Por Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, O.P.
Retirado da Obra: O Homem e a Eternidade — A Vida eterna e a profundidade da alma
Para fazer uma justa ideia desta visão, deve-se ver em que sentido ela é imediata, qual é seu princípio, e depois qual é seu objeto primário e seu objeto secundário.
Ela é intuitiva e imediata.
Como ensina a Igreja por Bento XII, este ato de inteligência é uma visão clara, intuitiva, imediata da essência divina; sem ser compreensiva, nos faz conhecer a Deus sicuti est, tal qual é em si mesmo.
Por sua clareza, essa visão se distingue do conhecimento obscuro que temos de Deus, seja pela razão, seja pela fé.
Por seu caráter intuitivo e imediato, essa visão é imensamente superior a todo conhecimento abstrato, discursivo, analógico, que não atinge a Deus senão partindo de seus efeitos. Ela está muito acima de toda a abstração, de todo o raciocínio, de toda analogia, é a intuição imediata da realidade suprema do Deus vivo. Também vai muito além de todas as visões intelectuais que alguns grandes místicos recebem aqui na Terra, e que permanecem na ordem da fé, porque não dão ainda a evidência intrínseca da Trindade. A visão beatífica dá, ao contrário, essa evidência e mostra que se Deus não fosse trino, não seria Deus.
Somos, portanto, chamados a ver a Deus não somente no espírito das criaturas, por perfeitas que sejam, não somente por sua irradiação no mundo dos anjos, mas a vê-la imediatamente sem intermédio de nenhuma criatura cuja visão se interporia, melhor mesmo do que vemos as pessoas com que falamos, porque Deus, sendo todo espiritual, estará intimamente presente na nossa inteligência e a iluminará e fortificará para lhe dar a força de vê-lo.
Como mostra Santo Tomás, entre Deus e nós não haverá nem mesmo intermédio de uma ideia, porque toda ideia criada, mesmo infusa, por mais elevada que se suponha, será sempre uma participação limitada da verdade e não poderá, portanto, apresentar tal qual é em si, aquele que é o próprio ser, a verdade infinita, a sabedoria sem limites, a fonte infinitamente luminosa de todo saber. Nunca uma ideia criada poderá representar tal qual é, em si, aquele que é o próprio pensamento o Ipsum Intelligere Subsistens, um puro raio intelectual eternamente subsistente, assim um copo de uma criança de Santo Agostinho não pode conter um oceano.
Não poderemos também, dizem os tomistas, exprimir nossa contemplação numa palavra, mesmo numa palavra interior, num verbo mental, porque esse verbo criado e finito não poderia exprimir o Infinito, tal qual é em si. Essa contemplação imediata nos absorverá, de certo modo, em Deus, nos deixando sem palavras para traduzi-la, porque um único verbo pode exprimir perfeitamente a essência divina: O Verbo gerado desde toda a eternidade pelo Pai. A essência divina sendo sumamente inteligível por si mesma e mais íntima de nós que nós mesmos, em nossa inteligência fortificada e iluminada, fará o papel de ideia impressa e expressa. Não pode-se conceber na ordem do conhecimento uma união mais íntima, embora comporte diversos graus.
Já aqui na Terra, quando estamos diante de um espetáculo sublime, e não encontramos palavras para exprimi-lo, dizemos que é inefável ou indizível; com mais forte razão, diremos o mesmo à visão de Deus face a face.
Intuitiva e absolutamente imediata, essa visão não será contudo, compreensiva, como aquela que Deus tem de si mesmo. Só Ele pode se conhecer tanto quanto é cognoscível. Não há aqui contradição alguma: aqui na Terra várias pessoas vêem a mesma paisagem mais ou menos bem, conforme têm uma vista melhor ou pior; cada um, no entanto, vê toda a paisagem. Do mesmo modo, várias inteligências captam mais ou menos profundamente a mesma verdade enunciada, conforme elas são mais ou menos penetrantes. Cada uma delas capta toda a proposição enunciada (sujeito, verbo e atributo) mais ou menos perfeitamente. Do mesmo modo, no céu, todos os bem-aventurados vêem a Deus imediatamente, mas com uma penetração diferente, proporcional aos seus méritos, e nunca tão profundamente quanto o próprio Deus se conhece, tanto quanto é cognoscível, em tudo o que é, em tudo o que pode, em tudo o que quer.
