou Flavigny, nem um grande mutirão em Roma ou em Lourdes, honra concedida a outros Movimentos: mas ele é tão procurado!” Após esta admissão repleta de franqueza, ele convida à operação da última chance: “Se puderdes, por vossas numerosas cartas, convencer Sua Excelência Monsenhor Lefebvre a vir, não para presidir, caso ele não queira, mas a vir fazer uma conferência doutrinal sobre a Santa Eucaristia, num desses três dias, seria perfeito!” Em se tratando de perfeição – o procedimento haveria desagradado? – o Pe. Coache tece em 25 de março esta amarga constatação: “Eu não sei por que, mas bons padres fiéis, jovens padres de priorados mostram indiferença pela Peregrinação ou mesmo desaconselham participar nela; é por algum mal-entendido, sem dúvida alguma, e essa atitude não vem de seus superiores”. Com ou sem mal-entendido, a paciência do Pe. Coache tem seus limites. Ele também dá um jeito, no mesmo folheto, de atingir certos padres da Fraternidade São Pio X. Pondo em guarda contra o ensinamento de Jean Borella, ele dispara uma nota assassina em direção do Instituto Universitário São Pio X: “Quando de uma conferência feita por esse professor numa Casa de formação tradicional, todas as dez linhas continham alguma fórmula modernista, pró-herética ou panteísta, mas, que eu saiba, ninguém se queixou”.
O Pe. Coache não é o único a ter seus cabeças-de-turco. Recordemos, por exemplo, as amenas declarações do mundaníssimo, se bem que um pouco desgastado, Mons. Ducaud-Bourget, feitas a Monde et Vie de 26 de fevereiro de 1982: “Eu vos direi que os falsos irmãos já se encontravam nas páginas e colunas de boletins ou revistas ‘tradicionalistas’ para caluniar-nos absurdamente. Fui acusado de ser franco-maçom, de ter me desviado, de não transmitir mais a doutrina católica etc. Todos eram leigos com pruridos teológicos e que teriam feito bem de consultar antes o catecismo…”. Até aí, se poderia pensar que os únicos visados são os sórdidos redatores do Boc, mas a sequência tudo esclarece: “que teriam feito bem de consultar antes o catecismo para aprender o que é a Missa, antes de criticar ridiculamente e odiosamente os sermões de alguns de nossos excelentes padres…”. De fato, o antigo dignitário da Ordem de Malta não tem outra ambição que não a de atacar violentamente o grande defensor da tradição e benemérito Jean Madiran. Um dos colaboradores deste último em Itinéraires teve a impertinência de assinalar os erros grosseiros do Pe. Simoulin, o protegido de Mons. Ducaud-Bourget. Poder-se-ia continuar longamente a lista dos acertos de contas, mas basta ler os escritos de todos esses amáveis dirigentes para ficar edificado com a profundidade real dos vínculos de pretensa unidade que os ligam uns aos outros: vede como se amam! Para dizer a verdade, não pensamos que o fato seja totalmente desconhecido do público. Nesse meio ávido por mexericos, familiarizado com a fofoca de sacristia, muitos estão a par do que pensa este ou aquele. De fato, boa parte da população tradicionalista está de acordo, pois no fim das contas cada qual obtém sua parcela de satisfação na linguagem dupla: o essencial não é manter, custe o que custar, a sua rotinazinha, na qual se harmonizam maravilhosamente a “missa da nossa infância” e a gazeta semanal das mesquinharias de emigrados do interior? Em que sentido uma situação dessas tende a evoluir? Nem é preciso dizer que, no imediato, é a Fraternidade que abocanha a parte do leão. Todos os demais estão em declínio e veem-se constrangidos a submeter-se ou demitir-se. É por essa razão que se assiste atualmente a uma partilha entre dois grupos de tendências: uns buscam inserir-se na mouvance da evolução lefebvrista, os outros tentam salvar o que pode ser salvo. O primeiro grupo, que reúne provisoriamente Madiran e Salleron com Itinéraires e Présent, Michel de Saint-Pierre com Credo e sua habilidade mundana, a Entente Catholique de France e alguns outros, constitui uma espécie de partido do movimento, pronto a examinar toda e qualquer compromissão que permita obter da nova igreja, senão alguma cadeira de braços presidencial, ao menos algum assento secundário. O segundo grupo, que reúne o mundano-clerical Ducaud-Bourget, o malfadado Pe. Coache e todos os nostálgicos dos bons velhos tempos tradicionalistas, o partido da ordem, cujo conservadorismo é ora lamuriento, ora francamente inquieto. Os termos políticos que utilizamos aqui para a comparação não são usurpados. É que, efetivamente, toda essa gente, que até aqui passavam por defensores da fé, baldearam-se para o naturalismo. Todos esperam a solução da crise atual mediante seus conluios [leurs ‘combinazione’] puramente humanos. Eles se gabam de suas obras, dão testemunho de si mesmos, adoram expor suas conquistas materiais, enquanto, agindo assim, eles se destroem. Aos olhos de Deus, o que vale um mosteiro de um milhar, um organograma de três páginas, senão aquilo que valem o bronze que soa e os címbalos que retinem? Tanto mais que, mesmo de um prisma unicamente humano… E tal é a razão última pela qual essa vasta impostura acabará. A linguagem dupla dos dirigentes é a mentira, e dessa mentira nada restará. Se o curto prazo a deixa subsistir, o longo prazo trará necessariamente a ruína. E isso não somente porque o tempo corrói, esse tempo que já desgastou a fé da maioria, mas também por simples razões de evolução interna.
