Por R. P. Hugon O.P.
(Éd., Études Sociales et Psychologiques, Ascétiques et Mystiques, 3ª ed., Paris, 1924.)
As controvérsias animadas desses últimos anos conferiram ao estudo da mística uma nova e singular atualidade1. Muitos dos fiéis piedosos, até em meio ao mundo, encontram com que alimentar a alma nos ensinamentos substanciosos de Santo Tomás; apresentar a síntese pacificada da doutrina mística do Mestre, para além de toda a polêmica, é prestar-lhe grande homenagem.
Para caracterizá-la, recorremos aos grandes pontífices Bento XV e Pio XI. Bento XV, conhecido sobretudo como o Papa da Caridade e por conseguinte imortal, segundo aquilo do Apóstolo: Charitas numquam excidit – dizíamos, Bento XV salientou a mística de Santo Tomás na missiva enviada ao Pe. Bernadot, Diretor da revista La Vie Spirituelle, a 15 de setembro de 1921:
“Expôs com muita clareza Santo Tomás, disse ele, a doutrina dos Padres acerca da elevação da vida sobrenatural e das condições do progresso na graça das virtudes e dons do Espírito Santo, cuja perfeição ou florescimento se acha na vida mística: ...ac praterea quibus conditionibus proficiat gratia virtutum et domorum Spiritus Sancti, quorum perfectio vita mystica continetur2.”
Escrevia Pio XI, cujo pontificado já de si tão fecundo se nos antolha em frutos que sobejarão da promessa das flores, na bela encíclica Studiorum ducem, de 29 de junho de 1923: “Para bem conhecer os princípios fundamentais da teologia ascética e mística, é mister tomar São Tomás como guia e aderir ao que ele ensina sobre a extensão do preceito do amor a Deus e o aumento da caridade e dos dons do Espírito Santo – que lhe são conexos –, bem como sobre os diversos estados (o estado de perfeição, a vida religiosa, o apostolado), as diferenças que os distinguem e a natureza verdadeira de cada um deles.”
Assim resumem os Papas a espiritualidade de Santo Tomás com este conceito claríssimo: a vida mística é o florescimento definitivo da vida da graça e dos dons do Espírito Santo ou, noutros termos, é a vida sobrenatural e completa do homem que se elevou ao estado sobrenatural.
Segundo essa definição, logo se vê que o estado místico não é fenômeno estranho nem estrangeiro às condições normais do cristão, mas é a vida plena e intensa, que é desejável em si e para a qual chama Deus seus verdadeiros amigos.
A mística, segundo a idéia fundamental do sistema tomista, é o desenvolvimento supremo do organismo sobrenatural. Repete a miúdo o Aquinate que em nós existem duas vidas: a vida natural, cujo princípio é a alma, e a vida sobrenatural, cujo princípio é uma forma divina que nos eleva até a Deus. Não obstante seja Deus a causa da vida, não vivifica Ele por si mesmo o corpo humano, mas por meio da alma; por sua vez, Ele não vivifica a alma por meio da substância infinita, e sim por uma qualidade criada que serve de intermédio entre a alma e Deus e dá-nos a participação na vida propriamente divina3. Deriva da eficácia do amor divino a razão por que Deus nos infunde essa qualidade ou alma nova, que sobreexcede a todos os bens da natureza. Eis o axioma de Santo Tomás, de maravilhosa profundidade, que nos poderia agraciar com o móvel das mais suaves contemplações: “Amor Dei est infundens et creans bonitatem in rebus4.” O amor de Deus é criador e produz nos seres o bem que Ele neles ama – eis a diferença radical entre o amor de Deus e o amor do homem. Supõem nossos melhores afetos, enfermos e ineficazes que são, algum bem que os atraia: como o coração humano é indigente, para que se compraza numa criatura, é preciso que perceba nela algum encanto que o possa saciar, mesmo que só em parte. Somos atraídos em direção à beleza e à bondade, cuja origem nos é exterior. Em nós o objeto é que provoca o amor; em Deus o amor é que produz o objeto. Se Deus nos ama, Ele nos torna dignos dessa ternura e nos embeleza no seio da realidade. Como é próprio ao amor regozijar no semelhante, a graça por que nos agracia Deus nos torna, dalgum modo, iguais a Ele e nos deifica ao comunicar a participação similaríssima da natureza divina. “Necesse est quod solus Deus deificet, communicando consortium divinae naturae per quamdam similitudinis participationem5.” O que explica Santo Tomás com termos tão expressivos, já Santo Efraim da Síria, um Padre do séc. IV a quem Bento XV conferiu o título de Doutor Universal da Igreja, traduzia nesta bonita linguagem: “Loco deturpatae effigiei primi Adae, novam imprimit imaginem6, em substituição à figura manchada do primeiro Adão, imprimiu Deus em nós uma nova imagem.”
