Por Pe. Guérard des Lauriers O.P. [1]
N.B.: Este artigo foi revisado pelo seminarista Paulo Cavalcante, e foi publicado in memoriam dos 36 anos de falecimento de um dos maiores teólogos do século XX, o Bispo Guérard des Lauriers.
A caridade é una e múltipla, é o elo perfeito (Col. 3:14) com todos em Cristo Jesus (I Cor. 3:16). A caridade é Deus (Jo. 14:16), e é também Deus em nós (Rm. 5:5). Este é a diferença notável para aqueles que observam a inserção do não-criado no criado. A mesma caridade instiga a contemplação e inspira a ascese, remediando toda a carência humana e derramando um bálsamo misterioso na profundidade da alma. Uma paisagem bela e vasta, da qual todo cristão pode desfrutar, desde que saiba abrir os olhos, no recanto da terra onde Deus o fez nascer. A caridade da verdade representa apenas uma parte desse cenário, do qual examinaremos apenas um aspecto.
Nesse sentido, podemos entender essa questão no contexto indicado por Santo Agostinho: “A caridade da verdade exige um descanso sagrado; a necessidade da caridade aceita um trabalho legítimo” [2]. Ele falava por experiência: somente por meio de um esforço prolongado e árduo, já como bispo e em meio a disputas com os hereges, conseguiu elaborar o De Trinitate e inserir a charitas veritatis no âmago da necessitas charitatis. A verdade, sem dúvidas, é o pão que todos nós precisamos. Examiná-la para compartilhá-la é, com certeza, realizar uma obra eminente de caridade, especialmente quando se trata de verdades relacionadas ao supremo bem prometido ao destino humano. Cabe somente ao cristianismo resolver, dentro de uma sabedoria não formalizada, a aparente antinomia entre charitas veritatis e necessitas charitatis.
Aqui consideramos apenas uma comunicação da verdade inspirada no amor de Deus — a caridade da verdade —; no entanto, esta é uma ver- dade mais imediata e universal, mais simples e profunda, mais próxima e desafiadora de alcançar do que a verdade elaborada pelo intelecto: a verdade da vida.
As manifestações fundamentais dessa caridade — dizer a verdade, viver a verdade, ser verdadeiro — compõem o seu contexto e estão, de fato, mais intrinsecamente ligadas à justiça.
DIZER A VERDADE
É, antes de tudo, não mentir, o que é uma regra simples e justa, pois mentir é abusar do direito que o próximo tem a um intercâmbio espiritual com seus semelhantes. É, também, e isso é mais delicado, preciso perceber os casos nos quais é apropriado falar a verdade ou optar pelo silêncio. No amor da amizade, cada um deseja o bem daquele a quem ama tanto quanto deseja seu próprio bem. O primeiro desses bens é a verdade da vida, tanto em seu compromisso exterior quanto em sua retificação íntima. Devo a mim mesmo a verdade, e meu amigo a considera como seu próprio bem porque é meu bem. Portanto, devo-lhe isso em nome da amizade, que postula a unidade do desejo e a unidade do objeto desse desejo. Isso não significa que sempre se deva dizer tudo: basta estar disposto a comunicar ao amigo tudo o que interessa. No entanto, a comunicação se torna uma exigência mais urgente quando se trata da vida íntima, que se encontra no mesmo grau de interioridade que a amizade: há confidências que não podem ser recusadas sem trair, e até destruir, o amor que as exigia.
