S.E.R. Dom Donald Sanborn
Enormemente deplorado entre os que resistiram às mudanças do Vaticano II é o fato de eles próprios não conseguirem se dar bem uns com os outros. Pois embora concordem sobre a necessidade fundamental de resistir à reforma do Vaticano II, conseguem, não obstante, despedaçar uns aos outros sobre outras questões. De fato, os “tradicionalistas” gastam a maior parte de suas energias combatendo uns aos outros, e não os modernistas. Esse estado de coisas certamente deve deixar o diabo contente, já que essa luta intestina enfraquece imensuravelmente a resistência ao modernismo.
Na raiz de quase todas as disputas está a questão da Igreja. Onde está a Igreja? A Igreja Católica deve ser identificada com a Igreja Conciliar? (*) Essa questão é espinhosa, pois, se você responder afirmativamente, isto é, que a Igreja Conciliar é a Igreja Católica, então a resistência a ela torna-se cismática e possivelmente herética. Por outro lado, se a resposta for negativa, surge então o problema da Igreja Católica sem uma hierarquia visível.
Daí que a grande linha divisória – como a linha traçada no deserto – entre os diversos grupos de “tradicionalistas” é a questão da Igreja. E, como o Papa é o cabeça visível da Igreja, essa controvérsia se expressa naturalmente nos termos do “papado” de João Paulo II. A razão pela qual tantos “tradicionalistas” veem-no como papa, de fato insistem que ele é o papa, não é porque estão enamorados da teologia dele. É antes porque veem como necessidade teológica a identificação da Igreja Conciliar e da Igreja Católica Romana. Eles veem isso como necessidade por causa da indefectibilidade da Igreja, isto é, o fato de que ela deve durar até o fim do tempo com hierarquia visível. Disso concluem eles que, herege ou não, João Paulo II e o colégio dos bispos Novus Ordo são a hierarquia da Igreja Católica, já que foram devidamente eleitos e nomeados, e sucederam às sés de seus predecessores católicos. Negue isso, dizem eles, e você nega a Igreja. Repudie essa hierarquia, dizem eles, e você é cismático, já que está se separando da hierarquia católica.
No outro grupo, contudo, a indefectibilidade dita a própria conclusão oposta. O Vaticano II é herético. João Paulo II é herege. Os bispos são hereges. Os novos sacramentos são acatólicos, e na maioria dos casos são ou de validade duvidosa ou completamente inválidos. Em nome da indefectibilidade, portanto, esses “tradicionalistas” declaram que por necessidade teológica a Igreja Conciliar não é a Igreja Católica, e consequentemente a hierarquia conciliar não é a hierarquia católica.
Esse desacordo encarniçado, que ironicamente advém do mesmo princípio da indefectibilidade, é resultado do fato de que esses papas e bispos que sucederam, pelos meios normais de sucessão, aos lugares dos papas e bispos católicos pré-conciliares, produziram, por meio do Vaticano II e suas subsequentes reformas, uma religião que não é identificável com a Fé Católica de dois mil anos. Por isso, a questão é: onde está a indefectibilidade? Está com a Fé? Ou está com a sucessão visível dos papas e bispos que remonta até o tempo dos Apóstolos?
A resposta é que a indefectibilidade da Igreja Católica está com ambas, e negar uma ou outra seria “grande e pernicioso erro”, para usar as palavras de Leão XIII:
“Se olharmos nela o fim último que ela demanda, e as causas imediatas pelas quais ela produz a santidade nas almas, certamente a Igreja é espiritual; mas, se considerarmos os membros de que ela se compõe e os próprios meios pelos quais os dons espirituais chegam até nós, a Igreja é exterior e necessariamente visível.
[...] Por todas essas razões é que a Igreja, nas santas Letras, tantas vezes é chamada um corpo, e também o corpo de Cristo (1 Cor 12, 27): sois o corpo de Cristo. Por ser um corpo, a Igreja é visível aos olhos; por ser o corpo de Cristo, é um corpo vivo, ativo, cheio de seiva, sustentado que é e animado por Jesus Cristo, que o penetra da sua virtude mais ou menos como o tronco da vinha alimenta e fertiliza os ramos que lhes estão unidos. Nos seres animados, o princípio vital é invisível e oculto no mais profundo do ser, mas se acusa e se manifesta pelo movimento e pela ação dos membros: assim o princípio de vida sobrenatural que anima a Igreja aparece a todos os olhos pelos atos que ela produz.
Segue-se daí estarem em grande e pernicioso erro aqueles que, plasmando a Igreja ao sabor da sua fantasia, a imaginam como oculta e de modo algum visível; e aqueles também que a encaram como uma instituição humana, munida de organização, de uma disciplina, de ritos exteriores, mas sem nenhuma comunicação permanente dos dons da graça divina, sem nada que, por uma manifestação cotidiana e evidente, ateste a vida sobrenatural haurida em Deus. Ambas essas concepções são tão incompatíveis com a Igreja de Jesus Cristo, quanto só o corpo ou só a alma é incapaz de constituir o homem.”
(Papa LEÃO XIII, Carta Encíclica Satis Cognitum Sobre a Unidade da Igreja, 29 de junho de 1896, trad. br. em: Documentos Pontifícios – 32, Petrópolis: Vozes, 1951, 47 pp., cit. nas pp. 5-6).
I. Recapitulação: A Doutrina da Indefectibilidade da Igreja
A fundamental noção da indefectibilidade é que a Igreja deve durar até o fim do tempo com a natureza e qualidade essenciais com que Cristo dotou-a na fundação dela. Noutras palavras, é impossível que a Igreja Católica sofra mudança substancial. Ela pode, e de fato deve, passar por muitas mudanças acidentais, especialmente em suas leis, para reagir prudentemente às diferentes circunstâncias nas diversas épocas, mas essas mudanças acidentais não devem tocar nunca a substância da fundação de Cristo. Essa indefectibilidade é sinal certo da origem e caráter sobrenaturais da Igreja, pois nenhuma organização humana poderia atravessar dois mil anos e permanecer essencialmente a mesma. A sua indefectibilidade é sinal ainda maior de sua origem e assistência divinas quando se considera quantas vezes e com que força os inimigos da Igreja tentaram fazê-la mudar essencialmente.
