Presumo que deva ter lido o último escrito em data de mons. Williamson (“Ansiedade Sedevacantista – II”). Como é que Mons. W. pode afirmar que o magistério ordinário e universal, para ser infalível, tem de se conformar ao que foi ensinado no tempo, ou seja estar conforme à Tradição? Infalibilidade é precisamente a garantia de conformidade com a Tradição. Infalibilidade é – por direito – causa de conformidade certa, e não consequência de uma conformidade de facto. É em razão do carisma da infalibilidade que os fiéis têm garantia e certeza de que o ensinamento que é atestado pela Igreja está conforme à divina Revelação (e, portanto, àquilo que sempre foi ensinado). Afirmar, como faz Mons. W., que o M.O.U. não é infalível a não ser com a condição de sua conformação à Tradição, é afirmar que o M.O.U. é infalível de facto, e não infalível de direito. Dito de outro modo, seguindo-se a Mons. W., o M.O.U. não é mais infalível do que você ou eu. Nós também, simples membros da Igreja discente [Igreja ensinada], somos infalíveis toda vez que nos conformamos à Tradição. Só que essa infalibilidade é uma pura e simples inerrância de facto: não é a infalibilidade de direito da Igreja docente [Igreja ensinante]; não é a infalibilidade de que nos falam o magistério, os doutores da Igreja e os teólogos. Dito ainda de outra maneira, para Mons. W., o M.O.U. não é infalível. Objetivamente, forçoso constatar (como quer que seja quanto a suas intenções, boas ou más) que Mons. W. rejeita a infalibilidade do magistério ordinário e universal, todavia claramente ensinada pelo Concílio Vaticano I. Tudo isso para não ter de concluir pelo “sedevacantismo”.
“Deve ser crido com fé divina e católica tudo o que está contido na Palavra de Deus escrita ou transmitida, e que a Igreja, quer por juízo solene, quer por seu magistério ordinário e universal, propõe a ser crido como divinamente revelado.” (Concílio Vaticano I, Constituição dogmática Dei Filius, 24 de abril de 1870.)
“Logo, é evidente, conforme tudo o que acaba de ser dito, que Jesus Cristo instituiu na Igreja um magistério vivo, autêntico e também perpétuo, que Ele investiu com Sua própria autoridade, revestiu do Espírito da verdade, confirmou com milagres, e quis e muito severamente mandou que os ensinamentos doutrinais desse magistério fossem recebidos como os Seus próprios. Logo, todas as vezes que a palavra desse magistério declara que esta ou aquela verdade faz parte do conjunto da doutrina divinamente revelada, cada um deve crer com certeza que isso é verdadeiro; pois, se isso pudesse de algum modo ser falso, seguir-se-ia, o que é evidentemente absurdo, que Deus mesmo seria o autor do erro dos homens.” (Papa Leão XIII, Carta Encíclica Satis Cognitum, 29 de junho de 1896.)
Para completar nossos dizeres, eis aqui citação do Padre Guérard des Lauriers, que já combatia o raciocínio falso hoje veiculado por Mons. W.:
« Uma afirmação que emane de pessoa física ou moral pode ser considerada: seja quanto ao conteúdo que é o objeto dela, seja quanto ao sujeito donde ela procede. Uma mesma afirmação tem, portanto, qualificativos que são de dois tipos: uns, “objetivos”, dizem respeito ao conteúdo; outros, “subjetivos”, referem-se à sua origem. Esses dois tipos de qualificações são, por natureza, irredutíveis um ao outro, embora as qualificações mesmas interfiram uma na outra.
No que se refere a determinada afirmação do Magistério da Igreja, a inerrância é uma qualificação “objetiva”, a infalibilidade é uma qualificação “subjetiva”.
A inerrância consiste em a afirmação considerada não conter erro. Essa afirmação está conforme ao Depósito revelado, ou então ela precisa, e por isso define, o Depósito revelado.
A infalibilidade consiste em o “sujeito” (Papa, Concílio, Bispos dispersos ou reunidos…) que faz essa afirmação fazê-la em condições tais que, pela assistência do Espírito Santo, ele não tem como errar. Essas condições SUBJETIVAS são coisa inteiramente distinta da inerrância. Elas são objeto de observação; podem ser constatadas, contestadas…
• A ordem verdadeira entre as duas noções: de inerrância e de infalibilidade.
A ordem verdadeira é a que deve realizar-se na realidade.
Ora, foi para os fiéis terem garantia da inerrância, que Deus instituiu, na Igreja e pela Igreja, o carisma e as condições da infalibilidade. Fazer a infalibilidade depender da inerrância seria, portanto, a priori e do ponto de vista da Sabedoria divina, tornar vã a infalibilidade. [...]