Com tudo isso, o que importa é o próprio ato da comunicação, o dom, não o objeto do dom; porque a verdade que eu expresso pode, por si só, às vezes ser indiferente para o amigo, quando se trata de um bem que não é dele, mas sim meu. Todavia, também pode ser um bem que é próprio daquele a quem eu amo e do qual ele necessita: a verdade relacionada à sua retificação moral pessoal. Dizer essa verdade é praticar a correção fraternal. São necessários dois requisitos: estar em condições de julgar com justiça e considerar como provável a emenda sugerida. Este serviço é prestado espontaneamente entre aqueles unidos por um grande amor. No entanto, não devemos limitá-lo a grupos específicos; ele tem uma for- ma comum, espontânea, sobre a qual é apropriado refletir. Quando não é apropriado dizer a verdade, pode-se sugerir; pelo menos, deve-se evitar tu- do o que possa induzir ao erro, seja por meio de bajulações [3] ou elogios excessivos que possam levar o outro a uma sobrevalorização prejudicial. Tal atitude pode ser ditada pela ganância ou por um certo “diletantismo” da cortesia: é agradável ser o centro de atração de amabilidades que se contribui para fomentar. A caridade da verdade exige uma franqueza habitual que, ao invés do fácil lisonjeio, prefira a firmeza e, quando necessário, até certo rigor. Este é um serviço que deve ser prestado especialmente aos superiores, que muitas vezes são os mais prejudicados, pois “um príncipe pode ser o alvo do ridículo de toda a Europa e ser o único a não perceber” [4]. Não é apropriado apontar os defeitos de um superior, mas pelo me- nos é um dever não incentivar suas inclinações por meio de conivências tácitas, cujo impulso oculto geralmente é um interesse bastante egoísta.
VIVER A VERDADE
Para dizer a verdade, é necessário viver a verdade: não se pode apreciar até que ponto a verdade julga as coisas e as vidas se não se vive na verdade. O corretor de injustiças não percebe a verdade senão de forma abstrata, aplicando-a como uma cópia inflexível sobre o comportamento que deseja corrigir, ao passo que o testemunho caridoso da verdade estabeleceu sua morada com todos os seus irmãos em uma comunhão inteligível. Isso permite, em vez de apontar desvios, preveni-los instintivamente. Pois há então uma comunicação não explícita, mas latente, da verdade, uma persuasão da verdade pela verdade da vida.
Isso implica, no contexto humano, a conformidade ao estado e à função que nos define em relação aos outros. É o que São João Batista pregava [5]: todos devem mostrar compaixão, de acordo com a grande lei humana; cada um deve cumprir seu dever de estado e evitar os defeitos inerentes a esse estado: os arrecadadores de impostos não devem exigir mais do que o devido, os soldados devem contentar-se com seu salário e não incomodar ninguém. Os conselhos de São João não passam de um ponto de partida, uma preparação. É preciso prolongá-los, aprimorá-los, mas mantendo sua rigorosa e profunda simplicidade. A justiça do Reino de Deus ficaria sem sentido sem a caridade. A obrigação de justiça pode ser impulsionada pelo amor, que, ao repercutir em todo o agir, opera uma transposição íntima, mas não uma destruição. A caridade não exige a mudança de condição [6], mas sim viver de maneira diferente na mesma condição; pode ter suas próprias obras, mas deve, antes de tudo, abordar a vida conforme nos é providenciada pela Providência Divina. A caridade é a perfeição do cristão, por isso deve abranger toda a sua vida.
Resultado imediato: embora o cumprimento do dever de estado deva ser motivado pelo amor a Deus, também representa, para o próximo, a mais fundamental expressão de caridade. Ao reconhecer que colaboramos para o bem de nossos irmãos por meio das tarefas que nos foram designadas, e que nenhum bem é alheio ao divino que todos devem alcançar, percebemos que essa responsabilidade, que nos define socialmente, se torna um sinal essencial da caridade sobrenatural, tanto para nós quanto para os outros. Dessa forma, se a falsificação é condenável em termos de justiça, torna-se ainda mais reprovável se frustrar as expectativas do amor. O amor espera que o arrecadador ou o soldado exerça seu ofício com sinceridade. Se isso não ocorrer, haverá uma falta não apenas em termos de justiça, mas também, se a pessoa for cristã, em relação à caridade, pois não expressará adequadamente seu amor por mim. Uma traição implícita à caridade da verdade é bastante comum: pessoas que evitam cuidadosamente tomar decisões que podem gerar oposição, transferindo assim inevitavelmente a responsabilidade para outros. Isso é abstencionismo, uma habilidade dos filhos das trevas, mas não uma verdadeira expressão de caridade.