Qual é essa natureza essencial? Quais são essas qualidades essenciais?
A indefectibilidade da Igreja Católica está, em primeiro lugar, na doutrina. A fé objetivamente considerada, i.e. o depósito da sagrada doutrina revelada, é a base da estrutura inteira da Igreja Católica. Similarmente, a fé subjetivamente considerada, i.e. a virtude da fé, é a base da inteira vida sobrenatural da alma. Daí que a maneira mais importante em que a Igreja Católica não tem como falhar é no ensinamento da verdadeira doutrina. Como Deus é imutável, a doutrina da Igreja é, por isso, para sempre imutável, e é testemunho da assistência de Cristo à Igreja que o ensinamento dela permaneceu o mesmo e consistente ao longo dos dois mil anos de existência dela. Uma única contradição ou inconsistência do magistério ordinário ou extraordinário dela seria suficiente para provar que a assistência de Deus não estava com ela.
Mas a indefectibilidade dela não está limitada à doutrina, mas antes se estende a todas aquelas coisas de que ela foi dotada pelo Divino Fundador. Sabemos que Cristo dotou a Igreja de estrutura e também de poder. Ele estabeleceu a Igreja como uma monarquia, pondo todo o poder nas mãos de São Pedro. Ele também instituiu bispos que, em união com São Pedro e a ele sujeitos, governariam a Igreja em diversas localidades. Essa estrutura Ele dotou do poder de ensinar, de governar e de santificar toda a raça humana. Esse poder deriva da missão apostólica, i.e. o ato de ser enviado por Cristo para o propósito de salvar almas. Portanto, essa estrutura e essa missão às almas do gênero humano devem durar inalteradas ao longo de todas as épocas. Em acréscimo, a Igreja está dotada do poder de ordens, pelo qual os seres humanos são tornados instrumentos sobrenaturais do poder divino para operar a santificação sobrenatural dos homens através dos sacramentos, em particular o Santo Sacramento da Eucaristia.
Portanto, a Igreja defeccionaria se:
(a) ela viesse a mudar sua doutrina;
(b) ela viesse a alterar ou abandonar sua estrutura monárquica e hierárquica;
(c) ela viesse a perder, mudar substancialmente ou abandonar a missão apostólica de ensinar, governar e santificar as almas;
(d) ela viesse a perder, mudar substancialmente ou abandonar o poder de ordens.
O ensinamento da indefectibilidade é confirmado por dois documentos eclesiásticos. O primeiro é a Bula Auctorem Fidei do Papa Pio VI (28 de agosto de 1794), que condena como herética a seguinte proposição do Concílio de Pistoia:
“Nestes últimos séculos, houve um obscurecimento geral de verdades religiosas importantíssimas que são a base da fé e da doutrina moral de Jesus Cristo.”
O segundo é do Papa Leão XIII em sua Encíclica Satis Cognitum. Tendo primeiro explicado em que a Igreja é espiritual e em que ela é visível, e sublinhando o fato de que essas duas coisas são absolutamente necessárias para a verdadeira Igreja, análogas à necessidade da união de corpo e alma para o ser humano, ele então diz:“Mas, como a Igreja é tal pela vontade e por ordem de Deus, taldeve permanecer, sem nenhuma interrupção, até o fim dos tempos” (Papa LEÃO XIII, Carta Encíclica Satis Cognitum Sobre a Unidade da Igreja, 29 de junho de 1896, trad. br. em: Documentos Pontifícios – 32, Petrópolis: Vozes, 1951, 47 pp., cit. na p. 7)
Há, ademais, muitos textos dos Padres em apoio à indefectibilidade, e é o ensinamento universal dos teólogos.
II. O Problema: o Estado da Igreja
Como conciliar o estado presente da Igreja Católica com a indefectibilidade? Esse problema, com suas diversas respostas, está na raiz da maior parte da controvérsia entre os que permaneceram fiéis à tradição. O problema põe-se do modo mais direto assim: Onde está a Igreja? Pois ninguém pode errar seguindo a Igreja Católica, ao menos em seus papéis essenciais de ensinar a doutrina, de conduzir as almas para o céu por suas leis gerais, e de santificar as almas por meio de sacramentos válidos. Para salvar a própria alma, portanto, basta simplesmente saber onde a Igreja está. Podemos e devemos, em toda a boa consciência, seguir o ensinamento e as prescrições da Igreja para salvar nossas próprias almas, e pôr-se contra estes é ser herege, cismático ou ao menos gravemente desobediente. Em qualquer desses casos, a pessoa não poderia salvar sua alma.
Essa questão particular é altamente problemática pelo fato de que, não importa qual seja a sua resposta concernente à Igreja Novus Ordo, i.e. sim ou não se ela é a Igreja Católica, você acaba tendo alguns problemas profundos com respeito à indefectibilidade. Se você responder que a Novus Ordo é católica, você tem então o problema imenso da defecção do ensinamento, defecção da legislação geral da Igreja e defecção dos sacramentos. Também reduz a absurdo – para não mencionar o pecado de desobediência e cisma – a resistência sistemática ao Novus Ordo que tem sido mantida pelos “tradicionalistas”. Se, por outro lado, você responder que a Novus Ordonão é católica, aí você tem o problema de encontrar a Igreja visível, já que pareceria que a hierarquia católica inteira defeccionou aderindo a essa nova seita acatólica. Então, a resposta “sim” leva à defecção das qualidades espirituais essenciais da Igreja, ao passo que a resposta “não” parece levar à defecção das qualidades materiais essenciais da Igreja. Dito de outro modo, a resposta “sim” parece levar à defecção da missão da Igreja, enquanto a resposta “não” parece levar à defecção da estrutura da Igreja. No entanto, sabemos pelo Papa Leão XIII que ambas são absolutamente necessárias para a Igreja, como corpo e alma para a natureza humana, e que ambas têm de perdurar até o fim do tempo, para que a Igreja faça jus à sua indefectibilidade.
