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A liberdade religiosa


Paulo VI utilizando um Ephod judaico, vestimenta que era utilizada pelo Sumo Sacerdote de Israel.

A oposição do Vaticano II à doutrina anterior e suas consequências teologal e teológicas


I. A oposição do Vaticano II e da doutrina anterior acerca da liberdade religiosa. II. A consequência teologal dessa oposição. III. As consequências teológicas da liberdade religiosa.


I

A oposição que mais salta aos olhos entre o ensinamento do Vaticano II e a doutrina anteriormente ensinada pela Igreja Católica concerne à liberdade religiosa. Mais precisamente, trata-se da existência de um direito à liberdade religiosa no foro externo e público, da existência de um direito de professar publicamente a religião de sua escolha. Trata-se, pois, do direito civil em matéria religiosa. A religião Católica Romana é a única verdadeira religião; em razão de sua missão divina, ela tem direito imprescritível à liberdade civil para tudo o que se refira a essa missão. O ponto, então, no qual existe a oposição é a liberdade do exercício público das religiões falsas e dos falsos cultos. Cumpre, pois, eliminar o que não está em questão: — a liberdade do ato de fé; — o dever de buscar a verdade religiosa e de aderir a ela; — a obrigação decorrente da consciência errônea; — a liberdade da Igreja Católica; — o eventual dever do Estado de tolerar, em certos casos, os falsos cultos, para evitar males maiores (dever que não funda, de modo algum, um direito correlativo nos sujeitos). Tampouco se trata, neste primeiro ponto, de explicar ou de justificar o ensinamento de Pio IX; trata-se simplesmente de constatar e de receber as condenações que ele fulmina, condenações de falsos princípios sociais considerados em si mesmos, independentemente de seu contexto filosófico (racionalismo, naturalismo) ou histórico (individualismo). Trata-se de constatar que Dignitatis humanæ ensina como sendo um direito natural aquilo que Quanta Cura condena como decorrente de um princípio contrário à Revelação divina: o que é estritamente impossível. Enfim, antes de manifestar essa oposição, creio ser útil precisar que uma coisa é não ver o nexo, a continuidade ou a coerência entre dois ensinamentos, e outra coisa é ver uma incompatibilidade radical entre eles. No primeiro caso, se se trata de ensinamentos que pertencem à fé, aplica-se o Credo ut intellegam. No segundo caso, é impossível para a inteligência humana, com a melhor boa vontade do mundo, aderir verdadeiramente e simultaneamente a duas proposições contraditórias ou contrárias. Última precisão. Há que receber os textos do Magistério segundo o seu sentido óbvio, que por vezes pode ser técnico ou difícil, e não segundo sentidos “forçando a barra” para torná-los compatíveis com outros. Se se faz mister uma obra de 300 páginas para esticar um texto num sentido, esticar o outro no sentido oposto, e encontrar casos particulares para afirmar altissonantemente que há identidade, continuidade e compatibilidade, ao passo que os sentidos primeiros e claros recusam-se a essas contorções, é que há um grave problema no qual a fé (que se exerce pela inteligência natural) não encontra satisfação. Para rasurar a oposição, não se pode, então, recorrer a métodos do gênero: “— Seu Guarda, chamei o senhor para prestar queixa contra o meu vizinho, que comete atentados ao pudor: ele nunca fecha a janela do banheiro! — Sei… mas não dá pra ver essa janela da sua casa! — Dá, sim! Pegue essa tábua de passar, prenda-a, de um lado, embaixo da mesa, pondo a outra ponta para fora da janela. Em cima da mesa, empilhe dez grossos dicionários para fazer contrapeso. Na ponta da tábua que está para fora, ponha este banquinho, suba nele, incline-se para a frente segurando-se na caleira e notará que se pode entrever que a janela dele está aberta. O senhor vê bem que eu tenho razão. É insuportável!”