Ora, quem recebe a natureza de outro se torna filho engendrado seu, e é por isso que a graça é um segundo nascimento: Ex Deo nati sunt. Após o batismo, ao nos contemplar no berço, dizem pai e mãe com suave transporte: “Regozijemos, nasceu nosso filho!” A família celeste, a Trindade adorável, curvava-se com ainda mais ternura sobre esse berço e dizia: nasceu-nos um deus! Ex Deo nati sunt!, como sublinha Santo Tomás: “Haec generatio, quia est ex Deo, facit filios Dei; porque vem de Deus, essa geração nos faz filhos de Deus7.” Ecoa aqui o Doutor Angélico o apóstolo São Paulo: Genus summus Dei, somos da raça de Deus8. Eis aí nossa partícula de nobreza, que faculta a que anunciemos com alarde: Dei, de Deus! Amam os filhos do rei levar consigo o título esplendoroso de sua terra: de França, de Navarra, de Sabóia... Com a graça divina, somos mais que de terra, somos de Deus! Essa é a essência acrescentada que infunde Deus em nós e se torna como que a alma de nossa alma.
Mas, prosseguia Santo Tomás, não tem a Providência menos suavidade com o sobrenatural do que com a natureza; por conseguinte, deve ela nos comunicar novas faculdades e novas operações. Assim, o organismo divino compreende este conjunto harmonioso: na base a graça santificante; após, as virtudes teologais, que nos capacita a alcançar ao próprio Deus; após, as virtudes morais infusas e suas incontáveis ramificações que nos enlaçam e devem governar nas condições normais da vida humana; após, os dons do Espírito Santo, que são uns germens de heroísmo e nos submete à direção do celeste Paráclito9. Coroam-se os dons com atos excelentes que se chamam frutos do Espírito Santo, e por outras obras mais perfeitas que se chamam beatitudes evangélicas. Insiste o Santo Doutor nessa distinção: os frutos são atos virtuosos em que o justo experimenta deleite espiritual, já as beatitudes designam as obras perfeitas que aperfeiçoam os trabalhos da santidade10.
Não nos basta possuir os dons divinos, pois quiséramos possuir a pessoa mesma de Deus. Pois bem!, está feito: pela graça habita toda a Trindade em nós – “Per gratiam tota Trinitas inhabitat in nobis11.” Com efeito a graça consagra nossa alma com unção invisível e nela erige um templo agradável a Deus. Ora, que é a igreja senão onde Deus fez morada? Se verdadeiramente somos templo, é mister que a divindade esteja nele, substancialmente presente, como estão presentes o corpo e o sangue de Nosso Senhor no Tabernáculo do altar. Ademais, a graça estabelece entre Deus e nós, por meio da caridade, uma amizade perfeita que, para ser gozada com plenitude, requer a união real dos amigos. Se padece a amizade humana da humana enfermidade, já a divina tem a seu serviço um poder infinito, tanto que desejá-la já é gozá-la – Deus está na alma, a alma está em Deus! Não obstante ser a habitação de três pessoas, quem se apropria dela é o Espírito Santo, porque essa morada é dom e obra de amor, o que confere certa afinidade com o que é próprio à terceira pessoa.
Com a habitação, já adentramos na vida mística e podemos constatar a transcendência ou a elevação dela, como diz Bento XV, de elevatione vitae supernaturalis. Segundo Santo Tomás, essa vida é superior ao mais espantoso milagre, quer a ressurreição dos mortos quer a criação do céu e da terra, pois na ressurreição se restabelece tão-somente a vida do corpo, e na criação se produz apenas o ser natural, ao passo que na vida mística participamos da vida mesma de Deus por meio da graça santificante, ou das operações próprias a essa vida por meio de atos de conhecimento e amor. Daí aquela cogitação do Doutor Angélico: “Bonum gratiae unius majus est quam bonum naturae totius universi12.” – “Ó palavras d’oiro, exultava a tal propósito Cajetano, palavras d’oiro que se devem meditar noite e dia! Vale uma só graça mais que o universo inteiro. Considerai o desmedido da perda dos que não sabem apreciar tal tesouro13!”