Para um cristão, seu primeiro dever de estado é ser um cristão verdadeiro. Ele é o sal da terra e deve preservar todo o depósito (I Tm. 6:20) em sua integridade original. Deve temer a contaminação que inevitavelmente segue à sedução do que é fácil. Não se trata apenas do fervor, mas da autenticidade dos princípios. Viver reduzindo valores tão essenciais como pecado, renúncia, redenção, a dimensões aceitáveis para o mundo é, sem dúvida, se aproximar do mundo, mas para traí-lo, para trair a mensagem que ele espera e cuja lembrança já se perdeu. Se outros serviços podem ser de competência apenas da justiça, o testemunho da verdade cristã vivida só pode ser expresso pelo amor.
Dizer a verdade, viver a verdade. Falta apenas um: ser verdadeiro.
SER VERDADEIRO
Ter para com os homens a caridade de ser verdadeiro, assim como o Verbo encarnado manifestou o amor de Deus ao se revelar entre os homens cheio de graça e verdade (Jo. 1:14); é a verdade [7] que veio para testemunhar a verdade [8]. Isso é muito difícil. Mas, há muito tempo, Deus vinha preparando o homem para acolher os conselhos evangélicos. A recitação dos salmos torna familiar a associação misericordia-veritas [9], que é uma expressão original da “caridade da verdade”. A aliança de Deus com seu povo é, sem dúvida, a primeira iniciação a um amor que se desenvolverá até alcançar a nova ordem. A aliança selada pela Lei é a primeira introdução aos elementos fundamentais de uma verdade esquecida ou ainda desconhecida: misericórdia e verdade. Descobrimos assim, em toda sua amplitude divina e humana, a caridade da verdade, que consiste, para nós, em uma fidelidade lúcida à nossa própria condição; e talvez seja essa forma humilde a mais apropriada para imprimi-la nos outros por uma persuasão misteriosa. Assim age Deus. Ele é, em tudo, o primeiro. Cumpre seu “dever de estado”: amar, perdoar, instruir, e se encontra blasfêmia, ingratidão, fechamento de espírito, continua sendo misericórdia, luz acolhedora e condescendente. Por isso, o homem sabe que não está lidando com um Deus que engana como todos os homens [10], mas sim com um Deus verdadeiro, um Deus fiel, que oferece o presente mais precioso: a verdade concretamente existente, viva e atuante.
Era, sem dúvida, necessário que Deus se tornasse uma persuasão paciente para guiar o homem até a misteriosa conjunção de misericórdia e verdade. A fidelidade de Deus para com o homem se expressa, antes de tudo, por uma exigência de sinceridade: “Sede verdadeiros, porque Eu sou verdadeiro” [11]. A verdade da vida humana exige, como justificação, uma plenitude imanente: a da vida divina concedida [12] gratuitamente. Não se alcança essa plenitude senão conformando-se com a verdade, com a lei que ordena e sugere a misericórdia.
Por outro lado, os laços afetivos estabelecidos na comunidade de destino, e até mesmo na raça, envolvem um dever de sinceridade mútua. A mentira nem sempre é condenada em Israel, especialmente quando dirigida a estrangeiros em prol da causa comum; entretanto, entre os israelitas, é inequivocamente considerada como uma falta. A caridade da verdade, como deve existir de forma universal entre os filhos de um mesmo Pai, está, portanto, latente na antiga Aliança.
A mensagem da nova lei nos permite compreender por que e co- mo devemos dizer a verdade, viver a verdade, ser verdadeiros — elementos que constituem a substância concreta da caridade da verdade.
