Por Mons. Donald Sanborn, RCI
(Tradução por Abner Benedetto)
SEGUNDA PARTE: ELUCIDAÇÃO DA TESE
Introdução
No primeiro artigo sobre esse assunto, explicamos a distinção que os teólogos fazem entre sucessão apostólica formal e sucessão apostólica material, e concluímos que a noção de sucessão apostólica puramente material não é uma noção artificialmente construída, mas uma verdadeira realidade; também vimos que a Igreja é composta de duas partes: 1) um único corpo moral, isto é, a hierarquia legalmente constituída com seus membros correlatos; 2) uma única e mesma autoridade, que é propriamente a autoridade do Cristo comunicada diretamente por Cristo àquele que é eleito ao papado; por fim, que essas duas partes devem sempre existir na Igreja desde o tempo dos Apóstolos até o fim do mundo, porque se uma ou outra falhar, a Igreja também falhará.
Nessa segunda parte, exporemos as razões para essa distinção das partes, especialmente com relação à pessoa do papa, que deriva da união desses dois elementos, ou seja, do elemento material, que é obra da Igreja, e do elemento formal, que é obra de Deus. No final, concluiremos que esses dois elementos podem ser separados e que estão de fato separados no eleito, que habitualmente e objetivamente não se propõe a promover o bem da Igreja.

PRIMEIRA SEÇÃO
Recapitulação do artigo precedente
No artigo precedente sobre esse assunto (Sodalitium nº 46, pp. 60-69), verificamos a distinção que os teólogos fazem entre sucessão formal e sucessão material. A sucessão formal é a sucessão à sé apostólica com autoridade apostólica; a sucessão material é a posse pura e simples da sé, isto é, sem autoridade.
Também vimos que é necessário que a Igreja Católica tenha continuidade apostólica tanto formal quanto material a fim de manter adequadamente a apostolicidade.
Somente um sujeito que detém legitimamente a sé apostólica pode receber a autoridade apostólica. Ademais, para ser una e única, a Igreja deve desfrutar de uma unidade que não seja apenas formal, por exemplo, em questões relacionadas à doutrina e à missão divina recebida de Cristo, mas também material, a fim de ser um corpo moral único desde o tempo de São Pedro até a Segunda Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta unidade material exige que haja uma linha ininterrupta de sucessores legalmente designados para receber a autoridade suprema. Portanto, para que a apostolicidade e a unidade da Igreja sejam mantidas, é necessário que a continuidade material dos sucessores nunca seja interrompida, ou seja, a sucessão daqueles que legítima e legalmente, por meio de uma designação legal, detêm a posse das sés de autoridade.
Por conseguinte, é preciso distinguir entre a sucessão apostólica material legítima ou legal e a sucessão apostólica ilegítima ou ilegal. A primeira é obtida somente por meio de designação legal por parte daquele que tem o direito de nomeação; a segunda é obtida somente por meio de intrusão, como, por exemplo, no caso de cismáticos que, tendo repudiado a autoridade do Romano Pontífice, ocupam sés episcopais de maneira absolutamente ilegítima. Em verdade, eles sucedem às sés apostólicas, mas ilegitimamente e ilegalmente, e, consequentemente, não podem receber autoridade (1).
Posto isso, apresento aqui um esquema da sucessão apostólica:

Neste artigo, proponho-me a demonstrar a Tese de que os “papas” durante e após o Concílio Vaticano II não são formalmente papas, mas tão somente papas materialiter. Uma vez que já estabeleci a distinção entre sucessão material e formal, começarei agora a tratar de algumas noções preliminares.
I. A autoridade considerada concretamente
II. A parte formal da autoridade
III. A parte material da autoridade
IV. A união dos dois elementos
V. A possibilidade de separar os dois elementos
VI. As causas que impedem a união dos dois elementos
Ao final deste estudo, apresentarei a Tese e responderei às objeções.
SEGUNDA SEÇÃO
NOÇÕES PRELIMINARES
I. A autoridade considerada concretamente, isto é, em um papa ou um rei
1. A autoridade pode ser considerada tanto por seu conceito formal quanto concretamente
Para não confundir os termos, devemos primeiro distinguir entre a autoridade considerada em si mesma, por exemplo, a autoridade papal ou real, e a autoridade considerada concretamente, por exemplo, um papa ou um rei.
2. A autoridade considerada concretamente consiste em um composto resultante da união de duas partes, a saber, a forma e a matéria, por analogia com um ser substancial. A matéria prima é o primeiro sujeito e substrato do qual toda a realidade física é substancialmente constituída, e no qual se desvanece se for destruída. A forma substancial é o ato primeiro que constitui um unum per se quando está unido à matéria-prima, ou aquele pelo qual algo é constituído em um determinado modo de ser.