Explicando em miúdos: a filiação adotiva diviniza o organismo, as virtudes infusas e os dons divinizam as faculdades, os frutos e as beatitudes divinizam as operações. Cheios do divino, temos o motor do Espírito Santo para pôr em exercício essas riquezas todas. Aqui se torna mui interessante a teoria do Doutor Angélico, pois uma vez que habita o Espírito Santo permanentemente em nós, e que os dons são energias vivas que exigem a exaltação da própria atividade – não é normal que o justo, que a pouco e pouco se purifica, sinta de quando em quando o toque do Paráclito e obedeça a Seu impulso? A docilidade é o efeito dos dons: “Dona autem Spiritua Sancti sumt quidam habitus quibus homo perficitur ad prompte obediendum Spiritui Sancto14.” Dentre esses dons, há um que dispõe o ser humano à contemplação, i. e., o dom da sabedoria infusa. Desce ela desde o alto, dá-nos o gosto das coisas divinas e por uma espécie de instinto nos impulsiona a apreciá-las, como se nos fossem elas conaturais. “De sursum descendens judicium rectum habet de eis secundum quamdam connaturalitatem ad ipsas.” Quão se presta à meditação a bela expressão secundum quamdam connaturalitatem,que como nos eleva ao nível das celestes realidades, nos põe ao mesmo patamar de Deus e nos apresenta a Sua intimidade! Apropria-se o Doutor do que disse o Dionísio e com ele conclui: “Est perfectus in divinis, non solum discens, sed et patiens divina15.” Eis o dom do Espírito Santo, que aperfeiçoa o homem nas coisas divinas, de modo a que ele as apreende e sobretudo as experimenta por si mesmo.
Pati divina é a fórmula conveniente ao estado místico. Na vida ascética simples, desempenha a alma um papel ativo, busca a virtude por si mesma, adquire tal perfeição por meio de ações pessoais secundadas pelo auxílio ordinário da graça; na vida mística propriamente dita, a alma é passiva, à medida que não logra com os próprios esforços tudo o que experimenta; por outro lado, seu ato é vital e meritório; como se trata do apogeu da vida espiritual, essa vida é verdadeiramente intensa e fecunda, plena de eternidade...
Um intenso amor a Deus acompanha o conhecimento superior do divino16, pois assim como as virtudes morais são entre si conexas na prudência, assim os dons do Espírito Santo são entre si conexos na caridade17. Quando entra em exercício o dom da caridade e eleva-se a inteligência à contemplação, excita-se a vontade numa caridade ardentíssima e vivíssima.
Eis os dois elementos que para Santo Tomás e sua escola caracterizam o estado místico: um conhecimento superior de Deus e das coisas de Deus – conhecimento eminente que não se pode dar a si o homem, embora não seja miraculoso; e um amor intenso que nossos esforços não provocam e que o mesmo Espírito Santo nos comunica num impulso onipotente. São esses os dois caracteres fundamentais, o mais é acessório18. Que tenha o homem alegrias e consolações ou provações, visões e êxtases, que experimente n’alma ou no corpo fenômenos miraculosos – é tudo secundário, pois é esse o sobrenatural modal, supernaturale quoad modum, e não o sobrenatural essencial, supernaturale quoad essentiam, que é a participação na vida de Deus pelos liames do conhecimento e do amor.
Para o Aquinate não requer necessariamente a contemplação, tanto quanto a profecia, idéias infusas. Distingue o Santo Doutor a impressão ou influência da luz divina, impressio vel influentia luminis, e a infusão de idéias novas. Pode penetrar a luz do alto até ao fundo dos dados adquiridos e esclarecê-los de tal modo que passem a representar o sobrenatural, sem que tenha Deus infundido outras idéias. Decerto o Senhor Soberano das inteligências é capaz de produzir diretamente no espírito as espécies inteligíveis, como fê-lo para a alma de Nosso Senhor e pensamos que também para a da Virgem Maria19, e a de certos santos favorecidos com visões intelectuais – mas essa não passa por lei fundamental. Aqui usa Deus de dois modos: ou imprime as idéias ou tão-só dispõe e arranja as representações existentes e as eleva por via de iluminação: “Quandoque quidem fit per solam luminis influentiam, quandoque autem etiam pe species de novo impressas vel aliter ordinatas20.”