O FUNDAMENTO TEOLÓGICO DA CARIDADE DA VERDADE
Muitas vezes, a caridade é equiparada a “fazer caridade” ou “dar algo”. No entanto, esse “algo” é o símbolo — e torna-se uma causa adicional da exterioridade existente entre aqueles que se amam, uma exterioridade que o amor gostaria de reduzir e anular. Entrar nesse caminho seria esquecer completamente o sentido totalmente espiritual da caridade, e especialmente da caritas veritatis. Esta também envolve “dar”, mas o dom é tão elevado que só pode proceder de Deus. É tão íntimo — dirigido ao espírito, ao coração, ao ser — que essa esfera, fora do alcance de todo poder criado, está reservada a Deus.
Portanto, um amor natural não é suficiente para conferir eficaz- mente aos outros uma certa qualidade de verdade. É necessário que desfrutemos do benefício de um potencial divino que assegure esse único amor que nos torna um com Deus: a caridade.
Outra implicação: a caridade, que emana de Deus, não faz distinção entre pessoas; assim, não posso deixar de me amar com aquele amor indivisível que dedico a Deus e ao próximo. Dado que esse amor incorpora a verdade, a menos que eu viva na ilusão, devo, em primeiro lugar, exercer a caridade da verdade para comigo mesmo. Nesse sentido, a caridade que não se inicie por mim mesmo perderia sua essência.
Amar a verdade é desejar compartilhá-la com os outros e ansiar por recebê-la para si mesmo: são duas faces de um único ato compartilhado por nós, o ato de amor, que intrinsecamente abriga a verdade. Engajar- se na caridade da verdade, portanto, implica primordialmente em recebê-la. Por amor, Deus concede a verdade a todos: aos outros e a mim; a mim, através do próximo, e ao próximo, por meio de mim. Minha capacidade de oferecer está atrelada à medida em que recebo. E, se é possível brincar com as palavras — podemos discorrer sobre a verdade, indo além do que conhecemos dela — é extremamente desafiador dar vida à verdade que não vivemos nós mesmos e é totalmente impossível tentar fazer com que os outros sejam mais verdadeiros do que nós mesmos: não se brinca com o ser. Neste ponto, alcançamos Deus. Ele, e somente Ele, avalia a equação de cada ser consigo mesmo, ou seja, a verdade de cada ser; Ele, e somente Ele, estabelece as relações misteriosas pelas quais suas criaturas naturalmente se condicionam em seu ser verdadeiro, pelo fato de todas comungarem n’Ele, que é a Verdade.
Em cada estágio da caridade da verdade — dizer, viver, ser — verifiquemos esta reciprocidade fundamental: o dom recebido e o dom comunicado no mesmo amor.
DIZER A VERDADE
É conveniente estar disposto a receber a verdade, aquela verdade que é a regra de vida e progressivamente se torna o próprio ser. É necessário questionar a Deus e saber aguardar a resposta. Pilatos perguntou a Jesus: “O que é a verdade?” [13], mas virou as costas. Se tivesse esperado e escutado a resposta, talvez o sangue do Justo não teria sido exigido pelos judeus. Aquele que não ouve a Deus, que se volta muito cedo para outras fontes de verdade, coloca-se fora da caridade da verdade. Esta disposição inicial — desejo sincero e docilidade humilde — só pode ser sustentada pelo amor; é a raiz oculta da caridade da verdade, e dela flui toda a seiva.
Dizer a verdade, ou em outras palavras, promover ao redor de si uma clareza mental propícia ao desenvolvimento espontâneo de reflexos auto-críticos saudáveis, representa o primeiro ato de caridade em relação à verdade. Isso implica, precisamente, que devemos estar dispostos a “nos deixar instruir” por Cristo, pois é nele que a verdade se encontra [14].
Existe apenas uma Palavra que purifica aqueles que a ouvem [15]; sua eficácia se manifestará por meio de nós apenas se a assimilarmos através da escuta. Isso não significa que a repetiremos... Quem poderia reivindicar tal ato? Significa simplesmente que o significado da verdade que ela deposita em nós inspirará naturalmente a vigilância ou a não advertência, a severidade ou a indulgência, a firmeza ou o sorriso, contribuindo para tornar a verdade uma necessidade irresistível para aqueles que nos cercam: cada um compreenderá, de acordo com sua medida, a mensagem misteriosa que levará um a evitar a mentira e outro a adotar uma sinceridade total sob o olhar de Deus. Todos serão puros, cada um de acordo com o grau de graça que recebe, no momento em que a Palavra, presente em nós, se torna sensível por nosso intermédio.