[Materia prima est subiectum primum cuiusque rei, ex quo, cum insit, fit aliquid et non per accidens. Forma substantialis est actus primus una cum materia prima unum per se constituens seu id quo res determinatur ad certum modum essendi.]
A causa material é aquela pela qual uma coisa é feita.
A causa formal é aquela que determina a matéria e a perfeição em um determinado modo.
A forma acidental é análoga à forma substancial, uma vez que a substância inerente ao acidente se torna material com relação à forma acidental que a aperfeiçoa.
A forma substancial dá o ser simpliciter, a forma acidental, ao contrário, não dá o ser simpliciter, mas ser este ou aquele.
Para que haja um composto (nesse caso, um rei ou um papa), a forma deve ser recebida por uma matéria adequada e disposta a recebê-la. A razão para isso é que as partes não podem ser unidas e formar um composto se não houver uma proporção justa entre elas. Diz Santo Tomás: “a devida proporção entre matéria e forma é dupla: pela ordem natural entre matéria e forma, e pela remoção de um impedimento” [Debita proportio materiæ ad formam est dupliciter, scilicet per ordinem naturalem materiæ ad formam, et per remotionem impedimenti] (In lib. IV Sent., Dist. XVII q. I, a. II, sol. 2. c).
De tudo isso, é evidente que a autoridade considerada concretamente (por exemplo, um rei ou um papa) é constituída pela matéria (que é um homem) e pela forma, que consiste na faculdade de legislar, pela qual alguém se torna superior de seus súditos.
Mas não é qualquer homem que está apto a receber essa forma acidental; é somente aquele que possui todas as perfeições necessárias para receber a forma acidental da autoridade. Se a ordem natural entre a matéria e a forma estiver ausente ou se houver um impedimento, a matéria e a forma não podem se unir. Por exemplo, uma criança ou um louco, embora seja um homem e, portanto, esteja predisposto à autoridade pela ordem natural, não está predisposto a receber autoridade por causa de um impedimento, pois lhe falta a disposição intelectual adequada para promover o bem comum.
Analogamente, aquele que não é cidadão de um determinado país não pode se tornar seu chefe porque não é possível que alguém que não seja membro de um corpo se torne seu chefe.
Do mesmo modo, se um leigo ou um simples sacerdote eleito ao papado recusar a consagração episcopal, ele não poderá receber a autoridade porque não tem a perfeição necessária para promover o bem comum da Igreja.
É evidente, portanto, que certas disposições ou formas acidentais que aperfeiçoam o homem são necessárias para que este se torne matéria próxima de modo a receber em si mesmo a forma da autoridade.
II. A autoridade considerada formalmente
3. Os teólogos e filósofos comumente adotam a noção de lei para definir a autoridade. A definição comum de autoridade é, portanto: “a faculdade de legislar”. Quem tem autoridade tem o direito de obrigar os outros a fazer ou não fazer algo. A noção de autoridade deve, portanto, ser derivada da noção de lei, uma vez que a faculdade deriva sua própria especificidade de seu ato e de seu objeto.
4. Noção de lei segundo Santo Tomás:
Santo Tomás define a lei como uma ordenação (“ordinatio”) da razão orientada ao bem comum, estabelecida e promulgada pela pessoa a cargo da comunidade.
“A lei pertence àquilo que é o princípio dos atos humanos, uma vez que é sua regra e medida. Mas, assim como a razão é o princípio dos atos humanos, há nela algo que é o princípio de tudo o que pode compreender: é com esse algo que a lei deve se relacionar em primeiro lugar e principalmente. — Ora, com relação à ação, o domínio próprio da razão prática, o primeiro princípio é o fim último; e o fim último da vida humana é a felicidade ou a beatitude. Por conseguinte, a lei deve tratar principalmente do que é ordenado à beatitude. Ademais, toda parte é ordenada ao todo, assim como o imperfeito é ordenado ao perfeito; mas o indivíduo humano não é uma parte da comunidade perfeita?… Portanto, é necessário que a lei considere diretamente o que está ordenado à felicidade comum. É por isso que o Filósofo [Aristóteles], na definição das coisas legais já indicada, menciona a felicidade e a solidariedade política. Com efeito, ele diz (Ética V, cap. 1, l. 2) que chamamos de justas as disposições legais que realizam e preservam a felicidade e o que faz parte dela, por meio da solidariedade política. Devemos nos lembrar de que, para ele, a sociedade perfeita é a cidade (Política I, cap. 1, l. 1).