1. Os textos a) Quanta Cura

“E, contra a doutrina da Sagrada Escritura, da Igreja e dos Santos Padres, afirmam eles sem hesitação que:

‘a melhor condição da sociedade é aquela em que não se reconheça ao poder o dever de reprimir, mediante penas legais, as violações da lei católica, senão na medida em que a tranquilidade pública o exija’. [A]

Em decorrência dessa ideia completamente falsa do governo das sociedades, não temem eles sustentar aquela opinião errônea, em extremo funesta para a Igreja Católica e a salvação das almas, que o Nosso Predecessor Gregório XVI, de feliz memória, qualificou de ‘delírio’:

‘A liberdade de consciência e de cultos é um direito próprio de cada homem; [B]

esse direito deve ser proclamado e garantido pela lei em toda sociedade bem organizada’. [C]”

Chamo de [A], [B] e [C] três proposições condenadas. Eis o texto delas em latim: [A] Optimam esse conditionem societatis, in qua imperio non agnoscitur officium coercendi sancitis pœnis violatores catholicæ religionis, nisi quatenus pax publica postulet. [B] Libertatem conscientiæ et cultuum esse proprium cujuscumque hominis jus… [C] quod lege proclamari et asseri debet in omni recte constituta societate. A proposição [A] é condenada por si mesma e declarada absolutamente (omnino) falsa: não é, pois, em razão do naturalismo ou do individualismo dos que a professavam em 1864 que ela é reprovada; a mesmo coisa quanto às proposições [B] e [C], qualificadas como um todo de opinião errônea. b) Dignitatis Humanæ Aqui o § 2:

“O Concílio do Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa [B’].

Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de toda a coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou de qualquer poder humano seja qual for, de tal modo que,

em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência, nem impedido de agir, dentro dos justos limites, segundo a sua consciência, em privado e em público, só ou associado com outros [A’].

Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento na própria dignidade da pessoa humana, tal como a dão a conhecer a Palavra de Deus e a razão mesma.

Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser reconhecido de tal maneira que constitua um direito civil [C’].”

Chamei de [B’], [A’] e [C’] três princípios apresentados como universais, independentes das circunstâncias, pois fundados na natureza mesma do homem sob o aspecto da dignidade. Na proposição [A’], o que está em causa é: “impedido de agir… em público…”. [A’] Ita quidem ut in re religiosa neque aliquis cogatur ad agendum contra suam conscientiam neque impediatur, quominus juxta suam conscientiam agat privatim et publice, vel solus vel aliis consociatus, intra debitos limites. [B’] Haec Vaticana synodus declarat personam humanam jus habere ad libertatem religiosam. [C’] Hoc jus personæ humanæ ad libertatem religiosam in juridica societatis ordinatione ita est agnoscendum, ut jus civile evadat. O conteúdo dos justos limites de [A’] é dado no § 7: trata-se das exigências da paz e da moralidade públicas. Isso coincide com a tranquilidade pública mencionada pela Quanta Cura, mas, de todo modo, isso se refere à aplicação do direito, o qual é afirmado por si mesmo.




2. A oposição Por um lado, as proposições [B] e [C] condenadas por Quanta Cura são equivalentes às proposições [B’] e [C’] ensinadas por Dignitatis Humanæ. Por outro lado, a proposição [A] condenada por Quanta Cura é necessariamente implicada pela proposição [A’] ensinada pelo Vaticano II: e, portanto, a condenação de [A] acarreta a de [A’]. Recordo que se trata da liberdade religiosa no foro externo público: ela é, sim ou não, um direito natural? Esse direito deve ser reconhecido legalmente na sociedade civil? O encadeamento entre [A’] e [A] se estabelece assim: Se em matéria religiosa ninguém deve ser impedido de agir em público segundo a sua consciência (dentro de justos limites) [A’], então o poder público não deve reprimir mediante penas legais os violadores da lei católica (a não ser na medida em que a tranquilidade pública o exija). Segue-se que a condição da sociedade em que não se reconhece ao poder o encargo de reprimir mediante penas legais os violadores da fé católica (a não ser…) é melhor que a condição da sociedade em que se reconhece ao poder tal encargo, o que equivale a dizer que a melhor condição da sociedade é aquela em que não se reconhece ao poder o encargo de reprimir pela sanção de penas os violadores da fé católica (a não ser…) [A]. É bem claro, aliás, que se a liberdade religiosa é um direito natural, a melhor condição da sociedade é aquela em que não se reconhece ao poder o encargo de violar esse direito natural! Logo, [A’] acarreta necessariamente [A], e a condenação de [A] acarreta a de [A’]. Quanta Cura e Dignitatis Humanæ são radicalmente incompatíveis.