Se verdadeiramente estamos imersos nesse amor, cujo ato indivisível abrange simultaneamente a Deus, ao próximo e a nós mesmos, então devemos estar prontos para receber de Deus, de Deus e também do próximo. Aceitar que o próximo nos apresente as verdades. Uma vez que só existe uma verdade e um amor por essa verdade, ou... mentira e ilusões. Devemos amar a verdade sobre nós mesmos que o próximo nos revela; ele é perspicaz ao nos exigir heroísmo, pois muitas vezes aplica uma lógica cujo rigor nos assusta.
Aceitar essa mensagem dos outros proporciona um benefício duplo: precisamos acreditar que Deus acolhe todas as orações, provenham de onde vierem. Portanto, acreditamos também que Ele pode falar conosco por meio de todos; além disso, essa aceitação nos abre aos outros; eles nos agradecem por respeitarmos a mais primitiva exigência da caridade da verdade — um dom recebido e dado em um único amor. Mesmo aqueles que não são cristãos, mesmo que não acreditem na verdade, percebem, com razão, que devemos acreditar o suficiente para não querer triunfar senão pela verdade, repudiando, portanto, tanto a hipocrisia cega quanto uma certa diplomacia do pensamento.
VIVER A VERDADE
Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus (Mt. 5:16).
Sem exibicionismo [16], sem “edificação”, sem cálculos. Se uma vida é autêntica, ela é luminosa. Isso é enfatizado por Jesus através de seu conselho direto, assim como por suas repreensões firmes e frequentes à hipocrisia farisaica. Aquele que pratica as bem-aventuranças torna-se a luz do mundo (Mt. 5:14) e não deve se esconder. Aqueles ao seu redor, sensíveis à qualidade da luz que emana dele, serão conduzidos até sua fonte, Deus [17]. Essa transfiguração acontece em uma vida humana pelo dom de Deus, e o cristão tem a responsabilidade de compartilhar essa verdade com todos, pois é o único capacitado para fazê-lo. Além disso, trata-se não de justiça, mas de amor. Quando Deus nos introduz em seu Reino, no mesmo instante nos concede mais do que poderíamos esperar e compreender. Assim, por nosso amor a Deus, devemos tornar evidente aos outros a persuasão da verdade.
Podemos esperar que eles nos retribuam com um serviço semelhante? Sim, no caso dos nossos irmãos cristãos. Não, no caso daqueles que, por não terem em si a verdade e o amor de Deus, não conseguem refletir a luz inigualável que é como um resplendor do segredo do rosto do Pai. Muitos podem ser sinceros e realizar grandes feitos, mas não surgirão falsos cristos e falsos profetas, e farão tão grandes sinais e prodígios que, se possível fora, enganariam até os escolhidos? (Mt. 24:24). A sinceridade pode estar a serviço do erro; também pode desculpar aqueles que se enganam de boa fé; no entanto, nada desculpa a sedução do erro naqueles que, possuindo a verdade, devem chamá-lo pelo seu nome. Como já vimos, essa é a primeira forma da caridade da verdade. Portanto, não permitamos que o ideal cristão seja contaminado por uma osmose inicial, que acabaria por dissolver, em um humanismo imediatamente tangível, os valores sobrenaturais que só Deus pode dispensar gratuitamente. Não tentemos, por meio de uma ilusória familiaridade, conjurar demônios que só podem ser expulsos pelo jejum e pela oração (Mt. 17:20). O erro e a facilidade conspiram secretamente contra os filhos da luz. O perigo não é menor na vida coletiva do que na vida individual e, se faz estragos em todo o mundo, também pode invadir os claustros por meio de concepções da vida humana bastante alheias às perspectivas evangélicas.