Em qualquer gênero, o termo mais perfeito é o princípio de todos os outros, e esses outros são considerados no gênero apenas segundo sua relação com esse primeiro termo. Assim, o fogo, que alcança o calor em sua perfeição, é a causa do calor em corpos compostos, que são chamados de quentes apenas na medida em que participam do fogo. Consequentemente, é necessário, uma vez que a lei assume seu pleno significado apenas por meio de sua orientação ao bem comum, que qualquer outro preceito destinado a um ato particular assuma o valor de lei apenas segundo sua orientação a esse bem comum. É por isso que toda lei visa à ordem com vistas ao bem comum” (I-II, q. 90, a. 2, corpus).
A finalidade da lei é o bem comum (I-II q. 96 art. 1, c).
A lei visa ao bem comum (I-II q. 96 art. 3, c).
As leis podem ser injustas de dois modos. Por um lado, por sua oposição ao bem geral… Leis desse tipo são mais formas de violência do que de leis… Por outro lado, as leis podem ser injustas por sua oposição ao bem divino… (I-II q. 96 art. 4, c).
É por isso que, segundo Santo Tomás e os escolásticos em geral, a lei tem uma ordem essencial orientada ao bem comum, de modo que, se essa ordem estiver ausente, a força do caráter obrigatório da lei também estará ausente, assim como o próprio nome de lei.
5. Definição de autoridade: A autoridade é a faculdade moral encontrada em uma pessoa, seja ela individual ou coletiva, que tem o comando da comunidade, para emanar, promulgar e aplicar determinadas normas que sejam necessárias ou úteis para promover o bem comum. Essa definição está de acordo com a definição de quase todos os escolásticos. Zigliara define autoridade do seguinte modo: o poder, a faculdade ou o direito de governar as coisas públicas. Billot: chamamos de poder político aquele pelo qual um povo é governado com o objetivo de obter paz e prosperidade. Meyer: o direito de direcionar a sociedade civil rumo ao seu fim. Liberatore: o direito de governar as coisas públicas. Taparelli: chamo de autoridade o direito de tornar obrigatório o que é puramente honesto. Schiffini: o direito de obrigar os membros de um estado de modo a atingir o fim desse estado. Cathrein: o direito de obrigar os membros da sociedade para que, por meio de suas ações, cooperem em prol do bem comum.
Do que foi dito, conclui-se que a autoridade assim definida deve ser colocada no gênero de habitus ativo. É por isso que, na medida em que é um habitus (2) (ou disposição), deriva sua espécie e definição do objeto formal. Ora, o objeto formal e primário do habitus autoridade é fazer leis, promulgá-las e aplicá-las. O objeto formal de uma lei é a promoção do bem comum. Portanto, mediante a lei, a autoridade é necessariamente, intrínseca e essencialmente ordenada a promover o bem comum. Decorre daí que a pessoa investida de autoridade deve ter a intenção habitual de promover o bem comum, caso contrário não poderá deter autoridade. Ela deve ter a intenção habitual, uma vez que, por sua própria natureza, a autoridade civil ou eclesiástica é um direito permanente e não meramente transitório ou “per modum actus”, como é o caso, por exemplo, de um padre que, embora não tenha jurisdição habitual, absolve um moribundo. Ademais, a intenção de promover o bem comum deve ser objetiva e não meramente subjetiva. Em outras palavras, não é suficiente que a pessoa com autoridade entenda o bem comum da comunidade à sua maneira, mas o bem tal como o entende também deve ser o bem comum verdadeiro e objetivo. A razão é que a lei é definida como ordenação da razão tendo em vista o bem comum. Portanto, para que a vontade do superior se vincule à consciência, é necessário que ela compreenda objetivamente o bem comum. Caso contrário, a definição da lei não será satisfeita. Por essa razão, uma lei que contradiga uma lei superior não se vincula à consciência; é uma lei perversa, à qual todos devem se opor e, nesse caso, o superior não tem nem o direito nem a autoridade para fazer essa lei.
6. A autoridade é essencialmente voltada ao bem comum. Para fundar uma sociedade, as pessoas se reúnem com o objetivo de alcançar algo em comum (3). Esse “algo a ser alcançado” nada mais é do que o bem comum da sociedade. E como o bem é um só, é natural e necessário que a multidão de homens que se reúne em uma sociedade designe uma única pessoa física ou jurídica para ser responsável por toda a comunidade, para conduzir toda a comunidade a seus próprios fins, isto é, ao bem comum.
A potestade real — e, portanto, também o rei — é definida pela capacidade de legislar, que, por sua vez, é definida por ser ordenada com vistas ao bem comum. Portanto, a autoridade é essencialmente ordenada ao bem comum por meio da lei, e o ato de legislar é o objeto formal da autoridade.