Do lado da nova igreja, está claro que as perspectivas são totalmente sem horizontes. Oficialmente, se aceitará talvez Canossa, ou seja, uma retratação pública e penitente, mas, na prática, é bem menos certo: pois os modernistas são rancorosos, e tudo o que eles desejam é a morte de seus inimigos e nada mais. Todo o restante é da ordem do sonho. Mas, falando francamente, quem duvida, dentre os protagonistas da adesão? Na realidade, nenhum dos calorosos partidários atuais do João Paulo II “em abstrato” (o João Paulo II real, eles não querem conhecê-lo) tem a mais mínima intenção de se subordinar aos hierarcas da nova igreja. A verdade é que todos eles são acéfalos. E a Fraternidade está, também aqui, na crista da linguagem dupla: embora os seus militantes desenvolvam hábeis teses [force thèses] para justificar o poder estabelecido dos inimigos da Igreja, nem por isso ela deixa de ter um desenvolvimento totalmente independente e de se constituir em seita autônoma. Vê-se que o futuro é, em todos os casos, tributário não tanto das negociações reais com a nova igreja, mas antes muito mais do pós-lefebvrismo. Atualmente, a máscara de uma unidade de fachada permanece inteira na presença de Dom Lefebvre. Mas ele não é eterno, e os amanhãs prometem. Muito logicamente, tudo desabará após o seu falecimento. Sua presença permite manter o mito da unidade dos tradicionalistas, ao menos para o grande público. Mas depois? Alguém imagina os padres Coache, Ducaud-Bourget e Dom Gérard beijando o anel do bispo Aulagnier? Um caso como a contenda Madiran-Simoulin pode ser hoje reabsorvido, ao menos para salvar as aparências. Mas quem conhece, por minimamente que seja, os dois lados das moedas, sabe até que ponto tais equilíbrios são precários. Depois que o homem providencial falecer, o fogo latente tornar-se-á, inelutavelmente, um incêndio.
Apêndices
(acrescentados pelo tradutor):
Retratação de um ponto importante, pelo Padre Barbara
[N. do T. – Na última edição da revista por ele editada durante décadas, o Rev. Pe. Noël Barbara, aos 83 anos de idade, publicou a seguinte retratação (trad. br. a partir da ed. ingl., Fortes in Fide, 1.º trimestre de 1993, n.º 12.]
“Eu faço a declaração seguinte numa tentativa de prevenir certas críticas que fatalmente serão levantadas: Nunca é fácil nem agradável ter de admitir publicamente um erro. Mas, para quem se dispõe a refletir sobre a questão, uma tal admissão, contanto que seja sem benefício para o indivíduo que a está fazendo, manifesta a honestidade da pessoa e aumenta a sua credibilidade. Na situação presente, além da humilhação que inevitavelmente acompanha a minha confissão; além da legítima satisfação que resulta de reparar uma injustiça, por mais involuntária que seja; e além de melhor servir à Igreja, esta admissão não me traz benefício algum. […]
Em 1988, após retomar a tarefa de editar esta Revista, notando que a direção que a Fraternidade São Pio X estava tomando criava mais e mais problemas para as consciências dos verdadeiros resistentes, fui levado a estudar a questão da heresia e do cisma mais detalhadamente. Revi especialmente as necessárias condições, requeridas pela lei, para impor as censuras que esses crimes exigem. Dei-me conta, então, do fato de que nós, da Union pour la Fidélité, éramos culpados por criar séria confusão com respeito aos juízos exprimidos acerca do arcebispo Dom Lefebvre e de seus padres. Inquestionavelmente, a conduta deles, assim como as razões que eles apresentaram visando justificar seus atos, não eram católicas. Mas, a despeito disso, eles não podiam ser considerados hereges ou cismáticos formais, contrariamente ao que havíamos crido. O que escrevêramos fora dito de boa fé, o que nos escusa da falta, mas, ao mesmo tempo, não nos escusa de modo algum da necessidade de fazer reparação, tão logo percebemos que estávamos em erro. Foi isso que eu fiz. Retratei isso previamente em minha ‘Nouvelle lettre du Père Barbara’.
[…]
Para ajudar os meus leitores a entender melhor a importância desta observação, eu gostaria de recordar um fato. É o de que, desde o início de sua resistência, o fundador de Écône comportou-se como um herege e também como um cismático. Afinal, foi ou não foi desde o começo que o arcebispo Dom Lefebvre alegou, contra a Fé Católica, que um verdadeiro papa poderia publicar um ‘Novus Ordo’ para a Igreja universal que pusesse a fé dos fiéis em perigo? Ele não alegou por um longo tempo que, no interior de sua função de papa, o legítimo sucessor de Pedro é capaz de ensinar erros para a Igreja inteira e, malgrado assim fazer, continuar sendo formalmente papa? Finalmente, desde o início de sua resistência ele se comportou de maneira cismática. É ou não é verdade que ele recusou a Missa Nova, os novos sacramentos, a liberdade religiosa e todas as reformas impostas por aqueles que ele reconhece como verdadeiros papas na Igreja Católica, tanto para si próprio como para a sua Fraternidade? Na ordem prática, ao comportar-se desse modo, o arcebispo dom Lefebvre recusa-se a reconhecer a jurisdição deles sobre os empreendimentos dele. Como é que essa maneira de agir difere daquela do Patriarca caldeu durante o reinado de Pio IX? Pessoalmente, não consigo ver diferença alguma. [17. Esse Patriarcado, embora declarando-se em submissão ao Papa, recusava-se a obedecê-lo. Na sua Encíclica ‘Quae in Patriarcatu’ (9 de janeiro de 1876), Pio IX tratou do clero e dos fiéis de rito caldeu. O Papa explicou: ‘De que adianta reconhecer com orgulho a supremacia de Pedro e de seus sucessores? De que adianta repetir incessantemente declarações de Fé Católica e de obediência à Sé Apostólica, quando essas belas palavras são contraditadas pelas próprias ações?’ (Cf. Solesmes, ‘L’Église’, t. 1, n.º 433-434).]