A ordem verdadeira, aquela instituída na Igreja por Deus mesmo, consiste pois em a infalibilidade estar ordenada à inerrância. A infalibilidade tem de acarretar que, para o bem dos fiéis, a inerrância se realize. De sorte que, a partir da infalibilidade, observável e observada, conclua-se, com a certeza mesma da Fé, que a afirmação proposta exprime a verdade. A inerrância se apresenta, pois, ao olhar da Fé vivente, como consequência da infalibilidade. Logo, é por natureza que, na realidade, a inerrância não pode ser condição da infalibilidade. [...]
Quando dois fenômenos são tais que A acarreta B, há evidentemente entre A e B duas ordenações opostas entre si. A primeira diz respeito à realidade, e à observação que dela se pode fazer, a saber: B é consequência de A. A segunda ordenação concerne à análise reflexiva, ou seja, aquela que pode ser feita a posteriori. Observa-se B, e coloca-se a si próprio a questão de saber se A existe. Então, deste novo ponto de vista, que é o da epistemologia, B é condição de A. A ordenação real, que é uma “consequência”, é lida, reflexivamente, como sendo uma “condição”. E, de maneira mais precisa, é somente se B éconsequência NECESSÁRIA de A, que se pode concluir: a existência de B é condição da existência de A.
O sofisma consiste, no caso, em passar subrepticiamente da ordem real à ordem reflexa, da Fé vivente à epistemologia da Fé.
A infalibilidade (A) acarreta a inerrância (B). Aí está a ordem real que corresponde à Fé vivenciada; a inerrância é consequência da infalibilidade (1). E eis a seguir a ordem reflexa que, ao menos aparentemente, corresponde à epistemologia da Fé: a inerrância é condição da infalibilidade (2). Ora, é neste segundo ponto de vista que se coloca o autor para escrever, e antes de tudo para pensar, aquilo que nós chamamos de o “enunciado do sofisma”. Se efetivamente afirmar-se, sem contudo o explicitar, que “a inerrância é condição da infalibilidade” (2), aí então é bem exato que “os ensinamentos do Vaticano II não são da alçada do Magistério infalível da Igreja, porque esses ensinamentos [contradizem a verdade]”.
O “porque”, que nós grifamos, supõe expressamente a cláusula(2), que nós repetimos, a saber: que a inerrância é condição da infalibilidade. Ora, isso não é verdadeiro de modo absoluto. Para que B, que na realidade é uma consequência de A, seja realmenteuma condição de A, é preciso que B seja consequência NECESSÁRIA de A. A fim de que a inerrância de uma afirmação fosse condição para essa afirmação “ser da alçada do Magistério infalível”, seria preciso que “ser da alçada do Magistério infalível” acarretasse NECESSARIAMENTE essa inerrância. Ora, não é o caso. Uma proposição pode “ser da alçada do Magistério infalível” em razão das condições de promulgação e, não obstante, ser falsa, se precisamente, de fato, esse Magistério for “pseudo”. »
(Rev. Pe. Michel-Louis Guérard des Lauriers, O.P. [antigo professor na Universidade Pontifícia do Latrão e nas faculdades do Saulchoir], “Sur la notion d’infaillibilité” [Sobre a noção de infalibilidade], in: Cahiers de Cassiciacum, n.º 2, novembro de 1979, pp. 88-91.)
De resto, e para retornar ao texto de Mons. W., o argumento tirado de Libério não prova nada. Pela boa razão de que as fontes que Mons. W. escolheu seguir são de autenticidade no mínimo duvidosa. O bispo devia ampliar o campo do seu revisionismo histórico… E, quanto a operar habitualmente uma escolha dentre as coisas que nos vêm dos pontífices pós-conciliares, tal atitude não é contemplável (por um católico) a não ser que ditos pontífices não sejam papas na realidade. Do contrário, a gente se faz superior do Papa. Bem fielmente, Vicente Chabrol
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Caro XYZ, Malgrado todo o respeito que devemos a Mons. Williamson, em razão de seu episcopado, e malgrado toda a estima que devemos ter para com ele, forçoso constatar uma vez mais que o nosso simpático prelado se extravia. Mons. W. dixit:
“A Santa Madre Igreja ensina que o Depósito da Fé, ou Revelação pública, foi completado na morte do último Apóstolo vivo, ou seja, em torno de 105 d.C. Desde então nenhuma outra verdade foi acrescentada, ou poderia ter sido acrescentada, a esse Depósito, ou corpo de verdades reveladas. Portanto, nenhuma definição ‘extraordinária’ pode acrescentar um iota de verdade a esse Depósito. Apenas se acrescenta, em benefício dos crentes, certeza a alguma verdade já pertencente ao Depósito, mas cuja pertença não estava suficientemente clara de antemão. Em uma ordem quádrupla vem em primeiro lugar uma REALIDADE objetiva, independente de qualquer mente humana, tal como o fato histórico da Mãe de Deus concebida sem o pecado original. Em segundo lugar vem a VERDADE em uma mente que se conforma à realidade. Só em terceiro lugar vem uma DEFINIÇÃO infalível, quando um Papa combina todas as quatro condições para definir essa verdade. E em quarto lugar, surge dessa definição a CERTEZA dessa verdade para os crentes. Assim, enquanto a realidade gera a verdade, uma Definição simplesmente cria certeza em relação àquela verdade.”
