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A ANTIGA E CONSTANTE DOUTRINA DA IGREJA

Pelo Rev. Pe. Bernard Lucien, 1984





L’Infaillibilité du magistère ordinaire et universel de l’Église [A Infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal da Igreja] (Nice: Éditions Association Saint-Herménégilde, Documents de Catholicité, 1984, vi+158p.), Apresentação (pp. 1-7), seguida de dois breves excertos:


Na encíclica Satis Cognitum, que trata da unidade da Igreja, Leão XIII fornece um ensinamento bastante detalhado sobre o “magistério eclesiástico”. Depois de ter exposto a instituição e função deste, o Papa tira uma primeira conclusão:

“É, portanto, evidente, conforme tudo o que acaba de ser dito, que Jesus Cristo instituiu na Igreja um magistério vivo, autêntico e, além disso, perpétuo, o qual Ele investiu de Sua própria autoridade, revestiu do espírito da verdade, confirmou por milagres, e quis e severissimamente ordenou que os ensinamentos doutrinais desse magistério fossem recebidos como Seus próprios.” (E.P.S. E. 571) [E.P.S. = Enseignements Pontificaux (Ensinamentos Pontifícios), reunidos e traduzidos por Monges de Solesmes. E.P.S. E. designa os dois volumes consagrados à Igreja. Os números remetem aos números dos textos, não às páginas.]

E Leão XIII ajunta, imediatamente em seguida:

“Todas as vezes, portanto, que a palavra desse magistério declara que esta ou aquela verdade faz parte do conjunto da doutrina divinamente revelada, todos e cada um devem crer com certeza que isso é verdadeiro; pois, se isso pudesse de algum modo ser falso, seguir-se-ia, o que é evidentemente absurdo, que Deus mesmo seria autor do erro dos homens.” (E.P.S. E. 572)

O Papa mostra, então, que não é possível, sem rejeitar a fé, fazer uma triagem naquilo que o magistério propõe, para aceitar uma coisa e rejeitar outra. Em seguida, ele conclui:

“Os Padres do Concílio do Vaticano nada editaram que fosse novo, portanto, mas só fizeram conformar-se à instituição divina, à antiga e constante doutrina da Igreja e à natureza mesma da fé, quando formularam este decreto: ‘Deve-se crer, com fé divina e católica, todas as verdades que estão contidas na palavra de Deus escrita ou transmitida pela tradição e que a Igreja, ou por juízo solene ou por seu magistério ordinário e universal, propõe como divinamente reveladas.’ (Sess. III, c. 3.)” (E.P.S. E. 574)

Esses poucos textos de Leão XIII nos recordam vários pontos fundamentais da doutrina católica sobre o magistério: a existência de um magistério vivo e perpétuo (E.P.S. E. 571), ou seja, de um magistério que SE EXERCE efetivamente, a CADA ÉPOCA; o fato de esse magistério ser infalível (E.P.S. E. 572), não podendo ser falso, de maneira alguma, o que ele declara; por fim, citando uma definição do primeiro Concílio do Vaticano, o Papa recorda a existência de dois modos de exercício desse magistério vivo e infalível: juízo solene ou magistério ordinário universal.

O objetivo bem limitado do presente trabalho é realçar o que é esse “magistério ordinário e universal”, cuja infalibilidade a Igreja nos recorda solenemente no Vaticano I: recordação esta, da qual Leão XIII sublinha a conformidade com “a instituição divina e a antiga e constante doutrina”.

Trata-se aqui, antes de tudo, de colocar um certo número de textos à disposição do leitor, com apenas o comentário necessário para guiar um “não teólogo”, a quem estas linhas se dirigem diretamente. Daremos igualmente as indicações cronológicas e acontecimentais necessárias para a clareza do todo.

A oportunidade deste estudo não escapará àqueles que sabem que se espalhou nestes últimos anos, em alguns ambientes católicos, uma opinião totalmente errônea sobre a infalibilidade do magistério ordinário e universal.

Segundo essa opinião, que aliás se afirma sem citar nenhuma autoridade em seu favor, SOMENTE as doutrinas ensinadas SEMPRE e POR TODA PARTE seriam garantidas pela infalibilidade do magistério ordinário e universal. De sorte que esse magistério ordinário e universal seria composto, de algum modo, pelo conjunto dos bispos de todos os tempos e de todos os lugares, desde o início da Igreja até à época presente; ao passo que o conjunto dos bispos (com o Papa) de uma dada época (qualquer que seja esta) não seria de maneira nenhuma infalível no seu ensinamento ordinário.