Dado que o arcebispo Dom Lefebvre comportou-se de um jeito que é tanto cismático quanto herético desde o início de sua resistência, caso não se faça a distinção importante entre heresia formal e comportamento herético, entre cisma formal e comportamento cismático, concluir-se-ia que todos aqueles que se permitiram ser ordenados por ele incorreram nas censuras pré-determinadas pela Igreja para ‘communicatio in sacris’ com um acatólico. Que pessoa inteligente ousaria sustentar uma opinião dessas? […]
Onde foi que errei quando eu disse que o fundador de Écône era um cismático formal e um herege formal? Eu fiz confusão e não logrei distinguir entre o herege e a heresia, isto é, confundi o pecado objetivo ou material com o pecado subjetivo ou formal. Objetivamente, o comportamento do arcebispo dom Lefebvre e de seus padres é, claramente, cismático e também herético. Mas, salvo um reconhecimento pessoal da falta presumida ou uma declaração pela Autoridade competente, que não existe no momento, ninguém pode declarar que o arcebispo Dom Lefebvre ou os padres da Fraternidade são formal e subjetivamente tais. Na realidade, há sérias indicações do contrário. O único juízo que podemos fazer acerca deles, quando os vemos comportar-se desse modo e quando ouvimos as explicações deles, é o de que eles são escandalosos e dão escândalo para a fé.”
Breve notícia histórica sobre a obra, pelo Prof. N.M.
O Padre Barbara (1910-2002) foi (notadamente) o diretor da revista Forts dans la Foi [Fortes na Fé]. Sem embargo, “Écône, point final” [Écône, ponto final], que é um número da dita revista, não foi redigido por ele. Esse número data de sua colaboração com as pessoas do Institut Cardinal Pie[Instituto Cardeal Pie] e nele encontramos, ademais, o estilo e a maneira de ver e julgar as coisas tão característicos deles. Há, pois, muito provavelmente aí o dedo de Bernard Dumont e do Pe. Claude Barthe… Com o recuo, isso provoca um sorriso… ou um suspiro! É notório que o Pe. Barthe é una cum Bento XVI e, presentemente, um dos mais ardentes artífices do “acordo”. Quanto a Bernard Dumont (apenas simples leigo, mesmo tendo sido seminarista em Roma na juventude), as coisas são menos evidentes… Seja como for, esses dois protagonistas e seus discípulos romperam com o Padre Barbara em 1987. Desde então, eles se lançaram definitivamente numa empreitada de entrismo no meio “conservador”, onde seu sedevacantismo (completo, e vigorosamente anti-guérardiano, diga-se de passagem) tornara-se uma espécie de mistério reservado aos iniciados…
Como dizia o Padre Barbara (ouvi isto da boca dele): Nosso Senhor caminhou sobre as águas, Ele não brincou de submarino!
[1] Em Écône a 29 de julho de 1976 (entre outras).
[2] Cf. Forts dans la Foi n.º 3 NS [Nova Série], pp. 193-236.
[3] Foi por termos procedido assim que a nova série da nossa revista viu-se em aparente descontinuidade com a antiga. Não falta quem hoje, tal como o bom padre Coache, tire daí argumento contra nós e nossas supostas oscilações, como se o fato de progredir no aprofundamento e na exposição da doutrina cristã constituísse uma falta imperdoável.
[4] Especialmente às livres elucubrações do Pe. Williamson (cf. Forts dans la Foi n.º 2 NS, pp. 101-126), ou às do Pe. Philippe Le Pivain, sem esquecer o recente factum de G. Salet (cf. o suplemento a Forts dans la Foi n.º 9 NS).
[5] Cf. Forts dans la Foi n.º 7 NS, pp. 1-12.
[6] Segundo a expressão de Dom Lefebvre, em 27 de junho de 1980 (cf. Fideliter n.º 16, p. 9).
[7] Como por exemplo o bom Pe. Coache, Doutor em Direito Canônico, que respalda as delegações ilícitas, mas sobretudo inválidas, do poder de confirmar concedidas a simples padres da Fraternidade São Pio X.
[8] Alocução pronunciada com ocasião da jornada de encontro de associações católicas internacionais, 20 de abril de 1976.
[9] Cf. a este respeito [o livro]: Le devoir des catholiques, edições Forts dans la Foi, 1981.
[10] “Após a 2.ª sessão do Concílio, façamos um balanço sob a condução do sucessor de Pedro” [Après la IIe session du Concile, faisons le point sous la conduite du successeur de Pierre], 21 de janeiro de 1964, suplemento à revista Itinéraires, n.º 81. É espantoso encontrar nesse resumo positivo a liberdade de expressão nos debates e tudo o que foi feito durante as duas primeiras sessões: constituição sobre a liturgia, decreto sobre os meios de comunicação social, a Revelação, o episcopado, etc.
[11] Op. cit., p. 16.
[12] Dom Lefebvre, J’accuse le Concile [Eu acuso o Concílio], Saint-Gabriel, 1976, p. 109.
[13]Conferência em Viena, em 9 de setembro de 1975.
[14] Não sabendo, de início, se devia fazer um seminário independente ou enviar os seminaristas à universidade, Dom Lefebvre consultou o cardeal Journet. Este respondeu: “Não coloqueis todos os vossos seminaristas na universidade. Fazei uma casa de formação. 80% dos vossos seminaristas não são feitos para estudos universitários…” (palavras relatadas por Dom Lefebvre, Des prêtres pour demain [Padres para amanhã], Saint-Gabriel, 1973, pp. 10-11). O pessimismo do cardeal Journet no que respeita às tropas de Dom Lefebvre viria a revelar-se, na sequência, um profundo realismo.