7. Toda autoridade provém de Deus. Toda autoridade tem seu fundamento na autoridade de Deus, na própria providência de Deus, por meio da qual Ele infalivelmente ordena e promove todas as coisas a seu fim. A faculdade de legislar do rei é uma participação na própria providência de Deus e na lei eterna que rege todas as coisas. O ato de legislar por parte do rei nada mais é do que a participação na própria ação divina de estabelecer a lei eterna da qual a lei humana deriva seu caráter vinculante.
A obediência concedida e devida à lei humana é indiretamente obediência ao próprio Deus, de quem a lei recebe seu caráter vinculante. Consequentemente, o principal fundamento da relação rei-súdito é a própria providência de Deus, a quem se deve obediência absoluta na medida em que Ele é o Criador, o Sumo Bem e o fim último de todas as criaturas. Essa relação rei-súdito provém de Deus e não da comunidade. Entretanto, ela exige que a comunidade designe legalmente, isto é, em nome de toda a comunidade, uma pessoa que receberá a potestade real.
8. A potestade real gera relações mútuas. O poder de legislar, que é uma potência ativa, é o que constitui alguém como rei. Por outro lado, a obrigação de obedecer à lei é o que faz de alguém um súdito. O rei ou o detentor da potestade real está unido a toda a comunidade na medida em que é o promotor do bem comum. Por sua vez, a comunidade como um todo está unida ao promotor do bem comum na medida em que é movida pelo bem comum.
O rei tem o direito de legislar porque Deus infunde nele o direito de promover a comunidade rumo ao bem comum. Os súditos têm a obrigação de obedecer, pois Deus infunde neles o dever de obedecer ao legislador. É por isso que o fundamento da relação rei-súdito é 1) em primeiro lugar, a própria Onipotência e Providência de Deus, e 2) em segundo lugar, a infusão da potestade real no rei e o dever correspondente nos súditos. Consequentemente, um rei é alguém que 1) recebe a designação legal de toda a comunidade para promover o bem comum e 2) recebe autoridade de Deus. Portanto, do fato de que a sociedade “gera” o rei na medida em que designa alguém para promover o bem comum de toda a comunidade, surgem duas relações mútuas, como ocorre na geração natural: por um lado, aquele que é constituído rei pela relação de autoridade para com seus súditos é feito rei, por outro, aqueles que são constituídos súditos pela relação de sujeição que têm com o rei são feitos súditos. Uma vez que o rei é “gerado” apenas em ordem ao bem comum, consequentemente as relações de autoridade e sujeição permanecem apenas enquanto a ordem ao bem comum permanecer, de modo que quando a ordem ao bem comum é suprimida, a relação é igualmente suprimida.
Por conseguinte, qualquer pessoa que se proponha a promulgar um erro ou leis disciplinares más não pode ser um verdadeiro papa, uma vez que o bem da verdade na Fé e na moral é essencial para a missão conferida por Cristo à Igreja.
9. Condições para a recepção da autoridade real. Recordemos as palavras de Santo Tomás sobre a necessidade de proporção entre matéria e forma, que deve estar presente em um só composto: a devida proporção entre matéria e forma é dupla: pela ordem natural entre matéria e forma, e pela remoção de um impedimento. É por isso que aquele que foi legalmente designado não pode receber a potestade real se não houver ordem natural entre a matéria e a forma e se houver algum impedimento. Certas desproporções não podem ser suprimidas, que são precisamente aquelas devidas a impedimentos físicos; outras podem ser suprimidas, que são precisamente aquelas devidas a impedimentos morais. Assim, por causa de uma desproporção física, os loucos e as mulheres não podem, por si mesmos, receber o poder papal, uma vez que são fisicamente impedidos de receber esse poder. Nesses casos, há uma desproporção permanente, e também não estão aptos a serem validamente designados. Quanto a impedimentos de ordem moral, não podem receber o poder papal aqueles que apresentam qualquer tipo de impedimento moral voluntário e removível, como, por exemplo, a recusa da consagração episcopal ou a intenção de ensinar erros ou promulgar leis disciplinares em geral más, ou a recusa do batismo no caso da eleição de um catecúmeno: por exemplo, Santo Ambrósio eleito à sé episcopal de Milão (4). [Há aqueles] que são aptos a serem validamente designados porque o impedimento é removível, mas a autoridade não pode ser infundida por Deus até que o impedimento seja removido. A razão é que não são capazes de promover o bem comum até que tenham removido o obstáculo. E, uma vez que o impedimento é moral e voluntário, esse impedimento pode ser reduzido a uma ausência de intenção de promover o bem comum. Portanto, Deus, que é o bem subsistente, não pode infundir autoridade em ninguém que voluntariamente impeça a promoção do bem comum.