II

A contradição, praticamente termo por termo, está, pois, comprovada. Pio IX condena o que o Vaticano II ensina. O problema então é grave, e mostra-se nitidamente mais grave se se considera que estamos em presença de dois casos de infalibilidade…

1. Quanta Cura é um ato pontifício ex cathedra Basta ler a conclusão do documento para que isso apareça com evidência: “Recordando-Nos de Nosso encargo apostólico (…) Nós reprovamos, proscrevemos e condenamos com Nossa autoridade apostólica todas e cada uma das doutrinas e das opiniões pervertidas detalhadamente recordadas nesta Nossa carta; e Nós queremos e mandamos que todos os filhos da Igreja Católica tenham-nas absolutamente por reprovadas, proscritas e condenadas” (Denzinger1699). O Papa Pio IX falou infalivelmente toda vez que, na Encíclica, ele condenou erros concernentes à fé ou à moral; é então infalivelmente que esses erros foram e permanecem condenados.

2. Dignitatis Humanæ é um ato conciliar infalível Com efeito, o decreto afirma três vezes que a liberdade religiosa está fundada na Revelação divina, pois ela decorre da dignidade do homem tal qual Deus a revelou: § 2: “Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento na dignidade da pessoa humana tal como dão a conhecer a Palavra de Deus e a razão mesma.” § 9: “Esta doutrina sobre a liberdade tem suas raízes na Revelação divina, o que, para os cristãos, é uma razão a mais para serem santamente fiéis a ela.” § 12: “Por isso, a Igreja, fiel à verdade evangélica, segue o caminho seguido por Cristo e os Apóstolos, quando ela reconhece o princípio da liberdade religiosa como conforme à dignidade humana e à Revelação divina, e quando ela encoraja uma tal liberdade.”




3. Impossibilidade de um duplo ato de fé Se nos detivermos aí, encontramo-nos perante uma impossibilidade: haveria que crer com fé divina e católica e simultaneamente duas proposições que não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo: a liberdade religiosa (a liberdade civil em matéria religiosa) é contrária à Revelação divina; a liberdade religiosa é conforme à Revelação divina e nela está fundada. É, portanto, impossível de crer ao mesmo tempo que Pio IX é Papa e que o Vaticano II é um concílio ecumênico. É uma coisa ou outra. E não é uma escolha livre que é deixada à apreciação do fiel: é a própria fé, a fé católica exercida, que deve indicar, sem dúvida nem equívoco, a qual partido ela torna necessária a adesão e de qual partido ela torna necessária a rejeição.

4. Convergência e anterioridade A fé católica nos faz imperativamente aderir à proposição: Pio IX é Papa, Vaticano II é um falso concílio e a liberdade religiosa é um falso direito. E isso por duas razões: — por uma razão material e segunda: a liberdade religiosa foi com frequência condenada; essa condenação exprime, pois, a doutrina perene da Igreja; — por uma razão formal e principal, a anterioridade, vitalmente integrada ao ato de fé. Não se deve esquecer de levar em conta que na terra a Igreja Católica vive no tempo; é essencial ao seu caráter de Igreja militante. Quando Dignitatis Humanæ ensina que a liberdade religiosa está fundada na Revelação divina, essa declaração conciliar dirige-se a almas que, em razão da Quanta Cura, e do ensinamento e prática seculares da Igreja, creem , dentro da fé, que dita liberdade religiosa é contrária à Revelação divina. A fé teologal interdiz o crente (que adere anteriormente e tranquilamente à Quanta Cura) de tornar a pôr em causa a fé. E, portanto, com a chegada da Dignitatis Humanæ, há somente três soluções possíveis: ausência de contradição, ausência de necessidade de aderir, ausência da autoridade. Assim, após ter verificado que há realmente contradição segundo o sentido óbvio dos textos, após ter constatado que a Dignitatis Humanæ impera adesão de fé, o crente deve necessariamente recusar sua adesão ao texto da Dignitatis Humanæ e à autoridade que lho ensina. É, pois, a fé católica que impede de considerar o Vaticano II como um verdadeiro concílio, e portanto de considerar Paulo VI (donde o Vaticano II tira toda a sua autoridade) como verdadeiro Papa.