Veremos, por meio dos textos, que essa tese é negação do ensinamento da Igreja: pois rejeita o texto do Vaticano I entendido no sentido em que foi definido; além disso, essa tese se opõe ao ensinamento unânime dos teólogos que trataram desta questão; ela se opõe também à afirmação de Pio XII, que retomou essa doutrina de forma bem explícita numa circunstância especialmente solene. Mas, antes de tudo, ela se opõe, como observaremos imediatamente, ao ensinamento de Leão XIII que citamos no início destas linhas.

Com efeito, Leão XIII fala de um magistério vivo [1], que é, portanto, uma realidade atuante, que se exerce mediante atos. É o magistério vivo que é preciso escutar toda vez que ele declara o que pertence à revelação; e a razão aduzida é que esse magistério é preservado de erro em suas declarações: aqui estão os atos, reais e infalíveis. Finalmente, é a esse magistério que Leão XIII aplica os dois modos de exercício professados pelo Vaticano I.

[1. Eis alguns textos de teólogos que precisam essa noção de “magistério vivo”:

Um magistério vivo, isto é, que se exerce continuamente na Igreja por comunicação da doutrina revelada. Esse magistério é vivo na medida em que se distingue do magistério ainda exercido atualmente na Igreja por homens que já faleceram, mas aos quais sobreviveram as obras deles. Os protestantes bem que admitem que o magistério dos Apóstolos se exerce ainda atualmente na Igreja, mas somente pela influência de seus escritos; não admitem, portanto, nada além de um magistério, por assim dizer, póstumo. (Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique [Dicionário Apologético da Fé Católica], artigo “Tradition et Magistère” [Tradição e Magistério] por H. PÉRENNÈS, col. 1786-1787)

[Magistério] vivo, ou seja, que permanece sempre em mestres vivos e se exprime por boca deles, e não por meio daquele Magistério, divino sem dúvida, mas morto, que os protestantes procuram na Escritura. (La Règle de la Foi, [A Regra da Fé] tomo I, 3.ª ed., 1953, por A.A. GOUPIL s.j., p. 20)

Divide-se, habitualmente, o magistério em escrito e vivo. O magistério puramente escrito é aquele que um autor, seja ele quem for, exerce por intermédio de seus livros, mesmo depois de sua morte. Tal é, por exemplo, o magistério que Aristóteles exerce ainda, com suas obras. O magistério é dito vivo quando se exerce mediante atos vitais e conscientes de homens, quer o mestre utilize escritos ou não. (Sacræ Theologiæ Summa [Suma da Sagrada Teologia Escolástica], B.A.C., tomo I, ed. 5, 1962, “De Ecclesia Christi” [Tratado sobre a Igreja de Cristo], por I. SALAVERRI s.j., p. 656)]

Ora, o “magistério ordinário e universal” entendido como o conjunto dos bispos de todos os lugares e todos os tempos não é um magistério vivo: é, efetivamente, um ente de razão, que não tem realidade a não ser no espírito de quem considera esse conjunto enquanto tal. Um “magistério” desses não exerce ato nenhum; e, especialmente, não faz o menor sentido dizer, sobre um tal “magistério”: “todas as vezes, portanto, que a palavra desse magistério declara…” (texto citado de Leão XIII; cf. supra p. 3; E.P.S. E. 572). Haveria que dizer, na perspectiva da opinião que examinamos: todas as vezes que se observa que uma doutrina foi ensinada sempre e por toda parte, é preciso crê-la.

Isso, como ficou melhor entendido agora, não tem nada a ver com o magistério vivo que, a cada época, ensina infalivelmente a doutrina católica aos fiéis dessa época (conforme o testemunho de Leão XIII, citando o Vaticano I).

Claro que ninguém contesta que o que foi ensinado sempre e por toda parte é certamente verdadeiro: pois o que é ensinado por toda parte, numa época qualquer, já o é [certamente verdadeiro] (sob certas condições que serão precisadas neste estudo). Eis aí o que é chamado de um lugar teológico, que decorre da infalibilidade do magistério ordinário e universal. Não é o próprio magistério ordinário e universal. Em verdade, é a infalibilidade do magistério vivo, exercendo-se perpetuamente segundo seu modo ordinário, que é causa da conservação, no tempo, da doutrina católica.

Como se vê: se a opinião que assinalamos fosse verdadeira, já seria preciso dizer que Leão XIII, por um lado, falseou o ensinamento do Vaticano I numa encíclica dirigida à Igreja universal e, por outro lado, ensinou ao mesmo tempo, sobre um ponto capital, uma doutrina inteiramente falsa, pretendendo apoiar-se num concílio ecumênico, na antiga e constante doutrina da Igreja e na instituição divina.

Consequências tais são suficientes, cremos, para fazer rejeitar a opinião de que acabamos de falar. Não nos ocuparemos mais dela, por isso, em nosso estudo. Contudo, os leitores interessados por esse ponto preciso não ficarão decepcionados: como se verá amplamente, os textos falam por si sós.