Vê-se então facilmente as causas da controvérsia acirrada, já que cada lado percebe a si próprio como sendo um verdadeiro salvador da Igreja: de um lado, aqueles que dizem sim à catolicidade do Novus Ordo enxergam a si próprios como mantendo a estrutura visível da Igreja contra os que a abandonariam, ao passo que o outro lado, osnãos, enxergam a si próprios como mantendo a pureza espiritual e doutrinal da Igreja contra aqueles que a manchariam pela associação com a Novus Ordo. E, por se tratar aqui de uma batalha pela própria Igreja, os “tradicionalistas” lutam muito mais acirradamente uns contra os outros do que contra a Novus Ordo.
III. As Três Soluções
Há essencialmente três solução propostas para lidar com essa questão: (a) a solução Ecclesia Dei, (b) a solução lefebvrista, e (c) a solução sedevacantista. Seria de pensar que, por haver somente dois princípios em jogo aqui, i.e. a integridade material da Igreja de um lado, a espiritual de outro, haveria apenas duas soluções. Mas, como veremos mais tarde, a solução lefebvrista é um híbrido de ambas, combinando numa salade impossible virtualmente todos os elementos dos dois outros sistemas. Examinemos cada um desses sistemas em detalhe.
A. A Solução Ecclesia Dei
Em 5 de maio de 1988, o Arcebispo Lefebvre assinou o tão comentadoProtocolo, no qual ele entrou num acordo preliminar com a hierarquiaNovus Ordo. Esse acordo demandava o reconhecimento da Fraternidade São Pio X como instituto de direito pontifício em troca de certas garantias por parte da Fraternidade, entre as quais a de que eles aceitavam o Vaticano II, o Novo Código de Direito Canônico, a validade de todos os novos ritos sacramentais e a legitimidade de Wojtyla. Esse acordo foi subsequentemente (o dia seguinte) rompido pelo Arcebispo Lefebvre pelas razões de que ele não gostou dos designados à “comissão da tradição”, e porque ele não gostou da data da consagração marcada por Wojtyla. (**) O Arcebispo Lefebvre sagrou então quatro bispos sem mandato de Wojtyla, e foi imediatamente excomungado num documento emitido por Wojtyla intitulado, ironia das ironias, Ecclesia Dei. Na esteira disso, um número significativo de padres e seminaristas do grupo lefebvrista rompeu e aceitou os termos do Vaticano contidos originalmente no Protocolo. A Fraternidade de São Pedro foi assim estabelecida, e a ComissãoEcclesia Dei foi erigida para vigiá-la, donde deriva o nome desta solução.
Aqueles que aderem a essa solução aceitam a hierarquia Novus Ordocomo sendo a hierarquia católica e aceitam o Vaticano II e todas as reformas oficiais feitas em consequência do Vaticano II. Foi-lhes concedido o direito, pelos modernistas, de reter a Missa de João XXIII, e de operar um seminário e instituto conforme linhas mais ou menos pré-Vaticano II. A solução deles, então, é aderir à tradição sob os auspícios da, e em obediência à, hierarquia Novus Ordo. A adesão deles à tradição, portanto, não é vista como defesa da Fé contra os modernistas, mas antes como preferência, algo como a Alta Igreja na comunhão anglicana. Não deve surpreender, então, que eles convidem conhecidos potentados Novus Ordo (como Ratzinger Terno-e-gravata-no-Vaticano-II) para dizer a Missa para eles.
B. A Solução Lefebvrista
A solução lefebvrista, formulada com simplicidade, é esta: reconhecer a autoridade de Wojtyla, mas não o seguir nos erros dele. Embora seja muito difícil conseguir que os lefebvristas assumam uma declaração de posição permanente e algo coerente, a atividade e declarações deles tomadas coletivamente produzem a descrição acima. O Arcebispo Lefebvre insistia que todos dentro da Fraternidade São Pio X considerassem Wojtyla como papa, e expurgou da Fraternidade todos que publicamente sustentavam que ele não o era. Ele sempre lidou com os modernistas romanos como se tivessem autoridade, buscando aprovação deles para a sua Fraternidade. Ele enxergava como a solução para a crise modernista um movimento tradicional popular que, em todas as dioceses do mundo, clamasse por padres tradicionais, e rejeitasse os modernistas. Ele calculava que a solução sedevacantista arruinaria um tal movimento popular, pois ele pensava que dizer que Wojtyla não era o papa era demais para a maioria das pessoas suportar.
Ao óbvio problema de obediência posto pela posição dele, o Arcebispo Lefebvre respondia que nenhuma autoridade, inclusive a do papa, tem o direito de nos mandar fazer algo errado. Mas o Novus Ordo é errado.Ergo… Esse raciocínio levou à necessidade de peneirar o Novus Ordo em busca de catolicismo. Como o homem peneirando lama à procura dos grãos de ouro nela escondidos, assim o católico teria de peneirar o magistério e decretos de Montini e Wojtyla à procura de grãos da fé verdadeira. O que quer que se mostrasse tradicional seria aceito, e o que quer modernista, rejeitado. E, como o Arcebispo Lefebvre era o mais proeminente dos aderentes à tradição, a palavra dele tornou-se a norma próxima de crença e obediência para centenas de sacerdotes e dezenas de milhares de católicos. Assim, a suposta autoridade de Wojtyla não era suficiente para mover as mentes e vontades dos fiéis católicos para a tradição, mas tinha de ser ampliada pela aprovação do Arcebispo Lefebvre. Esse papel de triagem que a Fraternidade adquiriu foi ciosamente guardado, e quem quer que ousasse ignorá-lo era considerado subversivo e acabava sendo expulso.
À questão mui candente de se o Novus Ordo é católico, o Arcebispo Lefebvre e seus seguidores deram respostas que agradam a ambos os lados. É muito difícil dizer o que eles pensam sobre isso. Durante o “verão quente” de 1976, o Arcebispo Lefebvre referiu-se à Missa Nova como “missa bastarda” e ao Vaticano II como um concílio cismático, e à Igreja Conciliar (*) como uma igreja cismática. Por outro lado, tomaram eles o cuidado de dizer que a Missa Nova não é intrinsecamente má, e de que todos os novos sacramentos são certamente válidos. Essa linha de raciocínio indica que eles enxergam uma necessidade de que oNovus Ordo seja considerado intrinsecamente bom e válido, já que eles entendem que é impossível que a Igreja Católica produza ritos maus ou inválidos. Essa insistência de que os novos ritos sejam bons e válidos mostra que eles realmente veem a Igreja Novus Ordo como a Igreja Católica.