10. Recapitulação. A autoridade considerada concretamente, por analogia com o objeto substancial, consiste na união de duas partes: matéria e forma. O elemento material da autoridade é a designação legal de uma pessoa a receber a potestade real, efetuada pela totalidade da comunidade. O elemento formal da autoridade é a faculdade de legislar. Essa faculdade, ou direito, é essencialmente ordenada ao bem comum através da lei pela qual é medida quanto ao seu objeto formal, de modo que, se a ordenação ao bem comum for suprimida, a faculdade será suprimida.
Toda autoridade provém de Deus, cuja Onipotência e Providência são o fundamento primário da relação rei-súdito. A autoridade é infundida imediatamente por Deus na pessoa que possui a designação legal, desde que haja uma ordem natural à recepção da forma da autoridade e que não haja qualquer impedimento. Portanto, a condição sine qua non à recepção da forma da autoridade de Deus é a intenção de promover o bem comum na pessoa designada a ser responsável pela comunidade inteira.
III. A autoridade considerada materialmente (materialiter) ou a designação legal à recepção da potestade real
11. Quem governa legitimamente e quem governa ilegitimamente? A autoridade como uma potência ou faculdade ativa é um habitus e, portanto, um acidente predicamental que não pode existir a menos que seja recebido em um sujeito. Mas em qual sujeito? Em outras palavras, a questão que se coloca é: quem governa legitimamente e quem governa ilegitimamente?
A resposta é que aquele que foi legitimamente eleito pela sociedade a receber autoridade e que não tem nenhum impedimento para recebê-la, governa legitimamente. Um governante ilegítimo é aquele que adquiriu autoridade ilegitimamente, isto é, sem designação legal ou mesmo quando, tendo sido validamente designado, tem um impedimento à recepção da autoridade.
Na sociedade civil, a seleção do sujeito da autoridade, segundo a opinião comum, pertence à comunidade como um todo.
Segundo os tomistas em geral, a comunidade como um todo tem o direito de instituir ou escolher a forma de governo, bem como o sujeito que receberá a autoridade, mas a comunidade não transmite a autoridade em si, como alguns, especialmente Suárez, argumentaram. A comunidade simplesmente propõe um sujeito de autoridade. Mas é Deus quem confere a autoridade. A união desses dois elementos gera a autoridade concretamente, isto é, o rei.
A comunidade enquanto tal não pode ser o sujeito da autoridade; a autoridade provém de Deus. Entretanto, a designação do sujeito da autoridade vem da comunidade como um todo, ao menos implicitamente. Mesmo no caso da monarquia hereditária, de acordo com os autores, para que o rei receba legitimamente a autoridade, o povo deve, ao menos implicitamente, aceitar o sistema monárquico e hereditário.
No entanto, essas questões que dizem respeito à constituição do governo civil não nos interessam diretamente, uma vez que a constituição da Igreja advém imutavelmente do próprio Cristo e não depende de modo algum do consentimento ou da aprovação dos fiéis. Ademais, os elementos essenciais do governo civil derivam da lei natural, isto é, o fim da sociedade, a forma de governo, o modo de escolher os sujeitos da autoridade; ao contrário, os elementos essenciais da constituição da Igreja foram estabelecidos por disposição divina. Cristo instituiu a Igreja; convocou os apóstolos e os ordenou hierarquicamente. Cristo conferiu à Igreja seu fim, assim como os meios sobrenaturais para alcançá-lo. Cristo instituiu uma forma monárquica de governo, de modo que a constituição da Igreja não vem de modo algum daqueles que são inferiores, mas vem da própria autoridade de Cristo. Tampouco pode o Papa, que como vigário desfruta da mesma autoridade de Cristo, mudar a constituição divina da Igreja.
12. A matéria da autoridade. O leitor pode facilmente perceber, com base no que foi dito, que a autoridade considerada concretamente é composta por um elemento formal e um elemento material.
O elemento formal da autoridade é o próprio habitus ou faculdade moral ou direito de legislar. Em outras palavras, é o próprio Papa. O elemento material ou potencial da autoridade é o próprio homem que recebe esse direito de legislar. A autoridade concreta, isto é, o papa ou o rei, resulta da união desses dois elementos. Para que um rei ou um superior governe legitimamente, é necessário que a pessoa que recebe a autoridade seja legalmente designada para receber esse poder, de acordo com as leis civis ou eclesiásticas.