A caridade da verdade é, portanto, parcialmente unilateral, resultante do predomínio inalienável do dom da graça e da fé. Certamente, nem todo cristão irradia luz a ponto de suscitar, de forma discreta e irresistível, o louvor que se eleva ao Pai; mas isso não é razão para esquecer que essa luz, e somente ela, é o adorno dos santos. Não há santidade laica, e também não há santidade se Deus for absorvido em uma imanência tão acolhedora e tão carente em sua suposta infinitude que facilmente se esqueça de que não é possível amar a Deus sem adorá-Lo ao mesmo tempo. Caritas veritatis! Quando o Filho do Homem vier, encontrará fé na terra? (Lc. 18:8). A pureza divina dos valores que a fé deveria incluir e preservar na terra não terá sido diluída na sedução universal? Isso é o que está em jogo em nossos corações: assegurar à verdade, por meio de nossa vida e em nossa vida, a única permanência que lhe convém neste mundo inferior.
A caridade da verdade é demasiadamente original para ter suas próprias obras; consiste em viver, dentro de um certo espírito, o amor divino. A precisão mais matizada e exata é fornecida pelo próprio Jesus. Ele traz à terra um reflexo que não encontra em nenhum outro lugar. Vem para dar testemunho da verdade (Jo. 18:37). Esse testemunho, que não faz distinção de pessoas (Mc. 12:14), indubitavelmente implica um julgamento [18] em relação às realidades terrenas, em relação à verdade concreta na terra, mas, antes de tudo, consiste nisto: O que eu vi em meu Pai, isso falo [19]. Toda a obra de Jesus está orientada para o Pai [20], mostrando o Pai, a ponto de, quando Felipe diz: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta” (Jo. 14:8), Jesus responde: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo. 14:9). Da mesma forma, a vida do cristão deve mostrar a Deus, em vez de se empenhar em destacar o homem multidimensional — revelação dos tempos novos — tão ávido por não deixar perder nada do seu que se torna impermeável à verdadeira Sabedoria: Buscai primeiro o Reino de Deus (Mt 6:33).
Certamente, não se deve transformar em uma preocupação escrupulosa por não exceder [21], o que deve ser uma ocupação atenta do essencial. Mas a verdade primordial é que o cristão vive de Deus, e o ponto de aplicação de seu esforço deve ser desenvolver a “tendência” [22] cuja graça ele recebe. Então, ele mostrará a Deus com a mesma naturalidade com que Jesus mostrava seu Pai. Cada pessoa irradia por meio de sua vida precisamente aquilo de que vive. Mais profundamente ainda, cada um se realiza porque é isso mesmo em função do qual existe; Jesus age como o Pai para seus discípulos porque todo o seu ser é ser do Pai. Ele é a Verdade mais verdadeiramente do que a diz ou a vive, e é isso mesmo que vem oferecer àqueles que o rodeiam. Pertence também ao cristão essa última forma de caridade?
Isso é o que nos resta examinar brevemente.
SER VERDADEIRO
Santificai-os na verdade. Jesus declara ao Seu Pai: “Tua palavra é verdade” (Jo. 17:17). O princípio imediato dessa santificação é o Espírito Santo, o Espírito de Jesus23, a verdade que procede do Pai [24]. O mundo não pode receber este Espírito de verdade (Jo 14:17), mas é ele que guia à plena verdade (Jo. 16:13) [25]. Não se trata apenas de retidão expressa ou vivida, mas da verdade que transcende os céus [26], que permanece eternamente [27] e é a própria essência de Deus. Atuando pela caridade, essa verdade se manifesta como o dom supremo, culminando na visão beatífica. Este dom é reservado a Deus; não devemos buscá-lo em nenhum outro além d’Ele, nem tentar compreender a profundidade do conhecimento que Deus concede ao próximo sobre isso. Contudo, nossa fidelidade em acolher o dom de Deus se torna um sinal de amor a Deus e ao próximo, realizando assim a caridade da verdade em sua plenitude. Minhas recusas não podem impedir que Deus conceda ao próximo, mas este deixaria de aproveitar o mesmo dom que recuso receber. A santificação pela verdade está em profunda sintonia com a natureza desta última, a ponto de não se poder testemunhá-la sem contemplar nela uma obra eminente da sabedoria divina. O ato dessa contemplação não apenas reconhece essa verdade, mas também contribui para a integração do sujeito na Verdade, a fonte de toda verdade.