([1] Notei, todavia, que essa insistência na intrínseca bondade e validade dos ritos novos não sucedeu antes de o Arcebispo Lefebvre começar a entrar em negociações com Wojtyla para o eventual reconhecimento da Fraternidade São Pio X. Nos primeiros anos de Ecône, o Arcebispo Lefebvre falava muito abertamente sobre a provável invalidez do novo rito de ordenação e sagração episcopal,mesmo em latim. Foi apenas mais tarde (1979) que toda essa questão tornou-se uma cause célèbre, juntamente com a questão do papa. Antes de 1979, era-se bastante livre para expressar a opinião, em Ecône, de que Paulo VI não era o papa. O Arcebispo Lefebvre até pôs em dúvida o “papado” de Paulo VI numa entrevista para a televisão francesa no verão de 1976. Alguns anos mais tarde, em Oyster Bay, ele disse: “Eu não digo que o Papa não é papa, mas também não digo que não se possa dizer que o Papa não é papa.” Porém, a atitude dele mudou rapidamente, provavelmente em resposta à cenoura estendida pelos modernistas romanos de que o grupo dele seria aprovado. Nós vimos a derrocada de todo esse projeto em 1988.)
Apesar disso, eles fazem declarações que são completamente incompatíveis com a posição de que a Igreja Conciliar é a Igreja Católica. Por exemplo, por ocasião das sagrações de 1988, emitiram eles a seguinte declaração, assinada pelo Pe. Schmidberger e por muitos superiores do grupo deles: “Nós nunca quisemos pertencer a esse sistema que chama a si próprio de Igreja Conciliar e se identifica a si próprio com o Novus Ordo Missae … Os fiéis realmente têm direito estrito de saber que os padres que a eles ministram não estão em comunhão com uma Igreja falsificada…” Mas não é Wojtyla o cabeça dessa “igreja” falsificada que se identifica a si própria com o Novus Ordo Missae? Devemos concluir que eles não estão em comunhão com Wojtyla? Se não estão, por que então insistem que ele é o papa? Como se podenão estar em comunhão com o papa?
Eles sentem que salvam a indefectibilidade pelo reconhecimento da hierarquia Novus Ordo como sendo a hierarquia católica, e pelo reconhecimento do Vaticano II e de suas reformas como apenas extrinsecamente más, i.e. sujeitas a má interpretação ou em alguma medida enganadoras. Um deles disse recentemente numa carta a benfeitores: “É por isso que nós insistimos em reconhecer o Papado e a hierarquia malgrado o fato de que nós não nos sentimos de modo algum unidos a eles”. Essa sentença descreve otimamente a posição deles, que combina duas coisas que são intrinsecamente incompatíveis, i.e., reconhecer que Wojtyla é papa, mas não estar unido a ele na mesma igreja. ([2] Para acrescentar mistério a mistério, eles insistem que todos os sacerdotes do grupo deles rezem a Missa una cum Wojtyla.) O leitor precisa entender que os fazeres e dizeres dos lefebvristas ao longo dos anos não seguiram, para dizer o mínimo, uma linha coerente, e que é, portanto, difícil determinar exatamente o que eles pensam. Pela aplicação de uma certa interpretação, todavia, penso que é justo dizer que eles consideram que Wojtyla é o cabeça de duas igrejas, uma delas a Igreja Católica, a outra a Igreja Conciliar. Como cabeça da Igreja Católica eles são leais a ele; como cabeça da Igreja Conciliar eles se opõem a ele. Era, em última instância, o Arcebispo Lefebvre quem decidia o que era católico nos decretos de Wojtyla e o que era conciliar, e portanto o que devia ser aceito e o que devia ser rejeitado. Agora que ele faleceu, não parece haver nenhuma clara figura emergente que será capaz de subordinar as lealdades dos seguidores deles do modo como fez o Arcebispo, lealdade esta que éessencial à unidade deles.
C. A Solução Sedevacantista
O princípio fundamental desta Solução é que é impossível identificarNovus Ordo e Igreja Católica. É impossível, dizem eles, por causa da indefectibilidade da Igreja em questões de fé, moral, culto e disciplina. Se se admite que as mudanças Novus Ordo nessas questões procederam da Igreja Católica, então é preciso admitir que a Igreja Católica defeccionou. Pois essas mudanças substancialmente contradizem a fé, a moral, o culto e a disciplina da Igreja Católica. Mas é impossível que a Igreja Católica defeccione. Logo, é impossível que essas mudanças procedam da Igreja Católica. Portanto, é impossível que aqueles que aprovaram essas mudanças (viz. Montini, Luciani e Wojtyla) desfrutem de jurisdição da Igreja Católica, a missão dada por Cristo para governar os fiéis. Se eles desfrutassem dessa jurisdição, eles teriam desfrutado da infalibilidade nessas questões, dado que é impossível a essa autoridade ensinar algo falso ou prescrever algo pecaminoso para a Igreja. O sedevacantista, portanto, insiste que não se pode considerar a hierarquia modernista como hierarquia católica, já que de outro modo se estaria associando a heresia, o sacrilégio, sacramentos inválidos, o erro e leis pecaminosas com a Imaculada Esposa de Cristo, tornando absurdas as palavras de Cristo: “quem vos escuta, a Mim escuta”. Numa palavra, a posição sedevacantista é quea hierarquia modernista não pode possuir a autoridade católica que eles alegam possuir, pois a autoridade católica é preservada pela assistência do Espírito Santo contra fazer o que esses modernistas fizeram.