Apartado o não-essencial, concluímos que o estado místico, segundo Santo Tomás, é aquele em que a alma patitur divina, i.e., passiva aos influxos do Motor Celeste, que é o Espírito Santo, experimenta as coisas divinas por meio do conhecimento e do amor que nunca poderia o homem lograr para si apenas com seus esforços, se não fossem comunicados sobrenaturalmente.
Daí que progredir na vida mística é progredir nesse conhecimento e nesse amor, que não devem ter medida. Insiste Santo Tomás nesse princípio excelente, que Bento XV e Pio XI não se esqueceram de assinalar. “Sustentava [Santo Tomás] como princípio indiscutível, diz a encíclica Studiorum Ducem, que deve a caridade aumentar, sempre em virtude do primeiro princípio: Amarás ao Senhor de todo teu coração... O todo e o perfeito são a mesma coisa. O fim do preceito é a caridade, diz o Apóstolo (I, Tim., 1). Ora, não é ao fim que se deve assinalar alguma medida, mas aos meios ordenados ao fim. Por isso, a perfeição da caridade incorre no preceito, que é um fim para o qual cada um, segundo sua condição, deve tender21.” Força será sempre repetir: avante, mais alto, mais alto! Não cumpri inteiramente meu dever, não cheguei sequer às lindes do preceito, não atingi ainda a medida do amor divino. Em frente, sempre em frente! Por quê? Porque segundo a expressão doutro mestre, que era também o doutor da caridade, São Bernardo, a medida do amor é não ter medida, é amar sem medida, sem termo e sem fim: “Modus diligendi (Deum) sine modo diligere22.”
Disso tudo se retira que a perfeição cristã é a perfeição da caridade – eis mais um axioma fundamental da mística de Santo Tomás. Para o ser, a perfeição é a consecução do fim, que é a suprema consumação. Ora, é a caridade que nos conduz ao fim e dá-nos a verdadeira beatitude23, unindo-nos a Deus; daí é força concluir que consiste a perfeição essencialmente nos preceitos, porque todos se remetem à caridade a Deus ou ao próximo. Não são os conselhos a própria perfeição, antes são os instrumentos da perfeição, pois afastam os obstáculos que entravam o exercício da caridade24. Eis a fonte do magnífico ensinamento do Santo Doutor acerca da economia dos votos de religião na Igreja.
É a apologia das ordens religiosas uma das características da espiritualidade de Santo Tomás25. Devem os três votos esmagar as três grandes concupiscências que governam a humanidade, pois todo ato que se distancia do reino abençoado de Nosso Senhor se inspira no desejo de riquezas, de prazeres ou de honras, melhor ainda, nos três a uma só vez. Deve a santa pobreza vencer a concupiscência dos olhos; a santa castidade, a concupiscência da carne; a santa obediência, o orgulho da vida. Eis as três renúncias universais que se opõem aos três obstáculos universais da caridade. Por isso é lícito afirmar que a vida religiosa bem praticada é a perfeição do amor na perfeição do sacrifício. O estado religioso, que se assenta nos votos, é obrigação perpétua de tender à perfeição da caridade e, por conseguinte, ao estado de perfeição, inseparável da Santa Igreja.
Pertence o sacerdócio à essência da Igreja, porque sem ele não existiria o triplo organismo que constitui o corpo da Igreja: o magistério visível para o ensino das verdades sobrenaturais, o ministério visível para a santificação das almas confiadas aos sacerdotes e o governo visível que pertence à sagrada hierarquia.
Não pertence o estado religioso simples à essência da Igreja, pois não compõe ele o organismo fundamental, mas à integridade Dela, pois Lhe faz resplender a auréola de perfeição e santidade. Sejamos desta ordem ou daquela particular congregação, estamos certos de que o estado religioso há de durar tanto quanto a Igreja e há de ajudar os crentes a dizer e cantar: Credo sanctam Ecclesiam.
Mas cumpre acrescentar com Santo Tomás que os bispos pertencem a um estado de perfeição superior ao dos religiosos. Assim como o professo deve tender à perfeição, assim deve o bispo exercer os atos perfeitos e praticar a caridade permanentemente, devotando-se ao rebanho até ao ponto de lhe dar o supremo testemunho do sangue, se preciso for: Bonus pastor ponit animam suam pro ovibus suis26.
Eis a razão por que devem os padres e os religiosos permanecer em comunhão com o bispo – como as cordas na lira, segundo a expressão pitoresca de São Inácio de Antioquia27 –, contemplá-lo como o ideal do rebanho, forma gregis28, e recorrer a ele como a príncipe que lhes tem de aperfeiçoar; possuidor da plenitude do sacerdócio, após o Cristo é ele a fonte principal de santidade na diocese.