A luz da Glória, princípio da visão beatífica.
Esta visão intuitiva e imediata alcança assim o próprio objeto da visão incriada que Deus tem de si mesmo; o alcança menos perfeitamente que Ele, mas o alcança.
Como isso é possível? Seria absolutamente impossível para toda inteligência criada e criável deixada unicamente as suas forças naturais, porque essas forças são proporcionais ao seu objeto natural, que é infinitamente inferior ao objeto próprio da inteligência divina. A inteligência criada, por alta que seja, tem, portanto, necessidade de uma luz sobrenatural que a eleve, que a fortifique para que se torne capaz de ver a Deus, tal qual é em si; de outro modo, estaria diante dele como o pássaro noturno diante do sol, não poderia vê-Lo. Essa luz, recebida de um modo permanente na inteligência dos bem-aventurados, é chamada luz da glória, e ela é neles mais ou menos intensa, segundo o grau de seus méritos e de sua caridade. O Concílio de Viena condenou aqueles que pretendiam que “a alma humana não tem necessidade de ser elevada pela luz da glória para ver a Deus e gozar santamente dele”.
A visão beatífica procede assim da faculdade intelectual dos bem-aventurados como de seu princípio radical, e ela procede da luz da glória como de seu princípio próximo, que eleva até a vitalidade de nossa inteligência para lhe dar uma vida nova. Assim, a virtude infusa da caridade eleva a vitalidade de nossa vontade.
A luz da glória e a caridade infusa, recebidas nas duas faculdades superiores, derivam da graça santificante consumada, recebida como um enxerto divino na própria essência da alma. Vemos, então, cada vez melhor que a graça santificante merece ser chamada participação da natureza divina, porque ela é um princípio radical das operações, que, quando está plenamente desenvolvido, nos torna capazes de ver a Deus imediatamente como Ele se vê. Em Deus, a natureza divina é o princípio das operações estritamente divinas, como a visão incriada de si mesmo; na alma do justo no Céu, a graça santificante é o princípio radical da visão intuitiva da divina essência, visão que tem o mesmo objeto que o conhecimento incriado, sem, contudo, penetrá-lo tão profundamente.
O objeto da visão beatífica.
O objeto primário e essencial é o próprio Deus; o objeto secundário são as criaturas conhecidas em Deus.
Os bem-aventurados vêem clara e intuitivamente o próprio Deus, tal qual é, isto é: sua essência, seus atributos e as três Pessoas divinas. O Concílio de Florença diz: “Intuem claramente o próprio Deus, tal qual é”. Assim, a visão beatífica ultrapassa imensamente não somente a mais sublime filosofia, mas o conhecimento natural dos anjos mais elevados e de todo anjo criável. Os bem-aventurados vêem todas as perfeições divinas concentradas e harmonizadas na sua fonte comum, na essência divina que as contém eminente e formalmente, mais e melhor que a luz branca contém as sete cores do arco-íris. Eles vêem também, como a misericórdia mais terna e a justiça mais inflexível, procedem de único e mesmo Amor, infinitamente generoso e infinitamente santo; como a própria qualidade eminente do amor identifica em si atributos aparentemente tão opostos. Os bem-aventurados vêem como a Misericórdia e a Justiça se unem, de variados modos, em todas as obras de Deus. Eles vêem como o Amor incriado, mesmo no seu beneplácito mais livre, se identifica com a pura Sabedoria, como não há nada nele que não seja sábio, e como nada há na divina Sabedoria que não se converta em amor. Eles vêem como esse Amor se identifica com o Sumo Bem, sempre amado desde toda a eternidade; como a divina Sabedoria se identifica com a Verdade primeira, sempre conhecida; como todas essas perfeições são unificadas na própria essência daquele que é.
Eles contemplam esta eminente simplicidade de Deus, esta pureza e santidade absolutas, condensação de todas as perfeições sem vestígio de nenhuma imperfeição.
No mesmo e único olhar intelectual, nunca interrompido, vêem também a infinita fecundidade da mesma natureza divina florescerem em três Pessoas, a eterna geração do Verbo, “esplendor do Pai e imagem de sua substância”, a inefável expiração do Santo Espírito, termo do amor mútuo do Pai e do Filho, que eternamente os une na mais íntima difusão deles mesmos.