A objeção óbvia a essa posição é que a defecção em massa da hierarquia cria um estado de vacância universal ou quase universal das sés, e assim destrói a visibilidade da Igreja. O sedevacantista responde que a vacância da sé papal ou episcopal não é incompatível com a visibilidade da Igreja, dado que a Igreja permanece visível durante as vacâncias que ocorreram na morte de todo titular. Embora a extensão da vacância certamente ponha a Igreja em tribulação, não há nada de intrinsecamente contrário à natureza da Igreja na vacância da sé. Ele responderia, além disso, que identificar os modernistas com a hierarquia católica não faz nada em prol da visibilidade da Igreja Católica, mas antes, simplesmente, mantém a visibilidade de uma igreja herética. Noutras palavras, a indefectibilidade não é salva por uma teoria que identifica a hierarquia modernista com a Igreja Católica, mas antes é destruída por uma teoria dessas. Pois a Fé, argumentariam eles, é metafisicamente anterior à visibilidade da estrutura da Igreja, i.e.há uma dependência que a visibilidade da Igreja tem da Fé da Igreja, e portanto não é suficiente para a visibilidade da Igreja que simplesmente qualquerestrutura seja visível, mas, sim, uma estrutura que professa a Fé Católica. Ter alguma organização visível que não professa a Fé Católica pode ser uma organização visível, mas não é a Igreja Católica.Boa parte dos sedevacantistas sustenta a teoria materialiter/formaliter– uma teoria amplamente mal entendida –, que simplesmente afirma que, embora a hierarquia modernista não desfrute de jurisdição, que é o aspecto formal da autoridade, ela continua, não obstante, a sucessão material das sés romana e episcopais. Os defensores dessa teoria, portanto, diriam que, apesar de Wojtyla não ser o papa, ele tem a posse, sem embargo, de uma eleição válida que o coloca em posição de se tornar o papa, caso ele remova os obstáculos à sua recepção da autoridade. O obstáculo à aceitação da autoridade papal é a obediência dele ao Vaticano II, que, se aceito, colocaria umadesordem essencial na Igreja Católica, tendo em vista que o Vaticano II contradiz o ensinamento da Igreja. Ele também está, acrescentariam eles, em posição de ter a eleição removida dele por algum ato autoritativo, por exemplo um conclave de cardeais católicos, ou mesmo, a rigor, um concílio de alguns bispos jurisdicionais, embora possa ser pequeno. Um ato desses é obviamente improvável no futuro que se pode prever, mas o Vaticano II também era improvável. Essa teoria, dizem eles, salva tanto a indefectibilidade da Igreja em questões de fé, moral, culto e disciplina, como a permanência da hierarquia da Igreja na medida em que exige sua continuidade materialao longo de toda a crise.
O outro tipo de sedevacantista é o sedevacantista absoluto, que diz que, devido à pública profissão de heresia, manifestada tanto por palavras como por atos, Wojtyla e a hierarquia Novus Ordo em geral defeccionaram publicamente da Fé Católica, e portanto tacitamente renunciaram aos seus ofícios, em conformidade com, ao menos, o espírito do cânon 188, parágrafo quarto. Outros invocam a Cum ex Apostolatus do Papa Paulo IV, a qual declara que mesmo que um herege fosse eleito ao papado pelo consentimento unânime de todos os cardeais, e mesmo que ele tivesse em aparência subido ao papado, ele continuaria não sendo o papa.
IV. Crítica dos Vários Sistemas
Antes, porém, de começar a criticá-los, certos princípios têm de ser assinalados.
A. Princípios Fundamentais
1. O Novus Ordo ou é católico ou é acatólico, mas não pode ser ambos.
A Fé Católica não admite graus. Ela é por natureza integral, já que ela procede da autoridade de Deus e é crida tendo por motivo a autoridade de Deus. Ela, portanto, não pode admitir exceções. Se há a mais leve mácula de heresia num ensinamento doutrinário ou moral, no culto, ou na disciplina, então este não é católico.
“Tal foi sempre o costume da Igreja, apoiada pelo juízo unânime dos Santos Padres, os quais sempre consideraram como excluído da comunhão católica e fora da Igreja quem quer que se separe o menos possível da doutrina ensinada pelo magistério autêntico.”
(Papa LEÃO XIII, Satis Cognitum, trad. cit., p. 20).
Predicar, de algum modo, tanto católico como acatólico do Novus Ordoseria contradição absurda, para não mencionar blasfêmia. E cumpre entender aqui que, por esse termo “Novus Ordo”, quero dizer o sistema – pois é um ordo – de doutrinas, ensinamentos morais, culto e disciplina que é o produto do Vaticano II e das reformas pós-Vaticano II.
2. Se o Novus Ordo é católico, deve ser aceito, mas se não é católico, deve ser rejeitado; non datur tertium.
O Novus Ordo foi promulgado com a plena autoridade daquilo que éaparentemente a Igreja Católica. Nenhum católico poderia, portanto, presumir desconsiderar esses ensinamentos, culto e disciplina. Ademais, não há razão alguma para resistir às mudanças do Vaticano II se elas são católicas. Se os seus ensinamentos, culto e disciplina são católicos, então a crença e observância dessas coisas é causativa da salvação das almas. Mas se você pode salvar a sua alma no Novus Ordo, por que se dar ao trabalho de reter o tradicional? A adesão à tradição nesse caso seria motivada por nostalgia ou preferência, e não seria de modo nenhum justificada se fosse contra a vontade da hierarquia. Por outro lado, se o Novus Ordo é uma mudança substancial das doutrinas, culto e disciplina da Igreja, é óbvio que o católico deve combatê-lo como teria combatido o arianismo ou o protestantismo, preferindo a morte à transigência.
3. É impossível reconhecer a autoridade do Papa sem ao mesmo tempo reconhecer as prerrogativas da autoridade dele.