* * *

Nosso estudo comporta duas partes principais e três anexos.

Na primeira parte, examinamos a doutrina do “magistério ordinário e universal” tal como foi ensinada no Vaticano I, referindo-nos aos próprios atos desse concílio. Esse estudo é completado pelo contributo de Pio XII sobre a mesma questão: pois o Papa é, evidentemente, o intérprete autêntico de um texto conciliar.

A segunda parte é um dossiê: mostramos o consenso unânime dos teólogos que trataram do assunto. Repitamos aqui que não nos propomos, neste trabalho, a aprofundar a teologia do magistério, mas somente fixar, por meio dos textos, um ponto preciso da doutrina.

[N. do T. – Na Liminaire que precede à presente Apresentação, o A. notava ainda (p. v-vi):

“A complementaridade das duas partes deve ser entendida assim: o testemunho concorde de todos esses teólogos dá excepcional certeza sobre a questão, pois podemos observar, graças à primeira parte, que esse acordo se funda diretamente nas fontes do magistério. Reciprocamente, o leitor pode se certificar de que a nossa apresentação dos textos, na primeira parte, não falseia o verdadeiro sentido deles, pois tantos autores, citados na segunda parte, testemunham que as coisas são realmente assim. Esperamos que desse modo cada um possa formar uma convicção embasada sobre esta questão da infalibilidade do magistério ordinário e universal.”]

Os anexos tratam de duas questões que dizem respeito ao magistério em geral, e não somente a uma certa forma de exercício dele. Trata-se, por um lado, de precisar a que objetos se estende a infalibilidade do magistério, e, por outro, de ultimar a questão da obrigação que, para o fiel, decorre do exercício do magistério.

_______________

N. do T. – Adiante no mesmo livro, o Autor faz referência ainda à refutada opinião errônea – mais precisamente: herética –, notadamente, nas notas de rodapé 18 e 28 (pp. 28-29 e 42-43, respectivamente); ei-las traduzidas a seguir, rodeadas de seu contexto imediato:

I. Págs. 28-29 (e notas 17-18):

[…] Mons. Zinelli foi, também ele, membro da Deputação da Fé; isto é garantia para nós de seu valor teológico e de seu bom conhecimento do estado das questões. O texto que vamos citar, no entanto, foi escrito pelo bispo em seu próprio nome, para frisar o que está em questão na definição da infalibilidade pontifícia proposta ao concílio como objeto de discussão.

“Quanto ao sujeito da infalibilidade, que é a Igreja, a) está claro, para os católicos, que não se pode negar sem heresia que é o Soberano Pontífice com os Bispos, quer reunidos quer dispersos; b) agora, que o Romano Pontífice se beneficia da infalibilidade da Igreja quando ele emite os decretos dele, mesmo sem os bispos, quer dispersos quer reunidos, foi contestado entre católicos, e é isso que hoje é proposto ao concílio para ser determinado.” [17]

[17. “Quoad subjectum infallibilitatis, quod est ecclesia, rursus a) apud catholicos constat, quod sine hæresi negari non potest, esse pontificem summum cum episcopis sive congregatis sive dispersis ; b) num autem pontifex Romanus ecclesiæ infallibilitate gaudeat, cum decreta sua emittit, etiam sine episcopis sive dispersis sive congregatis, controvertitur inter catholicos et hoc est, quod hodie proponitur concilio Vaticano determinandum.” (M. 53, 268 D – 269 A)]

Sublinhemos somente dois pontos:

— Mons. Zinelli utiliza aqui a fórmula: “o Papa com os bispos, quer reunidos, quer dispersos”, da qual veremos (2.ª parte) que ela é corriqueira entre os teólogos. Essa fórmula tem para nós a vantagem de patentear de maneira indubitável que, no magistério ordinário infalível, trata-se efetivamente dos bispos de uma dada época, pois são os mesmos que podem também estar reunidos [18].

[18. Nós sublinhamos esse ponto, que em princípio é evidente para todos aqueles que reconhecem, como a fé nos ensina, que o magistério da Igreja é um magistério vivo (cf. nota 1), por causa da opinião errônea que assinalamos na página 4. Segundo essa opinião, os bispos de uma dada época, com o Papa, NÃO SÃO infalíveis em seu ensinamento ordinário, ensinamento que eles dão, em princípio, quando estão dispersos. Somos obrigados a insistir nesse ponto, porque vários desses autores, para não ferir de frente a doutrina católica, empregam (claro que inconscientemente) fórmulas enganadoras do gênero: os bispos (com o papa) de uma dada época são infalíveis em seu ensinamento ordinário se estão de acordo com o ensinamento do passado (com o que foi ensinado ou crido “sempre e por toda parte”). Isso é dizer, de fato, que eles podem estar em desacordo com esse ensinamento, E PORTANTO que eles podem se enganar, E PORTANTO que eles NÃO SÃO infalíveis. E é a negação da clara mente dos Padres do Vaticano I…]

— Observemos igualmente que Mons. Zinelli apresenta a doutrina da infalibilidade do magistério disperso como de fé. […]

II. Págs. 42-43 (nota 28):

[…] Resumamos. Os comentários da Deputação da Fé provam que a palavra “universal”, em nosso texto, indica que se considera aí a totalidade das pessoas que exercem o magistério: a Igreja docente, o conjunto dos bispos com o Papa. E esse conjunto é infalível, todo dia, toda vez que, de comum acordo, ele nos apresenta uma doutrina como revelada [28].