Após a mística do Angélico Mestre considerar a perfeição na prática dos mandamentos e conselhos e no exercício da caridade – quer por via religiosa quer por ministério episcopal –, mostra-nos o coroamento dessa perfeição no heroísmo dos santos.
Cada vez que a Igreja alça um de seus filhos aos altares, exige ela que tenham eles praticado as virtudes em grau heróico; ao pagarem o tributo do heroísmo como pagaram os mártires o tributo do sangue, chegam os servos de Deus às honras da beatificação e da canonização. Dissemos que os justos trazem consigo, junto com os dons do Espírito Santo, os germens do heroísmo, que no justo estão como o som na lira e a flor na planta. É mister conhecer esta doutrina consoladora: quais sejam as misérias, somos capazes de vibrar ou florescer, conquanto conservemos os dons do Espírito Santo, aos quais remete Santo Tomás a virtude heróica ou divina: “Superexcellentiori virtuti quam Philosophus vocat heroicam vel divinam, quae secundum nos videtur pertinere ad dina Spiritus Sancti29.”
O conjunto doutrinal exposto já contém a resposta às perguntas: todos são chamados à perfeição? convém desejar as graças místicas? Como consiste a perfeição na caridade, e a caridade não tem limites, e o cristão deve ter caridade – deve o cristão aspirar à perfeição como fim para o qual cada um, segundo sua condição, deve tender, conforme nos disse o Doutor Angélico e após ele Pio XI. Logo, há um apelo à perfeição, ao menos distante e geral, que se faz a todos30.
Se alguém objeta que nem todos podem praticar os conselhos, responde Santo Tomás que deve o cristão ao menos possuir o espírito dos conselhos, ao ponto de não amar nada nem ninguém tanto ou mais que a Deus, e nem apesar Dele: “Ut nihil supra eum aut contra eum aut aequaliter ei diligatur31.”
Ao receber a graça santificante com o cortejo das virtudes e dos dons, gozam os justos a habitação do Espírito Santo; dispõe essa habitação – que comporta a amizade perfeita – à vida mística, que é o coroamento da vida espiritual.
Se fosse a vida mística miraculosa, se se acompanhasse ela necessariamente de êxtases ou outros fenômenos estranhos, se fizesse mister de idéias infusas – seria bem entender que haveria presunção ou temeridade no pedi-la; mas se consiste ela em essência, conforme explicamos junto com o Mestre, numa graça eminente de conhecimento e amor, quem hesitaria em desejá-la? Não é desejável conhecer mais e mais a Deus com esta intimidade que já é o começo da perfeição da pátria nesta terra, sobretudo se relembramos que a medida do amor divino é não ter medida?
Não aparece isolada a mística assim compreendida, fora do enquadramento normal do sobrenatural, mas inserida no sobrenatural de modo que a vida espiritual não se torna completa sem ela.
Ademais, podemos admirar na vida e nos escritos de Santo Tomás o fato de que não era ele tão-só doutor em mística, mas místico perfeito, em que encontramos as duas características essenciais analisadas acima: o conhecimento eminente recebido das alturas: “Dicere solebat, conta-nos seu biógrafo, quidquid sciret non tam Studio aut labore suo se peperisse quam divinatus traditum accepisse.”; resplandece a caridade ardente nas efusões ante o crucifixo que se digna a lhe falar, na terna devoção ao Sacratíssimo Sacramento e na união permanente com Deus, ao ponto de que estava sempre reptado em êxtase, como se já assistisse aos mistérios da eternidade: “Raptus videbatur interesse mysteriis”.
Aponta o soberano pontífice Pio XI, na encíclica Studiorum Ducem, como característica da santidade do Aquinate a união das duas sabedorias e aplica a ele o que o Doutor disse acerca da sabedoria sobrenatural, que dispõe o justo a experimentar em si mesmo o divino naquela forma passiva e todavia plena de vida, de que já falamos, patiens divina... Acrescenta o Papa que o santo, sobretudo na última quadra da vida, chegara à contemplação tão intensa que só em Deus pensava e só a união divina desejava. Ademais, é bastante passar olhos em sua biografia para se convencer que Tomás fundiu a mística tanto em si como na Suma Teológica.
Atualmente nos é fácil contemplar em conjunto esta síntese tomista que vimos de expor pela rama.