A autoridade papal é infalível no ensinamento da fé e moral, mesmo no exercíco do magistério ordinário universal, e é infalível em questões de culto e disciplina, porquanto não tem como prescrever qualquer coisa pecaminosa, herética, ou prejudicial às almas nessas questões. O reconhecimento da autoridade papal em Montini ou Wojtyla envolve automaticamente o reconhecimento de que o Vaticano II está livre de erro doutrinário, e de que a liturgia e sacramentos Novus Ordo, bem como o Código de Direito Canônico de 1983, não contêm qualquer erro doutrinário nem qualquer coisa que seja pecaminosa ou prejudicial às almas. O pior que se poderia dizer dessas coisas, caso se admita que procederam de verdadeira autoridade papal, é que podem ser imprudentes, talvez menos estéticas, ou de algum modoextrinsecamente repugnantes. Elas devem ser admitidas como sendointrinsecamente católicas, perfeitas e conducentes à salvação eterna. O Papa Pio VI declarou “falsa, temerária, escandalosa, perniciosa, ofensiva aos ouvidos pios, injuriosa à Igreja e ao Espírito de Deus, pelo qual ela se rege, e pelo menos errônea”, a proposição de que a Igreja pode prescrever alguma disciplina que seja falsa ou nociva (Denz. 1578). O Papa Pio IX fulminou aqueles que reconheciam a autoridade dele por um lado, mas ignoravam a disciplina dele por outro lado:
“De que adianta proclamar altissonantemente o dogma da supremacia de São Pedro e seus sucessores? De que adianta repetir incessantemente declarações de fé na Igreja Católica e de obediência à Sé Apostólica quando as ações desmentem essas belas palavras? Ademais, a rebelião não é tornada ainda mais indesculpável pelo fato de a obediência ser considerada um dever? Novamente, a autoridade da Santa Sé não se estende, como sanção, às medidas que Nós fomos obrigados a tomar, ou basta estar em comunhão de fé com esta Sé sem acrescentar a submissão de obediência, coisa que não pode ser sustentada sem ferir a Fé Católica? Na realidade, Veneráveis Irmãos e Filhos amados, trata-se de reconhecer o poder (desta Sé), mesmo sobre suas próprias igrejas, não somente no que concerne à fé, mas também no que concerne à disciplina. Quem negar isso é herege; quem reconhecer isso e obstinadamente recusar-se a obedecer é digno de anátema.”
(Papa PIO IX, Quae in Patriarchatu, 1.º de setembro de 1876, ao clero e fiéis do rito caldeu).
Com esses princípios estabelecidos, prossigamos à crítica dos vários sistemas.
B. Aplicação dos Princípios aos Vários Sistemas
1. À Solução Ecclesia Dei
A partir dos princípios precedentes, o leitor facilmente determinará que esta não é solução de modo nenhum. Dado que aceitaram o Novus Ordo como católico, reduziram sua adesão à tradição a uma “viagem nostálgica”. Eles tornaram-se uma Alta Igreja dentro de uma Larga Igreja extremamente ampla, uma que admite até o culto de cobras, de Shiva, do Grande Polegar e Buda, e louva heresiarcas como Martinho Lutero, para não mencionar as leitoras femininas de topless. De fato, o nome que se deve dar a esta ideia é o de solução Ecclesia Diaboli. Mas uma coisa deve ser dita em favor daqueles que seguem isto, e é que eles são ao menos coerentes e lógicos em seu pensamento, porquanto enxergam que não se pode aceitar Wojtyla como papa e ao mesmo tempo ignorar sua autoridade doutrinal e disciplinar. Mas é absolutamente deplorável que essas pessoas possam permitir-se ser tão cegas a ponto de estarem em comunhão, i.e. na mesma Igreja com tipos como esses modernistas, os quais São Pio X disse que “deviam ser esmurrados” [“ought to be beaten with fists” (N. do T.)].
[N. do T. – Suspeito seriamente que seja apócrifa essa declaração atribuída a São Pio X; não o é, porém, a seguinte, igualmente condenatória da ideia “conservadora” de estar em comunhão com modernistas, bem como da absurdíssima equação dos modernistas do século XX com os católicos-liberais do século XIX, como se um Loisy ou Ratzinger fossem apenas novos Montalembert ou Mons. Dupanloup:
“Mas, passando ao argumento da carta de Vossa Eminência, como se pode condenar a crítica feita por L’Unità Cattolica, se, no escrito examinado por este, atribui-se ‘um verdadeiro amor pela Religião e pela Igreja’ àqueles que compendiaram nos seus escritos todos os erros do modernismo, que fingiram submissão exterior para permanecer no redil e propagar mais seguramente os erros, que continuam o trabalho nefasto com conferências e congressos secretos e que, numa palavra, traem a Igreja fingindo-se de amigos? Ora, descontado todo o resto, e as respostas pouco exatas e menos convincentes dadas às afirmações desses escritores, quem não vê a triste impressão e o escândalo dados às almas em considerar católicos esses miseráveis, aos quais, por ordem do Apóstolo São João, deveríamos negar até mesmo a saudação: nec dixeritis ave?”
(Papa São PIO X, Carta ao cardeal Ferrari, arcebispo de Milão, Vaticano, 27 de fevereiro de 1910, in: SACRA RITUUM CONGREGATIO – Sectio Historica, Romana Beatificationis Et Canonizationis Servi Dei Pii Papae X Disquisitio Circa Quasdam Obiectiones Modum Agendi Servi Dei Respicientes In Modernismi Debellatione Una Cum Summario Additionali Ex Officio Compilato, S. Hist. n. 77, Typis Polyglottis Vaticanis, 1950, cf.http://www.floscarmeli.org/disquisitio/documenta_2.html).
- Fim da N. do T. -]
2. À Solução Lefebvrista
Se aceitamos como basicamente precisa a descrição dada acima da posição deles, a saber que eles veem Wojtyla como o cabeça de duas igrejas, sendo uma a Católica, a outra a Conciliar, então é imediatamente evidente que a posição deles envolve contradições labirínticas do ponto de vista da eclesiologia católica. Em primeiro lugar, eles de algum modo veem o Novus Ordo como ao mesmo tempo católico e acatólico, e por essa razão eles “peneiram” seus ensinamentos e disciplinas, para colher da massa podre o que calhar de nela ser católico. Eles portantoassociam o Novus Ordo com a Igreja Católica. Consideram a hierarquia Novus Ordo como sendo a hierarquia católica, como tendo a autoridade de Cristo para ensinar, governar e santificar os fiéis. Mas ao mesmo tempo são excomungados por essa autoridade mesma, dado que eles agem como se ela não existisse, chegando ao ponto de consagrar bispos desafiando uma ordem “papal” direta em contrário.
Para ilustrar essa confusão, cito uma edição (de agosto de 1991) deThe Angelus, que é o órgão oficial deles, onde lemos estas palavras alarmantes:
“A Igreja abandonou a protetora tradição de Cristo. A Igreja abandonou a Missa, os sacramentos, o ensinamento da sã doutrina nas escolas, até a oração a São Miguel para proteger-nos ‘da maldade e das ciladas do demônio’.” (Itálicos acrescentados)
Embora o autor possa ter somente expressado seus pensamentos impropriamente, sem embargo, como está, essa sentença declara explicitamente a defecção da Igreja Católica.