Caso contrário, aquele que se proclama papa ou rei não governará legitimamente, mas por meio de um ato de força, uma vez que a comunidade não é obrigada a aceitar como sujeito legítimo de autoridade alguém que não tenha sido legalmente eleito como sujeito legítimo de autoridade. Portanto, quem quer que ocupe a sé da autoridade por meio de um ato de violência não recebe verdadeiramente a autoridade porque não está realmente disposto a receber o ato ou a forma da autoridade. A eleição ou designação legal — mesmo no caso de nascimento legítimo em uma monarquia hereditária — aperfeiçoa o sujeito para que se torne a matéria última da autoridade, ou seja, confere-lhe a disposição última a receber a perfeição da autoridade. De modo análogo, isto se dá no caso da geração natural, na qual os pais não dão a forma humana, isto é, a alma, mas dão a disposição última da matéria. Deus confere a alma e a união da matéria com a forma produz um ente que é simpliciter uno, isto é, um homem. Se, por outro lado, a matéria não for disposta de modo algum, a forma não for infundida nela, ou se for infundida por um certo período de tempo, o feto morre porque a matéria é incapaz de permanecer unida à alma em razão de uma imperfeição.
Paralelamente, a autoridade em ato só pode ser recebida por um sujeito legalmente designado. No governo civil, na medida em que depende da lei natural, é fácil para um rei que ocupou a sé da autoridade pela força se tornar um rei verdadeiro e legítimo pela aprovação implícita do povo.
Mas esse princípio não pode ser aplicado na Igreja, uma vez que os fiéis não possuem, pela lei natural, o direito de designar o sujeito da autoridade papal. Portanto, é necessário que a pessoa que recebe o papado seja designada segundo as normas em vigor em tempos de vacância da Sé Apostólica, ou seja, que seja designada pelos eleitores que têm o direito legal de eleger o papa.
13. A duração da designação à recepção da jurisdição papal. A designação ao cargo dura 1) até a morte do sujeito; 2) até a recusa ou renúncia voluntária do sujeito ou 3) até a privação da designação do sujeito realizada por quem tem o direito de fazê-lo. Não há outro modo de privar a designação (5). Embora não haja nenhuma autoridade com o poder de julgar o papa, o corpo de eleitores pode, no entanto, privá-lo da designação. Com efeito, a designação vem de Deus apenas de maneira mediata; por outro lado, vem imediatamente dos eleitores. Por essa razão, não está além do direito dos eleitores do papa constatar que um papa eleito perdeu sua jurisdição ou até mesmo não está apto a receber a autoridade papal. Por exemplo: os eleitores devem constatar a morte de um papa antes de procederem à eleição de um novo papa. Do mesmo modo, se o papa ficasse insano, os eleitores teriam de constatar sua insanidade e, portanto, sua perda do poder papal e, depois de constatar esse fato, poderiam proceder a uma nova eleição. Semelhantemente, se um leigo fosse eleito, mas recusasse a consagração episcopal, os eleitores teriam que constatar sua indisposição para receber o poder e, após constatarem esse fato, poderiam proceder a uma nova eleição. No mesmo sentido, no caso de uma pessoa eleita ao papado, ou de alguém que já aceitou a jurisdição papal e caiu em heresia, ou pior, de alguém que, em nome da Igreja, promulgou heresias e leis disciplinares heréticas e sacrílegas, os eleitores devem e podem constatar esse fato da ausência, na pessoa eleita, da disposição à recepção da autoridade ou à manutenção da autoridade, e depois de constatar esse fato proceder a uma nova eleição.
14. A duração do direito de designar. A duração do direito de designar é semelhante à duração da própria designação, ou seja, só pode ser perdida por morte, renúncia ou privação legal. No caso dos eleitores do papa, somente aquele que tem o direito de nomear os eleitores (isto é, somente aquele que é papa, ao menos materialmente) tem o direito de privá-los legalmente. Mas aqui perguntamos: como um não papa ou um que o é apenas materialmente pode legalmente privar ou nomear os eleitores do pontífice romano? Em outras palavras, de que modo, após o Concílio Vaticano II, os conclaves podem ser considerados legítimos, quando os próprios eleitores são hereges, destituídos de jurisdição ou nomeados por hereges que também são destituídos de jurisdição?
A resposta é que a autoridade tem um duplo fim: um é legislar e o outro é nomear os sujeitos que receberão a autoridade. Como a mesma autoridade tem “um corpo” e “uma alma”, isto é, uma matéria e uma forma, sendo a primeira a designação à recepção da jurisdição e a segunda a própria jurisdição, assim o objeto da autoridade é duplo: o primeiro e principal objeto ou fim da autoridade é conduzir a comunidade ao bem através das leis, e isso diz respeito à “alma” da autoridade, o segundo e secundário objeto da autoridade (porque está ordenado ao primeiro) é nomear os sujeitos da autoridade, e isso diz respeito ao corpo da autoridade, de modo que a comunidade tenha continuidade ao longo do tempo. Por exemplo, se São Pedro tivesse conduzido a Igreja, mas não tivesse providenciado a sua sucessão legítima, teria prejudicado seriamente e até fatalmente o bem da Igreja, porque não é suficiente para um bom governo que alguém simplesmente legisle, mas é necessário que providencie uma sucessão legítima à sé da autoridade.