No entanto, há mais a considerar. Já que a graça da verdade verdadeiramente nos alcança por meio da humanidade de Cristo, e essa é uma realidade criada, estabelece-se entre ela e nós uma certa reciprocidade. A humanidade sagrada está condicionada, como princípio de comunicação, pela nossa própria receptividade, de maneira semelhante à palavra do orador, que, pelo próprio contato com a audiência, se torna um estado de comunicabilidade que não afeta seu teor abstrato e tampouco dele se origina. Aqueles que ouvem uma palavra a ponto de alinhar todo o seu ser com ela provocam harmonias que tornam a palavra intrinsecamente mais penetrante: conferem-lhe uma exigência de comunicabilidade à qual, em breve, deverão se render aqueles que inicialmente ouviam com pouca atenção ou com uma docilidade menos profunda. De modo análogo, receber a Palavra da verdade é, por meio dessa mesma Palavra, garantir a mesma graça aos outros. A Verdade, encarnada em Cristo, reflete em si mesma a profundidade que ela penetra: adquire, nas modalidades temporais transformadas em um estado eterno, uma penetrabilidade que, por sua própria natureza, precisa ser realizada no tempo. O fato de Judas ter recusado a graça do arrependimento e da conversão contida no olhar e na palavra de Jesus, evidentemente, não diminui as virtudes infinitas contidas, para cada um de nós, na Verdade eterna; mas o fato de os samaritanos terem consciência de alcançar uma fé mais pura ao se unirem a Jesus em vez de acolherem o testemunho de seu compatriota [28] é o que manifestou e realizou, em primeiro lugar, uma das possibilidades santificantes da Verdade: manifestação e realização cuja influência se estende até nós.
Portanto, há uma caridade da verdade, sendo mais intrínseca à participação na Verdade quanto mais profunda é essa participação.
Ao adotarmos a Verdade como norma para nossas palavras e pensamentos, incentivamos os outros à sinceridade, elemento essencial para uma vida em comunhão com Deus. No entanto, inversamente, devemos estar abertos a receber, de qualquer fonte que venha, o serviço de nos re- velarem as nossas próprias verdades.
Se incorporarmos a Verdade como princípio permanente em nossa vida, irradiaremos uma luz purificadora e transformadora. Simultaneamente, devemos discernir, em suas infiltrações mais sutis, a sedutora facilidade que tende a transformar Deus em um super-homem, ou a substituir a loucura da cruz pela sabedoria da razão, a verdade de Deus pela verdade diminuída pelos homens [29]. Existe traição e fidelidade entre os cristãos; apenas eles podem atingir determinado grau tanto na lealdade quanto na traição.
Por fim, ao acolhermos a Verdade não apenas como medida de uma vida que provém de nós, mas de forma mais misteriosamente íntima, que nos reforma em nossa própria fonte, essa verdade se torna um princípio ativo e transformador. Ela nos torna verdadeiros ao nos colocar em equação com ela, permitindo-nos exercer a caridade da verdade por meio de um ato que estabelece um estado de comunicação permanente com o que nela era apenas comunicável.