[15] Esta carta do Pe. Coache ao Padre Barbara, datada de 21 de fevereiro de 1974, o testemunha: “Visitei Dom Lefebvre em Albano. Fui muito bem recebido; jantei e dormi. Todavia retorno muito decepcionado (pela Causa!). Malgrado suas boas e afetuosas palavras, está claro que Dom Lefebvre recusa-se a colaborar na questão do Seminário; a benevolência dele é a de uma neutralidade repleta de simpatia (o que ele disse em Lille na conferência dele, acerca do Seminário – conforme o que ele próprio me relatou – manifesta claramente que ele não quer ter nada que ver com a nossa obra, salvo aprovando calorosamente uma tal iniciativa, assim como ele pode aprovar a iniciativa deste ou daquele tradicionalista que lhe pareça oportuna!). Quando pedi a ele que assinalasse, no pequeno boletim dele, a nossa fundação e a colaboração que ele dissera que viria a nos dar, ele recusou! Eu disse a ele que as pessoas não compreenderiam o silêncio dele, em se tratando de uma obra de Seminário (pode ser que, no fim das contas, ele insira duas linhas, mas de tal maneira que se veja que não se trata de obra sua). Ele tem um temor intenso, por um lado das reações dos Bispos, por outro de que os demais tradicionalistas o acusem de ‘se identificar’ com o ‘Combat de la Foi’. Eu disse a ele que não era uma questão de identificação, mas que a verdade devia ser a base de tudo, e que, sobre essa base, ele devia mostrar-nos particular simpatia e colaboração, e, portanto, comprometer-se caso fosse preciso”. Em carta datada de 21 de maio de 1974, o Pe. Coache acrescenta: “Voltando à questão do Seminário: é aí que Dom Lefebvre se mostra culpado. Ele pode ter padres e não quer se comprometer nos ajudando. Eu farei saber aos doadores que não somos ajudados”.
[16] Carta aos Amigos e Benfeitores n.º 5, 3 de outubro de 1973.
[17] Carta aos Amigos e Benfeitores n.º 9, 3 de setembro de 1975.
[18] Os jornalistas compreenderam, mais tarde, que serviço eles prestavam a Dom Lefebvre. O ultraprogressista Henri Fesque escreve em Le Monde de 17 de setembro de 1976: “Não seria hora de os católicos, de um lado mudar de assunto de conversação e de preocupação e, de outro lado, para alguns deles, de não fazer de Dom Lefebvre uma vítima, ou um mártir. Écône está mais para uma manobra em falso do que para um drama”. Desde então os jornalistas parecem haver tirado a lição e deixado Dom Lefebvre num esquecimento desdenhoso, em conformidade com os desejos da igreja conciliar: “Ao meu conhecimento, se o Vaticano não fez declaração este ano por ocasião das ordenações celebradas por Monsenhor Lefebvre, isso não significa de modo algum que ele tenha mudado de atitude com relação a esse Bispo que continua suspenso e que sabe muito bem que ele não tem o direito de proceder a ordenações… O Vaticano bem sabe que toda nova declaração a esse respeito faz falar mais de Monsenhor Lefebvre nos mass-media, o que redunda em dar a ele mais importância. Basta pensar no que se passou durante o verão de 1976, em que não se podia abrir um jornal ou um noticiário de rádio sem encontrar um artigo ou uma emissão sobre Monsenhor Lefebvre” (carta do arcebispo de Marselha, Roger Etchegaray, a G.H., em 1º. De julho de 1981).
[19] Le Monde, 14 de novembro de 1976. A opinião de Dom Lefebvre quanto ao apoio que lhe seria dado pela maioria dos católicos franceses é, convenhamos, no mínimo otimista.
[20] Carta aos Amigos e Benfeitores n.º 13, 17 de outubro de 1977.
[21] Carta ao presidente da Una Voce, a 17 de setembro de 1976.
[22] Cor Unum, outubro de 1979.
[23] Citemos por exemplo as declarações de Mons. Ducaud-Bourget feitas ao microfone da rádio Europe n.º 1 e reproduzidas pelo jornal Le Républicain Lorrain, a 20 de março de 1980: “Desde o início de seu pontificado, tudo o que João Paulo II disse oficialmente como ensinamento está perfeitamente dentro da linha tradicional… O ensinamento do Papa concorda com aquele que recebi oitenta anos atrás”. Ocorre de as memórias de oitenta anos não serem mais tão fiéis.
[24] “‘Deus tal não permita, Senhor! Não te sucederá isto.’ Mas Jesus, voltando-se para Pedro, disse-lhe: ‘Retira-te de mim, satanás, tu serves-me de escândalo; porque não tens a inteligência das coisas de Deus, tens somente pensamentos humanos.’” (Mt XVI, 22-23). A fé vacilante de Dom Lefebvre é um pouco curta para negar os fatos.
[25] Cor Unum, novembro de 1979.
[26] Testemunha-o esta confidência de Paulo VI a Jean Guitton: “Essa missa dita de São Pio V, como ela é vista em Écône, torna-se o símbolo da condenação do Concílio. Ora, eu não aceitarei em nenhuma circunstância que se condene o Concílio mediante um símbolo. Se essa exceção fosse aceita, o Concílio inteiro seria abalado. E, por via de consequência, a autoridade apostólica do Concílio” (Jean Guitton, Paul VI secret, DDB 1979, p. 132).