Esses dois objetos da autoridade são realmente distintos. A razão é que o ato de designar alguém a receber um cargo não é fazer uma lei. Designar alguém a um cargo é simplesmente transferir um direito ou título para essa pessoa. Não diz respeito ao fim da sociedade. Não se deve obediência à designação, como, ao contrário, se deve à lei; apenas o reconhecimento é devido. Ora, se os objetos são realmente distintos, então as faculdades ordenadas aos objetos também são realmente distintas. Portanto, a faculdade de designar é realmente distinta da faculdade de legislar. Pode ocorrer que uma pessoa, mesmo que não desfrute da faculdade de legislar (ou da autoridade considerada no sentido próprio e formal), possa, no entanto, desfrutar da faculdade de designar, na medida em que deseja o bem objetivo da sucessão legal à sé da autoridade. Ademais, como dissemos anteriormente, a faculdade de designar provém da Igreja, enquanto a faculdade de legislar provém de Deus. A Igreja pode conceder a faculdade de designar, sem que Deus conceda, ao mesmo tempo, a faculdade de legislar, e isto devido a um impedimento. Porém, os eleitores do papa, mesmo aqueles que aderem ao Concílio Vaticano II, têm a intenção de designar legalmente uma pessoa a receber o papado. Assim, Paulo VI e João Paulo II, embora fossem papas apenas materialiter (6), quando nomearam os “cardeais”, pretendiam nomear sujeitos que tinham a faculdade ou o direito de designar o papa. Portanto, os conclaves, mesmo os posteriores ao Concílio Vaticano II, buscam objetivamente o bem da sucessão à sé pontifícia, e aqueles que são eleitos para essa sé propõem objetivamente esse bem, que consiste em nomear os eleitores do papa. Essa continuidade puramente material da autoridade pode continuar indefinidamente, na medida em que os conclaves pretendem eleger um papa e aqueles que forem eleitos pretendem nomear os eleitores.
A designação tampouco torna-se nula por heresia da parte dos eleitores ou da pessoa eleita. A razão é que a designação em si não diz respeito à disposição ou não disposição do sujeito. As exigências da autoridade, isto é, o direito de legislar, dizem respeito à disposição ou não disposição do sujeito. Em outras palavras, o sujeito se torna inapto a receber autoridade por causa das exigências da forma, isto é, da autoridade, e não por causa das exigências do ato de designação.
Por exemplo, um leigo eleito ao papado, a fim de receber validamente a autoridade, deve ter a intenção de receber a consagração episcopal; se não tiver essa intenção, permanece validamente designado, mas não é apto a receber a autoridade devido à carência de provisão com relação às exigências da forma, mas não com relação às exigências da designação. Ele seria papa materialiter a partir do momento em que tivesse a intenção de receber a consagração episcopal. A designação é válida; a exigência da autoridade torna o sujeito inválido enquanto não for matéria proximamente disposta a receber a autoridade.
Portanto, aquele que é designado ao papado, mesmo que não possa receber a autoridade devido ao obstáculo da heresia ou porque recusa a consagração episcopal ou por qualquer outro motivo, pode, no entanto, designar outras pessoas para receberem a autoridade (como os bispos) e até mesmo os eleitores do papa, na medida em que todos esses atos dizem respeito apenas à continuação da parte material da autoridade e não dizem respeito à jurisdição, uma vez que na nomeação não é feita lei alguma. A nomeação ou designação é uma mera preparação, bastante remota, ao ato de legislar.
Aquele que é designado à autoridade, na medida em que mantém a intenção de continuar a parte material da hierarquia, recebe em si validamente esse poder não legislativo. Os eleitores que são designados por uma pessoa que é papa apenas materialiter procedem a uma eleição legal quando elegem alguém para receber o papado, porque lei alguma é feita na realização desse ato e, portanto, os eleitores não precisam de jurisdição, isto é, do direito de legislar; precisam apenas desfrutar de um direito de voz ativa a fim de proceder a uma designação válida e legal.