[28. Em seu estudo já citado {publicado em: “Una Voce helvetica”, janeiro de 1981, p. 15} sobre o magistério ordinário e universal, o Padre René-Marie escreve: “A exigência necessária para a autenticidade do magistério ordinário é que o ensinamento deste seja plenamente universal, isto é, conforme ao ensinamento constante da Igreja através dos séculos, noutros termos, conforme à Tradição” (op. cit. p. 18).

Que aí esteja a exigência do Padre René-Marie e de alguns autores aos quais fizemos alusão na página 4, estamos perfeitamente de acordo; ficamos contentes de vê-la exprimida tão claramente sob a pluma do Padre. Mas o leitor já vê que a definição de “universal” dada pelo Padre é absolutamente estranha à [definição] da mesma palavra no texto do Vaticano I. Há, portanto, duas definições do “magistério ordinário e universal”: {1ª} a do Padre René-Marie e dos poucos autores contemporâneos que concordam com ele: é o magistério constante da Igreja através dos séculos, a tradição, aquilo que foi ensinado pelos bispos de todos os lugares E DE TODOS OS TEMPOS.

E depois, {2ª} a definição do Vaticano I, que longamente e com inteira certeza fizemos ressaltar: é o magistério do conjunto “bispos e Papa”, “universal” porque reúne o todo das pessoas que possuem magistério na Igreja (por distinção do magistério do Papa sozinho). Esse magistério existe e se exerce em todos os tempos, com sua garantia de infalibilidade: ele é cotidiano.

Ora, não somente a definição do Padre René-Marie é ALHEIA à do Vaticano I, como conduz, além disso, a NEGAR o ensinamento do Vaticano I. Com efeito, como vimos em todo o nosso estudo PELOS TEXTOS, o concílio ensina que o conjunto dos bispos com o Papa é infalível a cada dia, no exercício cotidiano e ordinário de seu ensinamento e de sua pregação. Simplesmente, é necessário que seja mesmo o ensinamento da Igreja docente e, portanto, que haja acordo dos bispos entre si e, principalmente, com o Papa (unanimidade “moral”, ou ao menos acordo da “parte mais sã”).

NOS ANTÍPODAS DISTO, segundo o Padre René-Marie o conjunto dos bispos com o Papa, em sua pregação cotidiana unânime, PODE SE ENGANAR. Com efeito, segundo ele, essa doutrina unânime de um dia pode ser oposta à doutrina constante dos séculos passados: faz-se mister, de fato, verificar primeiro a concordância da doutrina presente (da Igreja docente) com a tradição, antes de poder dizer que essa doutrina é certamente verdadeira. Logo, na realidade, o ensinamento presente não nos traz nada, pois é preciso verificar seu acordo com a tradição: ora, é sabido que esta, por si mesma, é certamente verdadeira.

Seja como for quanto a este último ponto, permanece que a doutrina do Padre René-Marie é negação da do Vaticano I, pela recusa da infalibilidade do magistério ordinário da Igreja docente.

E, dado que a doutrina do Vaticano I, como vimos, está revelada em Mateus XXVIII, 19-20, estamos bem embasados em afirmar, atendo-nos estritamente à qualificação objetiva das doutrinas, aliás, que o Padre René-Marie e todos aqueles que partilham de sua tese sustentam uma heresia.

Digamos novamente como conclusão, para evitar todo e qualquer equívoco, que o Padre René-Marie não está em erro no que ele afirma(a inerrância absoluta da tradição, noutros termos: daquilo que foi ensinado – ou crido – “sempre e por toda parte”), mas, sim, está [em erro] no que ele nega (a infalibilidade do magistério ordinário da Igreja docente, em seu exercício cotidiano). Sobre o “lugar teológico” constituído por “aquilo que foi crido sempre e por toda parte”, pode-se consultar nosso artigo: “O Cânon de São Vicente de Lérins” em Cahiers de Cassiciacum n.º 6. Encontram-se nos números dessa mesma revista diversos artigos, quer do Padre Guérard des Lauriers, quer de nós próprio, sobre a questão do “magistério ordinário e universal”.] […]

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