[27] O inquérito efetuado pelo Cardeal Knox sobre o uso do latim e sobre a Missa de São Pio V revela que 0,22% dos bispos que responderam seriam favoráveis a uma concessão da verdadeira Missa, isso como mal menor e para evitar problemas. Essa porcentagem representa o peso objetivo dos tradicionalistas no mundo. À luz dela, a assertiva de Dom Lefebvre segundo a qual 52 % dos católicos franceses compartilhariam de seus pontos de vista é de um ridículo exagero.
[28] Dá para imaginar os padres Aulagnier, Bolduc, Lorans e outros abandonando suas vantajosas situações e tornando-se simples vigários de “subúrbios vermelhos”?
[29] Cf. Forts dans la Foi n.º 3 NS, p. 214.
[30] Cf., entre outras, as teses já citadas do Pe. Williamson reproduzidas e refutadas em Forts dans la Foi n.º 2 NS.
[31] Cf., entre outras, as teses do Prof. Roger Lefebvre, difundidas pela revista Fideliter (n.º 20, março-abril de 1981) e refutadas em Forts dans la Foin.º 7 NS.
[32] Quando, numa circunstância excepcional, uma alma de boa vontade se vê confrontada com algo que constitui dificuldade para a sua fé, dificuldade cuja malícia desconcerta o conhecimento que essa alma tem das verdades da fé, o instinto de fé atua e permite a essa alma superar essa dificuldade. A alma supera-a, não por meio de um raciocínio (que ela não está em condições de fazer), mas por um reflexo sobrenatural, pelo instinto da fé que é a reação normal de quem é movido pelo Espírito de Jesus. Superada a dificuldade, tendo o instinto desempenhado o seu papel, ele cessa de agir explicitamente. É a alma que, havendo saboreado a verdade divina, deve agir também por si mesma, para melhor assimilar essa verdade vislumbrada, esclarecendo a sua fé pelo estudo da doutrina, e desenvolvendo sua virtude pela produção de atos de fé.
[33] Declaração de 21 de novembro de 1974.
[34] Gardons la foi, Saint-Gabriel, 1974.
[35] Un évêque parle [Um bispo fala], DMM, 1974, p. 208.
[36] Carta aos amigos e benfeitores n.º 18, Domingo Quasímodo de 1980.
[37] Carta a João Paulo II, 24 de dezembro de 1978.
[38] Diga o que disser o prelado sobre isso, os seminários selvagens, as ordenações sem cartas demissórias, as confirmações e as confissões sem jurisdição, são práticas contrárias ao que sempre se fez na Igreja. À exceção dos herético-cismáticos que não reconhecem a Igreja Católica como única arca da salvação e não pertencem a ela, jamais algum bispo ou santo qualquer que seja abriu um seminário, uma universidade, um local de culto, mesmo privado, administrou os sacramentos sem a autorização prévia do Ordinário do local, menos ainda afrontando sua proibição, a menos que o tivesse denunciado antes como herege e agido publicamente em consequência disso, como fez Santo Atanásio em seu tempo.
[39] Resposta escrita à Congregação para a doutrina da fé, 13 de janeiro de 1979.
[40] Declaração de 21 de novembro de 1974.
[41] Cor Unum n.º 1, p. 6.
[42] Carta aos amigos e benfeitores n.º 9, 3 de setembro de 1975.
[43] Declaração de 21 de novembro de 1974.
[44] Resposta à Congregação para a doutrina da fé, quando dos colóquios de 11 e 12 de janeiro de 1979.
[45] Le coup de maître de Satan [O golpe de mestre de Satanás], Saint-Gabriel, p. 12.
[46] Comunicado à Agência France-Presse, 12 de julho de 1976.
[47] Carta aos amigos benfeitores n.º 14, 19 de março de 1978.
[48] Carta à Srta. T., 15 de março de 1974. A carta do Pe. Coache ao Padre Barbara datada de 21 de fevereiro de 1974 é, a esse título, assaz instrutiva: “O pior é a questão da Missa. Ele não gosta nada do Abbé de N[antes] (ele me repetiu isso e afirma não ter nenhuma relação com ele); no entanto, sua posição se iguala à dele; com efeito, Mons. L[efebvre] me comunicou seu ponto de vista: é melhor ter a missa nova que não ter Missa; é mais seguro, para não arriscar de perder a fé, ir à missa nova do que não ir a nenhuma… Ele não dá mostras de querer admitir discussão sobre esse ponto; de resto, tenho recebido nestes dias uma porção de cartas de correspondentes que se escandalizam com essa posição de Mons. L[efebvre]!!!” Felizmente para a fé deles, os padres e os fiéis que, ao longo de muitos anos, percorreram as estradas para salvar a Missa, não seguiram o conselho de Dom Lefebvre. Se o tivessem feito, este último se encontraria depressa, aliás, bem sozinho. Acrescentemos que, em matéria de nova missa, Dom Lefebvre sabe unir o gesto à palavra e dar o exemplo. A 30 de junho de 1980, por ocasião das obséquias de um membro de sua família, acompanhado pelo Pe. Simoulin, ele assistiu de forma ativa a uma “missa de Lutero” inteiramente ao gosto do dia.
[49] Le Figaro, 4 de agosto de 1976.
[50] Carta a João Paulo II, 24 de dezembro de 1978.
[51] Declaração de 8 de novembro de 1979.
[52] France-Soir, 4 de agosto de 1976.
[53] Le Figaro, 4 de agosto de 1976.
[54] Gardons la foi, Saint-Gabriel, 1974, p. 25. Dom Lefebvre acrescenta uma observação cuja profundidade teológica se apreciará: “Se o papa tivesse dito que faria um concílio dogmático, o Espírito Santo teria sido empenhado, e essas coisas não teriam podido ser feitas; Ele teria feito cair uma bomba atômica em São Pedro… sei lá, mas teria sido impossível”. A infalibilidade da Igreja preservada pela bomba atômica, uma opinião teológica decididamente contemporânea, mas, convenhamos, indigna de um bispo.