Tal é o primeiro objeto da visão beatífica.
Aqui na terra, não podemos senão enumerar as perfeições divinas, umas após as outras, e não vemos de maneira íntima se conciliam; como a infinita bondade se une à permissão do mal, e, às vezes, de uma malícia terrível; dizemos justamente que Deus não permite o mal senão para um bem maior, mas esse bem maior ainda não o vemos descoberto. Ao contrário, no Céu, tudo se esclarecerá. Veremos todo o preço das provações sofridas, veremos mesmo como se conciliam intimamente a infinita justiça tão temível e a ternura da infinita misericórdia, como se conciliam no amor incriado da divina bondade; porque essa é essencialmente difusa de si mesma, isso é o princípio da misericórdia; e de outra parte, essa infinita bondade tem o direito de ser amada sobre todas as coisas, isso é o princípio da justiça. Somos, na terra, como um homem que conhece as sete cores do arco-íris, mas que nunca tivesse visto a luz branca. No céu veremos a luz incriada e, por isso mesmo, como as perfeições divinas mais diferentes se conciliam nela e se unificam.
Mas os bem-aventurados vêem também em Deus, in Verbo, a santa humanidade que o Filho único assumiu para sempre para nossa salvação. Eles contemplam nela a graça da união hipostática, a plenitude de graça, de glória e de caridade da santíssima alma de Jesus, o valor infinito de seus atos teândricos, o preço sem medida do mistério da Redenção, sua irradiação, o valor infinito de cada Missa, a vitalidade sobrenatural de todo o Corpo Místico, da Igreja triunfante, padecente, militante; vêem com admiração o que pertence a Cristo como Sacerdote Eterno, como Juiz dos vivos e dos mortos, como Rei universal de todas as criaturas e Pai dos pobres.
Pela mesma visão beatífica, os santos contemplam em Deus a eminente dignidade da Mãe de Deus, sua plenitude de graça, suas virtudes, seus dons, sua mediação universal de corredentora.
E como a beatitude é um estado perfeito que comporta a reunião de todos os bens legítimos, cada santo no Céu conhece, em Deus, os outros bem-aventurados, sobretudo aqueles que conheceu precedentemente e que sobrenaturalmente amou.
Do mesmo modo, cada santo vê, seja em Deus, seja fora de Deus, por meio de ideias criadas, aqueles que ainda estão na terra ou no Purgatório e que tiveram uma relação especial com ele. Por exemplo, um fundador de uma Ordem conhece tudo o que concerne à sua família religiosa e as orações que seus filhos lhe dirigem. Um pai e uma mãe de família conhecem as necessidades espirituais de seus filhos que estão ainda na terra; um amigo que chegou ao fim de sua corrida conhece igualmente o que pode facilitar a viagem dos amigos que se dirigem a ele. São Cipriano nos diz: “Na pátria, todos os nossos que chegaram nos esperam, desejam vivamente que participemos da mesma beatitude e estão cheios de solicitude para conosco”.
A visão beatífica é, portanto, um ato único, sempre idêntico, medido pelo único instante da imóvel eternidade; é, portanto, um ato inamissível, fonte de felicidade dos eleitos e, como veremos, de sua impecabilidade absoluta.
Neste conhecimento sobrenatural, perfeito tudo se harmoniza, não há mais perigo de dar demasiada atenção ao que é secundário, perdendo de vista o principal. Não se vêem as coisas corporais senão do alto, em relação com as coisas espirituais. Não se veem aquelas do tempo, senão em relação com a plenitude da vida da eternidade.
Não se vêem mais os efeitos naturais ou sobrenaturais de Deus senão como irradiação de sua ação; esses efeitos, portanto, não podem mais nos deter. Não se vêem senão os meios com relação ao fim último, Deus princípio e fim de tudo. Não é mais a visão oriental que alcança tudo na linha do tempo entre o passado e o futuro, é a visão vertical que julga tudo, do alto, pela Verdade suprema.
Também tudo o que a visão beatífica faz conhecer leva os santos a amar a Deus acima de tudo, com amor imutável, e a amar suas criaturas nele, na medida em que são uma manifestação de sua infinita bondade.
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