Na mesma edição, lemos com alarme idêntico estas palavras na página editorial:
“Que o Santo Padre recuse-lhes [aos bispos consagrados pelo Arcebispo Lefebvre] jurisdição, e consequentemente autoridade para governar uma parcela do rebanho, é certamente um infortúnio. Mas é pouco mais que acidental com respeito ao papel mais fundamental deles na preservação da Fé e dos Sacramentos na Igreja, especialmente quando a falsa noção da colegialidade eficazmente paralisou ou destruiu o exercício da autoridade e hierarquia na Igreja.”
Uma tal declaração reduz a missão apostólica da Igreja, confiada a São Pedro, a algo “pouco mais que acidental”. ([3] Dever-se-ia notar que “pouco mais que acidental” [“hardly more than accidental” (N. do T.)] significa “substancial”, mas não penso que o autor intentasse esse significado.) Mas é essa autoridade mesma, e sua legítima posse e transmissão, o que faz a Igreja Católica ser católica. É a forma da Igreja Católica, i.e. aquilo pelo que ela é o que é. Nada pode ser mais substancial à Igreja Católica do que essa autoridade. Cumpre sublinhar também que exercer o poder de ordens sem a aprovação da hierarquia da Igreja Católica é gravíssimo pecado mortal, e sabe a cisma quando feito de modo sistemático e permanente. Alguém só pode reivindicar o princípio Ecclesia supplet quando há dúvida sobre se ele tem jurisdição; usar esse princípio contra a própria autoridade que possui essa jurisdição faz em pedaços toda a Igreja Católica. É afundar em protestantismo, no qual cada ministro recebe seu poder “diretamente de Deus”. Para que ter uma hierarquia, para que ter jurisdição, se todo o mundo pode decidir que tem direito de exercer seu poder de ordens com base em seu próprio entendimento de que a Igreja supre a jurisdição diretamente a ele? Num caso desse, a hierarquia seria puramente acidental, efetivamente seria aquilo que os ministros protestantes são para a crença, culto e sacramentos protestantes.
A posição lefebvrista é uma posição completamente incoerente, e tritura completamente a indefectibilidade da Igreja Católica, dado que identifica com a Igreja Católica a defecção doutrinal e disciplinar do Vaticano II e de suas subsequentes reformas. Pois se estas não são uma defecção, então por que estão resistindo a elas? Se não são uma defecção, então o que teria possibilidade de justificar a consagração de quatro bispos indo contra a ordem daquela pessoa que dizem eles ser o representante de Cristo na terra? A única coisa que justifica a posição dos “tradicionalistas” em sua recusa sistemática do Vaticano II e suas reformas é o fato de que essas reformas não são católicas e levam à destruição das almas. Mas, se não são católicas, então aqueles que as promulgaram não têm como ser detentores de autoridade católica, já que, se o fossem, teriam sido incapazes de promulgar uma coisa dessas para a Igreja Católica.
Portanto, o grupo de Lefebvre está na posição impossível de resistir à autoridade da Igreja Católica em questões de doutrina, disciplina e culto, que são os efeitos das três funções essenciais da hierarquia católica, i.e. a função de ensinar, governar e santificar, e que são a base da tríplice unidade da Igreja Católica, a unidade de fé, a unidade de governo e a unidade de comunhão. Resistir à Igreja Católica nessas questões é suicídio espiritual, pois aderir à Igreja Católica é necessário para a salvação. Se é admissível resistir à Igreja em doutrina, disciplina e culto, então no que a Igreja deve ser obedecida? Qual é a autoridade de São Pedro, se pode ser ignorada nessas questões?
Essa “solução” portanto viola todos os três princípios que enunciei acima, pois: (1) eles defendem que o Novus Ordo é um tipo de mescla de católico e acatólico; (2) eles defendem que embora o Novus Ordoseja intrinsecamente católico, pode-se ainda resistir-lhe e rejeitá-lo; e (3) eles reconhecem a autoridade de Wojtyla, mas ao mesmo tempo rejeitam as prerrogativas dessa autoridade. Nessa última questão eles são desafortunadamente comparados aos galicanos, jansenistas e outras seitas de rito oriental que fizeram exatamente a mesma coisa, i.e. que “alteraram” as doutrinas e decretos do Romano Pontífice conforme o seu gosto.Assim, embora eu pense que os envolvidos com o grupo de Lefebvre estão de boa vontade e desejam de todo o coração o bem da Igreja, eles não obstante trabalham com alguns sérios erros especulativos e práticos. Estão também envolvidos em profunda incoerência, e não é de espantar que conste haver muitos entre eles tanto cripto-sedevacantistas, de um lado, quanto simpatizantes do eclesiadeísmo, de outro.
3. À Solução Sedevacantista
O Padre Hugon O.P. disse sobre a famosa controvérsia do tomismo contra o molinismo: “Cada sistema é sujeito a dificuldades; de fato, a exclusão do mistério nessa questão seria sinal de erro.” Ele então enfatiza que a obscuridade do tomismo advém não de seus princípios, mas antes da fraqueza do intelecto humano em entender como seus princípios certos são reconciliados em Deus. O molinismo, por outro lado, sofre de uma exceção feita aos princípios teológicos universalíssimos e certíssimos da Causalidade Divina, e acaba pondopassividade em Deus. ([4] Hugon, Rev. Pe. Édouard, O.P., Tractatus Dogmatici, Parisiis; Sumptibus P. Lethielleux, 1927, Vol. I, p. 222 sq.) Assim, a obscuridade do molinismo advém da incapacidade de reconciliar Deus e a passividade, que são duas noções absolutamente contraditórias, ao passo que a obscuridade do tomismo advém da reconciliação em Deus de princípios que são absolutamente certos. O tomismo, portanto, deixa você com um mistério em aberto, mas o molinismo deixa você com uma contradição. Penso que isso é exatamente análogo à posição sedevacantista.
[N. do T. - Evidentemente, nem é preciso ser bañezista para compreender o paralelo feito aqui pelo Autor, nem o sedevacantismo implica rejeição do molinismo ou de qualquer outra solução permitida pela Igreja.]