Apresentamos brevemente o itinerário concreto da caridade da verdade; em seguida, indicamos seu fundamento teológico. Talvez seja necessário relembrar, para concluir, que é crucial manter unidos esses dois pontos de vista, a fim de evitar que uma ascese sem elevação se dissolva em fórmulas prontas e que uma mística sem controle se esgote em abstrações. O ato mais humilde de nossa vida sempre pode ser justificado pela mais elevada inspiração: a verdade subsiste apenas na Verdade, assim como a humanidade de Jesus subsiste no Verbo. Jesus é dado aos homens para que cada um, para si mesmo e para seus irmãos, alcance o Verbo da Verdade: caritas veritatis in Deo et in nobis.
Notas
1 Artigo original publicado em La Vie Spirituelle, de maio de 1951, pág. 472., traduzido por San a partir da versão espanhola de Irmã Josefina Acevedo Sojo, O.S.B., Abadia de Santa Escolástica.
2 De Civ. Dei 19:19.
3 Salmos 12:2-3: “Salva-nos, Senhor, porque faltam os homens bons; porque são poucos os fiéis entre os filhos dos homens. Cada um fala a falsidade ao seu próximo; falam com lábios enganosos e coração duplo”.
4 PASCAL, Pensées, Ed. Brunschvicg ou Girard, No 100.
5 Lucas 3:10-14.
6 I Cor. 7:20: “Cada um fique no estado em que foi chamado”.
7 Tobias 3:2: “Tu és justo, Senhor, e justas são as tuas obras; todos os teus caminhos são de misericórdia e verdade”.
8 Salmos 39:12: “E Tu, Senhor, não retires de mim as tuas misericórdias! Que a tua graça e a tua fidelidade me guardem sempre!”
9 Salmos 56:4: “Deus enviará desde o céu a sua salvação; Deus enviará a sua miseri- córdia e a sua verdade”.
10 Salmos 115:1; Romanos 3:4: “Todo homem é mentiroso”.
11 Podemos transpor desta maneira as tão audaciosas convocações de Lv 11:44 e 19:2: “Sede santos porque eu sou santo”, e de Mt 5:48: “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”.
12 Esta é, em essência, a interpretação proposta por Santo Agostinho do Salmo 84:12: “A verdade brotará da terra, e a justiça olhará do céu”.
13 Jo. 18:37-38.
14 Ef. 4:20-21: “Mas vós não aprendestes assim a Cristo, se é que o ouvistes e nele fostes instruí dos, segundo é a verdade em Jesus”.
15 Jo 15:3: “Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado”.
16 Lembremos dos conselhos de Jesus sobre a maneira de rezar, em Mt 6:6.
17 Salmos 33:9: “Provai e vede como o Senhor é bom”. O contexto contemporâneo destaca, por contraste, que um certo grau de autenticidade não pode ser senão um dom de Deus.
18 Jo. 5:22: “O Pai não julga ninguém, mas entregou todo o julgamento ao Filho”.
19 Jo. 8:38. Cf. 1:18.
20 O Pai é testemunha, começo, fim... isso é repetidamente enfatizado no Evangelho de São João.
21 A fé deve afastar toda timidez, uma vez que concede o dom de realizar obras ainda maiores do que as feitas pelo próprio Jesus. Cf. Jo. 14:12.
22 Assim ela gostava de se expressar, a beata María de la Encarnación.
23 Jo. 16:14; Fp. 1:19. Nos Atos, o batismo no Espírito Santo equivale ao batismo de Jesus.
24 Jo. 15:26-27; Mt. 10:20; Rm. 8:9-11.
25 I Jo. 5:6: “E o Espírito é quem dá testemunho, porque o Espírito é a verdade.”
26 Salmos 56:11: “Pois a tua fidelidade se estende até os céus, e a tua verdade alcança as nuvens”.
27 Salmos 11:2: “Pois grande é a Sua misericórdia para conosco, e a verdade do Senhor permanece eternamente”.
28 Jo. 4:42. Santo Tomás, em seu belo comentário, demonstra que o progresso da fé está ligado ao fato de que Deus opera na alma de maneira mais imediata: a ação divina se manifesta diretamente, sem ser velada pela mediação dos sinais.
29 Salmos 11:2: Quoniam diminutae sunt veritates a filiis hominum.
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