[55] Na sua resposta à Congregação para a doutrina da fé, já relatada, Dom Lefebvre “desculpa” assim suas declarações: “Se, nos meus discursos, expressões um pouco exageradas podem ter sido pronunciadas, há que levar em conta o gênero literário”. ‘Igreja cismática’, ‘igreja herética’: o gênero literário do prelado de Écône é bastante corrosivo, mas sua escapatória é bem lastimosa.
[56] No seu Combat de la Foi de 25 de março de 1982, o Pe. Coache distingue “desobediência a decretos precisos e recusa de reconhecer o princípio da obediência ao Papa” (destaque dele) para melhor afirmar que ele pratica tão somente a primeira. Quem o Pe. Coache pensa que engana? Pois gostaríamos muito de saber no que é que ele obedece a João Paulo II. Na realidade, como muitos de seus confrades dirigentes, ele desobedecia em tudo salvo… no que se refere aos estipêndios da Missa. Eis o que é bem pobre para constituir um modelo de obediência. A hipocrisia do Pe. Coache não é suficiente para mascarar sua real “recusa de reconhecer o princípio da obediência ao Papa”.
[57] Gardons la foi, Saint-Gabriel, 1974, p. 24. Não dá para não assinalar o caráter luterano de um tal discurso: o sustentáculo da fé, o “farol da Verdade” é Roma, isto é, o Magistério vivo exercido de modo primacial pelo Papa, e não a consciência individual, ainda que a de um bispo.
[58] Le Figaro, 4 de agosto de 1976.
[59] “Antes bem-aventurado aquele que ouve a palavra de Deus, e a põe em prática!” (Lc XI, 28).
[60] Mgr Lefebvre et le Saint-Office, n.o 233, maio de 1979. Todas as citações que seguem são extraídas daí.
[61] O Papa tem o “poder de jurisdição suprema” “não somente nas questões que dizem respeito à fé e aos costumes, como também naqueles que tocam na disciplina e no governo da Igreja espalhada no mundo inteiro”.
[62] “Eu quero evitar toda polêmica a esse respeito. É por isso que eu não respondo a nenhuma carta de discussão sobre esses assuntos. Estimo ter bastante trabalho a fazer com os inimigos da Igreja, sem perder meu tempo com aqueles que, depois de serem meus colaboradores, se dizem agora nossos inimigos.” Carta ao Pe. Siegel de 1.o de outubro de 1981.
[63] Carta de 12 de fevereiro de 1982.
[64] Cânon 1325 §2.
[65] Ver Forts dans la Foi, Suplemento ao n.º 9 NS.
[66] De Rome et d’ailleurs n.º 26, p. 17.
[67] Fórmula conclusiva das constituições e declarações conciliares (aqui, Lumen Gentium).
[68] O Pe. Simoulin, pregando “pela salvação da alma da Igreja” (sic), durante a Quaresma de 1981, na igreja de São Nicolau do Chardonnet. O padre, todo aureolado de seus seis meses – nada menos – de sacerdócio, fez publicar seus erros e imprecisões num livro, aliás prefaciado por Mons. Ducaud-Bourget. A revista Itinéraires, tendo optado por dar alguma publicidade a ele, fez questão, entretanto de corrigir os erros de juventude do padre que, com o orgulho ferido, julgou por bem difundir amplamente um panfleto ridículo e venenoso intitulado: “Mon Dieu, gardez-moi de mes amis! Mes ennemis, je m’en charge” [“Meu Deus, guardai-me dos meus amigos! Que dos meus inimigos eu cuido.”]. Seremos levados a citar várias vezes esse panfleto, de tanto que é revelador das características dos sacerdotes da Fraternidade São Pio X. Sobre todo esse caso, cf. Itinérairesn.º 261, março de 1982.
[69] Cf. especialmente Fideliter n.º 16, onde o Pe. Aulagnier apresenta o filho como causa eficiente da família.
[70] Fideliter n.º 23, p. 22.
[71] Uma presunção tamanha, que atinge por vezes o cômico das preciosidades ridículas. O Pe. Lorans, promovido a reitor do Instituto Universitário São Pio X após alguns meses de sacerdócio, nada encontra de melhor que pronunciar uma aula inaugural num estilo espalhafatoso cuja retumbância é sem proporção com a modéstia da empreitada: “Todo homem deseja naturalmente saber, pois existe entre a sua inteligência e a verdade uma relação não acidental, mas essencial, – na língua da Escola, uma relação não predicamental, mas transcendental… O método escolástico que distingue claramente numa proposição o sujeito do predicado, num raciocínio a maior e a menor da conclusão, esse método ascético não lhe parece bastante poético, no sentido grego do termo. Essa promoção noética que alça o conhecimento humano ao nível do conhecimento angélico e divino deságua a curto prazo numa promoção ontológica que faz do homem um deus e da filosofia uma gnose…” Na língua da Escola e no sentido grego do termo, isso se chama funcionar acima de seus recursos, para ficarmos com uma expressão vernácula.
[72] Alguns tiveram a surpresa de ver seu nome na lista de seminaristas ao passo que faziam apenas uma primeira visita ao diretor do seminário.
[73] Pensa-se no drama de certos padres-operários jogados na selvageria do mundo sem outra formação que algumas questões de cursos sumários e conselhos vindos de irresponsáveis.