III

Com brevidade, enumeremos as consequências do ensinamento do Vaticano II, não do ponto de vista da contradição, mas do ponto de vista de seu conteúdo. 1. A liberdade religiosa não é o indiferentismo, mas inelutavelmente conduz a ele. Dignitatis humanæ ensina que a liberdade religiosa é um direito, e um direito ocupa seu lugar em todas as legislações. Mas, para aos cristãos ordinários (e nós o somos todos), para os pobres, para os ut in pluribus, o que é legal é moral – ou torna-se moral muito depressa (os promotores do “casamento civil” contavam com isso, e tiveram êxito). E, assim, se todas as religiões devem ser legalmente deixadas livres, é que elas são moralmente permitidas – dizem a si mesmos espontaneamente, ou pouco a pouco, os pobres. O Vaticano II não ensina o indiferentismo, mas sua liberdade religiosa a ele conduz os espíritos, tão seguramente quanto todos os discursos. E quiçá de forma mais duradoura, pois modelada na ordem legislativa. 2. O direito afirmado pela Dignitatis humanæ pode parecer periférico na doutrina católica. Mas ele contém em germe a destruição de toda a ordem moral. Pois afirmar que um direito (ou seja, aquilo que é justo: jus est justum) pode ter um objeto mau (uma falsa religião), é a negação mesma do direito. Está-se lidando, para começar, com um direito civil; mas se passará bem depressa ao direito moral. É bem conhecido que, quando se quer introduzir um falso princípio, se o faz num domínio periférico, ou mal conhecido, ou de pouca importância. Uma vez que se o tenha feito aceitar, só resta aguardar… 3. Há no fundo da liberdade religiosa uma mudança da concepção da natureza humana. Aquilo que é a motivação profunda da Dignitatis humanæ, o que domina nos debates que a prepararam, o que está subjacente ao texto inteiro, é que a liberdade é o primeiro atributo do homem, sua característica essencial, o fundamento de todos os seus direitos, o critério último do bem e do mal sociais. Se os termos da declaração não são tão explícitos, é porém na perspectiva da liberdade, e da liberdade reivindicada, que ela se põe de partida, antes mesmo de evocar Deus e a necessidade de buscar a Ele e de servir a Ele. Esse deslocamento e essa hipertrofia da liberdade que, de modo natural dos atos humanos, é promovida à categoria de divindade escondida no homem, não são exprimidos pela Dignitatis humanæse não na ordem social. Mas, como a vida em sociedade é a perfeição natural da vida humana, é portanto a própria natureza que é concebida como primordialmente finalizada pela liberdade. É o personalismo levado a seu ponto de ebulição, é a reedição in causa donon serviam. 4. Há uma consequência imediata da afirmação do falso direito à liberdade civil em matéria religiosa que concerne à concepção do bem comum da sociedade. Este não comportará mais, em seus elementos constitutivos, a posse comum e pacífica da verdadeira religião. Esta desnaturação provém de uma espécie de necessidade, e a manifesta: pois o bem comum não é mais considerado como o impulso comum, a necessária entreajuda, para o conhecimento da verdade e a realização do bem, mas como uma harmonização das liberdades individuais. 5. A partir daí, o Reinado social de Jesus Cristo não está mais organicamente ligado ao bem comum: ele aparece como um elemento adventício “sobreposto”, facultativo, dessueto, heterogêneo à marcha da humanidade rumo à liberdade, ligado às circunstâncias, na melhor das hipóteses individual, folclórico. Ele deve dar lugar ao reino do homem… bela perspectiva!


Temos todo este material, sintetizado em forma de vídeo, no nosso canal do Youtube:



Apêndice (de responsabilidade do tradutor)

“(...) Pio XII está em perfeita continuidade com o ensinamento citado [da Quanta Cura]: ‘O que não corresponde à verdade e à lei moral não tem objetivamente nenhum direito à existência, nem à propaganda, nem à ação.’ (Discurso aos juristas italianos [N. do T. - Ci riesce], 6 dez. 1953).

É verdade que, em razão da invasão dos totalitarismos, Pio XII põe fortemente o acento no dever dos Estados de respeitar e promover a dignidade humana. Mas, se pode acontecer de a degradação da Cristandade fazer do garantir a liberdade religiosa um dever para o Estado, esta nunca é um direito natural e exigível.

Com efeito, é tão somente em justiça comutativa que há correlação estrita entre direito, de um lado, e dever, do outro. Em justiça legal, em justiça distributiva como em caridade, essa correlação não existe.

Tenho porventura o dever de dar uma moeda a um mendigo: isso não dá a ele um direito de recebê-la; ele não pode, pois, exigi-la. Se dirijo o Estado, tenho o dever de escolher ministros competentes: isso não dá aos homens competentes o direito de serem ministros.

Receio também que, na sequência dos debates, se esqueça um pouco da doutrina católica sobre a necessária Realeza de Jesus Cristo, que dá a Ele o direito de reinar. (…)”]



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