Semelhantemente, a posição sedevacantista afirma todos os princípios adequados, mas permanece obscura por não conseguirmos enxergar sua derradeira reconciliação. Noutras palavras, enquanto o sedevacantismo mantém todos os elementos essenciais da indefectibilidade da Igreja, ele sem embargo não sabe como explicar o mistério da iniquidade do Novus Ordo, isto é, como a prolongada vacância da Sé Apostólica servirá em última instância à glória de Deus, e o modo como a Igreja superará um dia o terrível problema. Mas, ao afirmar que a Sé Apostólica está vacante, o sedevacantismo não tentará afirmar coisas contraditórias: seja (1) que a religião Novus Ordo e a Fé Católica são a mesma coisa (a contradição dos eclesiadeístas), ou (2) que a Igreja Católica promulgou ensinamentos, ritos e disciplinas que são contrários à fé e prejudiciais às almas.
O ponto de partida para o sedevacantista é o princípio de que há diferença substancial entre o Novus Ordo e a Fé Católica. Essa diferença é evidentíssima na contradição virtualmente palavra por palavra entre a Dignitatis Humanae e a Quanta Cura, mas também é manifesta aos olhos de todos na Missa Nova e nos novos sacramentos, no Código de Direito Canônico de 1983, nas novas disciplinas, nos novos catecismos, no novo magistério ordinário. ([5] Szijarto, Laszlo, “Vatican II: Condemned” [Vaticano II: Condenado], Sacerdotium I (Pars Autumnalis, 1991).) Essas duas religiões são incompatíveis, e não podem coexistir na mesma Igreja. Mas, se o Novus Ordo é substancialmente diferente da Fé Católica, raciocinam eles, então não pode ser católico. Mas, se não é católico, prosseguem eles seu raciocínio, então é impossível que uma coisa dessas seja promulgada pela autoridade da Igreja, dado que a autoridade da Igreja não pode errar em questões tais como as de doutrina, culto e disciplina. Portanto, concluem eles, é impossível que aqueles que promulgam oNovus Ordo tenham a autoridade da Igreja Católica. É, portanto,impossível que Montini, Luciani ou Wojtyla sejam papas.
Esses princípios, que levaram a essa conclusão, são absolutamente inabaláveis. São apoiados seja pela filosofia seja pelo ensinamento da Igreja. São inexpugnáveis, e conduzem logicamente à sua conclusão. A indefectibilidade da Igreja é, assim, salva neste sistema, já que ele recusa associar com a Imaculada Esposa de Cristo essa abominação do modernismo que é obra do demônio.
Mas então onde está a Igreja visível? Ela é realizada naqueles que aderem publicamente à Fé Católica, e que ao mesmo tempo esperam a eleição de um Romano Pontífice. E quanto aos bispos? Esse sistema não necessariamente tira a autoridade de todos os bispos, mas somente daqueles que aderem publicamente à nova religião. Mas, ainda que tirasse a autoridade de todos e cada um dos bispos, o sedevacantismo não altera intrinsecamente a natureza da Igreja Católica, mas deixa à Providência de Deus a restauração da ordem. Aqueles sistemas, em contrapartida, que são temerosos de se desligar da hierarquia modernista por sua inabilidade de enxergar solução sem ela, na realidade combinam a Igreja Católica com a defecção do modernismo, que são duas coisas absolutamente incompatíveis, tão incompatíveis quanto Deus e a passividade. É impossível que estejam corretos aqueles sistemas que reconhecem o papado dos “papas” conciliares. O sedevacantismo pode conduzir você ao mistério, mas não leva você à contradição.
Os que aderem ao sedevacantismo material/formal diriam que a hierarquia visível continua a existir materialmente, o que é dizer que, por um lado, as eleições de papas e designações de bispos ainda são válidas, mas, por outro lado, em razão de sua promulgação de falsa doutrina, eles não têm o poder de jurisdição. Portanto, são falsos papas e falsos bispos, mas são verdadeiros eleitos ao papado e ao episcopado.
Conclusão
Como afirmei no início, a noção fundamental da indefectibilidade da Igreja Católica é que ela deve durar até o fim do tempo com a natureza e qualidade essenciais com que Cristo revestiu-a na sua fundação. Sua qualidade essencial mais importante é a Fé, e é pela Fé que a estrutura visível existe. Se o Novus Ordo é católico, então não há problema algum de defecção, e não faz sentido seguir com o movimento tradicional. Se o Novus Ordo não é católico, então ele envolve a defecção, e seria blasfemo combinar, do modo que for, a Igreja Católica e o Novus Ordo. Não há terceira via possível, assim como não é possível haver substancial alteração, aumento ou diminuição do depósito da Revelação. O Novus Ordo ou é católico ou não é. Eu sustento firmemente que não é católico, e portanto sustento que qualquer sistema que alegue que o Novus Ordo foi-nos dado pela autoridade de Cristo é objetivamente blasfemo e ruinoso da indefectibilidade da Igreja.
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[(*)N. do T. - A partir da revisão de 12 de outubro de 2001 (dez anos depois da versão original deste estudo), S.E.R. trocou, no segundo parágrafo, “A Igreja Católica deve ser identificada com a Igreja Conciliar?” por “A Fé Católica deve ser identificada com a religião Novus Ordo?” e fez alterações semelhantes em todo o restante do texto, deixando assim de endossar o emprego do termo “Igreja Conciliar” e reservando-o à descrição do que ele chama “a solução lefebvrista”, razão pela qual acrescentou, então, a seguinte nota de rodapé à primeira ocorrência do termo, na versão revisada deste estudo:
“‘Igreja Conciliar’ é o termo do Arcebispo Lefebvre. É um termo que eu rejeito, pois implica que os modernistas fundaram sua própria igreja estruturada. Mas não é este o caso. Antes, estão eles atrevidamente tentando usar a estrutura da Igreja Católica para sua própria religião falsa. Tal é o problema preciso com que se depara a Igreja Católica, que hereges por meios legais penetraram nas posições da hierarquia e estão promovendo uma religião falsa como se fosse a Fé Católica. Tivessem eles se separado da Igreja Católica, como os luteranos, sua posição com relação à Igreja Católica seria muito clara, e não haveria crise na Igreja.”
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