[74] Em Écône, praticamente nenhum ensinamento é dado sobre o concílio Vaticano II, os novos ritos, as reformas canônicas. Começa-se somente a fazer alguma coisa sobre a nova missa, dado que os seminaristas estavam tomando liberdades demais sobre esta questão. Em contrapartida, o Pe. Barrielle pode transmitir inteiramente à vontade as revelações da Virgem de Shawinigan que lhe teria aparecido no fim de uma tarde de conferência. É verdade que a Virgem lhe teria dito que o Pe. Barbara estava enganado. Que sorte! A nebulosidade que reina sobre os novos ritos pode tornar as coisas cômicas. Assim os seminaristas não estão seguros da validade da ordenação do Abbé Cottard. Sabe-se com certeza que ele foi ordenado por Dom Lefebvre conforme o novo rito. Para além disso, divergem os cálculos. Permanece que Dom Lefebvre não quer elucidar esse caso, a gente bem se pergunta por que, e certos seminaristas evitam cuidadosamente assistir às missas do padre duvidoso. Ao ponto, por exemplo, de certo cerimoniário de Écône fazer com que seus amigos não tivessem de assistir à missa da& comunidade quando ela fosse dita pelo Abbé Cottard.
[75] Um belo exemplo de liberalismo: os padres Kelly e Bolduc, ambos sacerdotes do mesmo distrito nos Estados Unidos, não podendo conviver em termos amigáveis, vão queixar-se ao seu superior, o qual não encontra nada melhor que dividir o distrito e fazer de cada um dos dois querelantes o chefe de si próprio.
[76] Notemos que Dom Lefebvre é mestre consumado na arte da via média. Em 1977, ele decide romper com o Office de la Rue des Renaudese, embora recusando-se a falar sobre a questão de fundo, ele proíbe a seus súditos comparecer ao Congresso de Lausanne. Os antiliberais exultam. Mas a conferência seguinte de seu superior foi dirigida contra eles. Igualmente, ele proíbe a participação dos membros de sua Fraternidade nos acampamentos de um movimento de juventude onde reina o caráter misto. Novamente, os antiliberais se rejubilam. Mas uma campanha empreendida pelo Pe. Blin faz o prelado mudar de opinião, e este levanta a interdição para os seus padres. Aqueles que, no seio da Fraternidade São Pio X, conservavam dignidade ou lucidez conhecem assim, antes de compreenderem as reais intenções do bispo, todo um período de choques térmicos.
[77] Não conhecemos as intenções desses padres. Mas é bem evidente que o que lhes foi dito em Écône sobre a missa nova e o Concílio Vaticano II não os preparou para o que os aguardava. Descobrindo um dia a doutrina católica que lhes fora ocultada – especialmente a infalibilidade do Magistério universal – e não convictos da malícia intrínseca do novo ordo missae e dos textos conciliares, a queda lhes foi facilitada.
[78] Mgr Lefebvre, soleil levant ou couchant [Dom Lefebvre, sol nascente ou poente], N.E.L., 1979.
[79] Tornou-se corrente entre os tradicionalistas falar desse bispo dizendo “Monsenhor”, sem nenhuma outra precisão. Esse trejeito irrita a alguns. Assim, durante uma reunião do comitê de redação da revista Itinéraires, A. B. julgou-se obrigado a recordar que “Monsenhor” não era o único bispo na terra.
[80] A acomodação consistia, durante um tempo, em não dizer a oração “pro pontifice” durante as adorações ao Santíssimo Sacramento, mas em contentar-se com tocar o órgão. Hoje o padre encontrou coisa mais simples: ele canta a oração, mas sem pensar.
[81] No seu panfleto já citado, o Pe. Simoulin, na falta de argumentos, lança esta última insinuação: “Uma porção de leigos… parece tirar um prazer secreto em lançar o descrédito sobre Monsenhor Lefebvre e sua Fraternidade, através dos padres que ele formou e encarregou de sua confiança”. É inverter os papéis apresentar as coisas assim. São os padres da Fraternidade São Pio X que desonram Dom Lefebvre. Culpa de quem?
[82] Eis o que diz ele de um de seus seminaristas que ele acaba de lançar porta afora: “A situação é clara, é a dos jovens padres que nos deixaram para seguir outro caminho que não o da Fraternidade. Enquanto ele permanecer nessas disposições, é inútil ele procurar me ver, ou me escrever. Eu me recuso – e estou, sim, em meu direito – a entrar em discussões estéreis… Ele escolheu outra sociedade, que ele fique lá” (carta ao Sr. Pe. Siegel, 1.º de outubro de 1981).
[83] Ela continha, por exemplo, este preâmbulo: “Sabei bem que, se nessa carta algo puder vos parecer como uma ofensa, de antemão eu o desaprovo e não quereria tê-lo escrito, pois como já vos disse mais de uma vez e Deus é minha testemunha de que não minto, eu tenho por vós não somente o respeito devido à plenitude do vosso sacerdócio, mas também uma afeição sacerdotal não fingida. Já faz muitos e muitos anos que não creio ter omitido de vos recomendar a Deus no memento de cada uma de minhas Missas”.
[84] Todas as peças desse dossiê foram publicadas por Forts dans la Foi, n.º 3 NS, pp. 222-236. Muitos outros além do Padre Barbara tiveram de constatar a inacreditável acrimônia de Dom Lefebvre. Assim, o Sr. Denoyelle, diretor do periódico belga Mysterium Fidei, escrevera diversas cartas respeitosas para trazer o bispo de volta à razão. A única resposta foi esta: “Sua Excelência Monsenhor Marcel Lefebvre roga ao Sr. Denoyelle que não lhe envie mais a ‘Revista Mysterium Fidei’ nem aos seminaristas da Fraternidade. Com seus sentimentos respeitosos e a garantia de suas orações. A 3 de julho de 1981” (cf. Mysterium Fidei, Dossiê “Fraude Écône”).