É a vida mística o coroamento do organismo sobrenatural. Comporta ela a graça santificante, as virtudes, os dons, os frutos, as beatitudes e a habitação do Espírito Santo e requer dois elementos essenciais: conhecimento superior e amor intenso, ambos os quais a alma jamais poderia se dar a si. Esse estado de passividade das faculdades é eminente, mas não miraculoso, e não exige necessariamente idéias infusas que, tais quais os êxtases e as revelações, não passam do sobrenatural quoad modum. O progresso na vida mística é o progresso na caridade, que deve sempre crescer em virtude do primeiro preceito; portanto, a perfeição cristã é a perfeição da caridade e consiste essencialmente nos preceitos, ao passo que os conselhos são os instrumentos da perfeição, que permitem o livre exercício do amor divino, donde se segue que os votos religiosos, opostos que são aos três grandes obstáculos, são necessários à realização do estado de perfeição e que o estado religioso pertence à integridade da Igreja, de modo que resplenda na Esposa a aureola da santidade; daí que o episcopado é o estado da perfeição adquirida, pois que deve ser o exercício permanente da caridade.
O apogeu desse estado é o heroísmo, cujos princípio e gérmen são os dons do Espírito Santo.
A conclusão evidente é a de que todos os cristãos são chamados, ao menos de modo geral e distante, à perfeição como a um termo supremo, em direção ao qual cada um, segundo sua condição, deve tender; de que ninguém está dispensado do espírito dos conselhos; e enfim, de que o estado místico é graça sumamente desejável, pois quem é amigo de Deus deve desejar tal conhecimento e amor excelente que começa desde cá embaixo o comércio com a pátria.
Dizem alguns que, se todas as graças vêm do Salvador, são em especial preciosas as que jorram das regiões mais divinas e amoráveis de Seu adorável coração. Decerto é graça compreender o ensinamento do Doutor Angélico e imitar sua prática: quae docuit intellectu conspicere et quae egit imitatione complere. Esperem os verdadeiros discípulos e os fiéis imitadores de Santo Tomás abrigar-se com ele nas regiões mais divinas e amoráveis do Sacratíssimo Coração.
Notas:
1.Encontrar-se-ão as oportunas informações na obra magistral do Pe. Garrigou-Lagrange, Perfection chretienne et Contemplation.
2.Act. Apost. Sed.. 1921, p. 528.
3.“Deus est vita animae per modum causae efficientis, sed anima est vita corporis per modum causae formalis.”
4.I, P., q. 20, a. 2.
5.Ia IIae, q. 112, a. 1.
6.S. Ephrem., Hym. de virginitate, edit. Rahman, p. 23.
7.S. Thom., Comment. In Evang., Joan., I, 13.
8.Act., XVII, 29.
9.Ia IIae, q. 68.
10.Ia IIae, q 69 e 70.
11.P., q. 43. A. 4, arg. 2. – Cf. De Verit., q. 27, a. 2, ad 3.
12.Ia IIae, q. 113, a. 9, ad 3.
13.Caietan, 1n h, 1.
14.Ia IIae, q. 56, a. 2.
15.IIa IIae, q. 45, a. 1, ad. 2, a. 2, c.
16.“Sapientia quae est donum causam quidem habet in voluntate, scilicet charitatem, se dessentiam habet in intelectum cujus actus est recte judicare.” Ibid.
17.“Sicut virtutes Morales connectuntur sibi invicem in prudentia, ita dona Spiritus Sancti connectuntur sibi invicem in charitate.”
18.Para um estudo completo, consultar o Sr. cônego Saurreau, L’État mystique, e Pe. Garrigou-Lagrange, Perfection chretienne et contemplation.
19.Cf. nosso livro De Verbo Incarnato, p. 234, ss. 452.
20.IIa IIae, q. 173, a. 2.
21.IIa IIae, q. 184, a. 3.
22.S. Bernardo, De diligendo Deo, c. I.
23.IIa IIae, q. 184, a. 1.
24.Ibid., a. 3.
25.Cf. Opusc., De Perfectione Vitae Spiritualis, e o opusc. Contra Impugnantes cultum Dei et Religionem; e IIa IIae, q. 184, SS.
26.IIa IIae, qq. 184 e 185.
27.S. Ignat. Antioch., Ephes., IV: P. G., V. 648.
28.I, Pet., V, 3.
29.Ia IIae, q. 159, a. 2, ad. 1.
30.Ver tudo isso em detalhes no Pe. Garrigou-Lagrange, op. cit.
31.IIa IIae, q. 184, a. 3, ad. 2.
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