Certo, mas vejamos a continuação…
“Mas a realidade e sua verdade já pertenciam ao Magistério Ordinário, pois não resta dúvida de que um Papa jamais definiu infalivelmente uma verdade fora do Depósito da Fé. Assim, o Magistério Ordinário é para o Magistério Extraordinário o que o cachorro é para o rabo, e não o que o rabo é para o cachorro! O problema é que a Definição de 1870 deu tal prestígio ao Magistério Extraordinário, que o Magistério Ordinário, em comparação, começou a esmorecer, a ponto de os católicos, mesmo os teólogos, se verem impelidos a fabricar para ele uma infalibilidade como aquela do Magistério Extraordinário. Mas isso é tolice. O Magistério Extraordinário pressupõe o Magistério Ordinário, e existe apenas para dar certeza (4) a uma verdade (2) já ensinada pelo Magistério Ordinário.” [N. do T. – Comentário Eleison 343: “Infalibilidade da Igreja I”, de 8 fev. 2014.]
Por mais que isto desagrade a mons. Williamson, não são apenas “os teólogos” que “fabricaram” (sic) uma infalibilidade para o magistério ordinário e universal, é a Igreja mesma, por voz do Concílio Vaticano I.Bis repetita placent: “Deve ser crido com fé divina e católica tudo aquilo que está contido na Palavra de Deus escrita ou transmitida, e que a Igreja, quer por juízo solene, quer por seu magistério ordinário e universal, propõe a ser crido como divinamente revelado.” (Concílio Vaticano I, Constituição dogmática Dei Filius, 24 de abril de 1870.) Dito de outro modo, não são apenas “a realidade e a verdade” que pertencem ao magistério ordinário e universal, é igualmente a “certeza”. Temos certeza de que determinada proposição é divinamente revelada e deve, por consequência, ser crida com fé divina, em razão de essa proposição ser atestada “como divinamente revelada”, “quer por um juízo solene, quer por seu magistério ordinário e universal”. Negar, à maneira de mons. Williamson, que o magistério ordinário e universal da Igreja dê, em paridade com os juízos solenes (do Papa ou do Concílio), a certeza de uma verdade revelada, equivale clarissimamente a opor-se não somente ao ensinamento dos teólogos(*), mas também e sobretudo ao do Concílio Vaticano I – o que é pura e simplesmente inaceitável. Ajuntemos que, em razão da Constituição dogmática Dei Filius, temos a certeza de que mons. Williamson erra (e erra mesmo gravemente).
[(*) É já problemático opor-se ao ensinamento dos teólogos, havendo unanimidade moral entre eles. Só por essa razão, a opinião de Mons. Williamson já merece a censura seguinte: “temerária e falsa” (cf. Salaverri, Sacræ Theologiæ Summa, t. I, 5.ª ed., 1962, p. 799).]
Retomemos outra vez o ensinamento do Papa Leão XIII a este respeito:
“Os Padres do Concílio do Vaticano nada editaram de novo, portanto, mas não fizeram nada além de se conformarem à instituição divina, à antiga e constante doutrina da Igreja, e à natureza mesma da fé, quando eles formularam este decreto: ‘Deve-se crer com fé divina e católica todas as verdades que estão contidas na Palavra de Deus escrita ou transmitida pela tradição, e que a Igreja, quer com um juízo solene, quer com o seu magistério ordinário e universal, propõe como divinamente reveladas.’” (Id.)
Logo, “todas as vezes [...] que a palavra desse magistério declara que esta ou aquela verdade faz parte do conjunto da doutrina divinamente revelada”, “quer por meio de um juízo solene, quer por seu magistério ordinário e universal”, “cada um deve crer com certeza que isso é verdadeiro”, e isso porque tanto para os juízos solenes como para o magistério ordinário e universal, nós temos a certeza, a garantia divina (em razão da infalibilidade): “se isso pudesse de algum modo ser falso, seguir-se-ia, o que é evidentemente absurdo, que Deus mesmo seria autor do erro dos homens.”
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