[85] O dossiê publicado por Forts dans la Foi n.º 3 NS contém também duas cartas, uma de 9 de maio de 1980 a todos os membros da Fraternidade São Pio X, a outra de 9 de agosto de 1980 a todos os priores e superiores das casas de formação da Fraternidade. A primeira não dá lugar a resposta alguma. Quanto à segunda, o Pe. Tissier de Mallerais, diretor do seminário de Écône, se mostra à altura de seus recursos, recusando-a e enviando-a de volta sem leitura. O Pe. Aulagnier fez o mesmo, respondendo assim: “Meu Padre, tenho de dizer-vos que vossos procedimentos me desgostam. Com minhas saudações”.
[86] Cumpre-nos, uma vez mais, citar o panfleto do Pe. Simoulin, fazendo a precisão, em prol da compreensão, de que este último fala de si mesmo na terceira pessoa: “O autor é padre, afinal de contas! Se se pode admitir que ele seja contestado com prudência e reverência, quando ele trata do movimento litúrgico, da televisão ou da caça a borboletas, isso não pode ser admitido quando, revestido do peso e da autoridade do seu sacerdócio, ele prega a fé da Igreja!” Ter-se-á notado que o jovem padre, quando fala do alto da cátedra da igreja de São Nicolau do Chardonnet, exige dos fiéis uma submissão que ele recusa ao seu “papa” João Paulo II quando este fala do alto da cátedra de Pedro. Citemos uma última vez o padre fazendo votos de que se compreenda: “Cumpre bem vigiar sobre a sua própria doutrina antes de opô-la à da Igreja! Para essa finalidade, existem ótimos catecismos, para adultos e para crianças!”
[87] Eis todo o erro de Dom Lefebvre. Ao passo que é verdade que o Bom Depósito está acima do Magistério assim como Cristo está acima de seu Vigário, é falso, todavia, dizer que o Magistério encontra sua expressão na Tradição. Pelo contrário, é a Igreja que decide definitivamente sobre o que é a Tradição, é função do Magistério vivo ser a testemunha autêntica Tradição. O protestantismo apelava para a Escritura contra o ensinamento da Igreja. Ao apelar à Tradição contra o Magistério, Dom Lefebvre se inscreve na linha direta do livre-exame.
[88] No México, para reverter uma situação mal começada pela Fraternidade São Pio X, os padres Faure e Williamson não hesitam em ir, a muito custo, de recalcitrante em recalcitrante, proferindo a cada um deles a mentira deslavada de que os demais teriam se submetido. Na França, o Sr. Mazier de Montbrillant, recusando-se a entregar a Association Saint-Pie X de Anjou, da qual ele é presidente, viu-se levado aos tribunais acusado de uma fraude nascida na imaginação dos caridosos padres lefebvristas. Nos Estados Unidos da América, o Pe. Bolduc, Superior do distrito sudoeste, emprega facilmente seu monopólio sacramental para assentar uma tirania da qual dá testemunho sua carta de 19 de maio de 1981, ao Sr. e Sra. B., com firma reconhecida por tabelião público, e de que damos aqui a tradução da passagem mais significativa: “A presente carta tem por objetivo notificar a vós mesmos e aos vossos filhos O. B. que nem vós nem eles devem jamais comparecer ou pôr os pés em Saint Mary’s College ou no território da Fraternidade São Pio X. No caso de violação da presente injunção, eu utilizarei todas as medidas legais que me forem necessárias para obter o respeito da mencionada injunção e vos considerarei diretamente responsáveis por toda consequência que venha a resultar dessa violação. Se um de vós sentir a necessidade dos sacramentos (e eu vos recomendo fortemente de pensar nisso), vós devereis entrar em contato comigo e me informar diretamente, afim de nos encontrarmos em privado, à minha discrição. Isso não poderá ser obtido por intermédio de nenhum outro padre ou membro da Fraternidade além de mim mesmo”. Cf. o comunicado do Comitê Internacional de Coordenação de Associações Católicas, datado de 18 de outubro de 1981 e intitulado: “Quelques réflexions sur la situation presente” [“Algumas reflexões sobre a situação presente”].
[89] Cf. as “Ordonnances concernant les pouvoirs et facultés dont jouissent les membres de la Fraternité Sacerdotale Saint-Pie X” [Diretrizes concernentes aos poderes e faculdades de que gozam os membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X] de 1.º de maio de 1980. Dom Lefebvre dá a simples padres o poder de confirmar, invocando fraudulentamente o motu proprio Pastorale Munus (30 de novembro de 1963). Não se enfatizará jamais em demasia a gravidade de um tal ato, que pode parecer anódino para quem ignora que há um Direito na Igreja, mas que constitui uma das provas mais esmagadoras de que Dom Lefebvre considera-se de fato o cabeça de uma igreja autocéfala.
[90] Foi et Tradition, n.º 76, maio-junho de 1981.
[91] Ele recusou o pedido que lhe fez, há alguns anos, o Padre Barbara, de ir visitar outros bispos para decidi-los a erguer-se para confessar a fé.
[92] Cânon 1325 §2.
[93] Esses princípios devem regular a atitude a adotar com respeito a Dom Lefebvre e aos padres que se obstinem na mesma via que ele. Façamos a precisão de que certos padres da Fraternidade São Pio X nem por isso são cismáticos, ao menos não ainda, na medida em que não adotaram, por ora, integralmente as práticas e a falsa doutrina do bispo deles. Permanece que, quanto mais o tempo passa, mais eles se comprometem, mais são escandalosos. Acrescentemos, enfim, que uma questão se põe, da qual eles não podem se esquivar: a que título a absolvição dada pelos padres da Fraternidade São Pio X que reconhecem a legitimidade de João Paulo II e dos bispos a postos seria válida, quando esses hierarcas não lhes dão jurisdição nenhuma e proíbem-nos positivamente esse ministério?
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