Pode-se fazer uma analogia quanto ao caso da alma humana. A alma é ordenada a atos especificamente diferentes, por exemplo, atos da vida vegetativa, da vida sensitiva e da vida racional. Pode ocorrer que, devido à inaptidão ou indisposição da matéria (por exemplo, um grave ferimento na cabeça), a alma realize apenas atos da vida vegetativa, de modo que o corpo permaneça vivo e potencialmente capaz de realizar atos mais elevados quando a matéria estiver apta. Se, no entanto, a matéria se tornar completamente inapta a sustentar até mesmo a vida puramente vegetativa, sobrevém a morte. Da mesma maneira, analogamente, a Igreja pode preservar a “vida vegetativa” da hierarquia e, ao mesmo tempo, não preservar a “vida legislativa” ou a vida que visa aos fins da Igreja (ao menos por parte da hierarquia). Esse estado de coisas não decorre de uma falha da parte de Cristo, mas de uma falha da parte de homens defeituosos, como aqueles nomeados à recepção da autoridade. Isso é permitido por Cristo, Chefe da Igreja, e é “admirável aos nossos olhos”. Entretanto, todo mal permitido por Deus conduz ao bem.
Os fins da Igreja continuam a ser perseguidos por padres e bispos que não sucumbiram à heresia, com uma jurisdição que não é habitual, mas meramente transitória, quando realizam atos sacramentais.
15. O direito de eleger não é nem jurisdição nem autoridade. O direito de eleger uma pessoa que receberá a autoridade não é autoridade nem jurisdição porque aqueles que possuem esse direito não necessariamente possuem o direito de legislar. Por exemplo, em um estado, os cidadãos têm o direito de eleger, mas não têm o direito de legislar; podem somente eleger a pessoa que receberá a autoridade. O objeto do direito de eleger não é fazer uma lei, mas sim designar uma pessoa. É por isso que o direito de eleger continua enquanto houver a intenção habitual de designar uma pessoa para receber a autoridade ou enquanto esse direito não for suprimido pela autoridade. O direito de eleger é ordenado a um ato especificamente distinto daquele ao qual a jurisdição ou autoridade é ordenada. A autoridade é ordenada a formular leis que são ordens para promover os fins próprios da sociedade em si. O direito de eleger, por outro lado, não é ordenado diretamente à promoção dos fins próprios da sociedade, mas apenas para prover um sujeito capaz de receber essa autoridade. O objeto de um é simpliciter distinto do objeto do outro, e o direito de eleger não implica absolutamente em seu conceito formal a posse do direito de legislar, assim como a eleição em si não implica em seu conceito formal a posse de autoridade.
É verdade que, em termos concretos, esses dois direitos são frequentemente observados na mesma pessoa, por exemplo, em um cardeal ou um papa. Mas esses dois acidentes (o direito de eleger e o direito de promulgar uma lei, ou a eleição e a posse de autoridade) não são necessariamente encontrados reunidos na mesma pessoa porque seu objeto é diferente. Como dito acima, o objeto do direito de eleger é a designação da pessoa que deve receber a autoridade, e o objeto do direito de legislar é a própria lei, ou a ordem da razão com vistas à promoção do bem comum. O ato ou exercício do direito de eleger é a eleição; o ato ou exercício do direito de legislar é a criação de leis. Uma vez que esses direitos têm objetos simpliciter diferentes, há duas faculdades morais simpliciter diferentes. Essa distinção resolve a dificuldade que alguns objetam: é impossível que um conclave composto de cardeais heréticos, e portanto privados de jurisdição, eleja um que seja ordenado a receber a plenitude da jurisdição (7).
16. O direito de legislar provém imediatamente de Deus, o direito de designar provém de Deus apenas mediatamente; ele provém imediatamente da Igreja. O direito de legislar, isto é, de ensinar, governar e santificar a Igreja, provém de Deus. Essa é a autoridade propriamente dita, a autoridade de Cristo, da qual o Papa participa como vigário. Por outro lado, o direito de designar a pessoa que deve receber a autoridade provém de Deus de maneira mediata e imediata da Igreja. Isso é evidente: quando um papa morre, o direito de designar um sucessor não morre com ele! O detentor legal desse direito de nomeação é o corpo de eleitores ou conclave. Por essa razão, o conclave ou corpo de eleitores pode transmitir o direito de designação até mesmo a um papa material, isto é, alguém designado ao papado sem possuir autoridade papal, de modo que esse papa material possa nomear legalmente outros eleitores e, assim, manter perpetuamente o corpo legal de eleitores. Em outras palavras, todas essas considerações dizem respeito à linhagem material. Esse princípio é de extrema importância, pois aqueles que criticam a Tese não entendem como alguém que não tem autoridade papal pode nomear cardeais ou eleitores capazes de eleger legal e legitimamente aquele que receberá a autoridade. Pensam equivocadamente que o direito de nomear eleitores é também o direito de legislar, e assim unem o que deveria ser considerado separado. Esse direito de designar que se encontra em Paulo VI ou João Paulo II não os torna papas, pois neles falta a autoridade ou o direito de legislar. Portanto, não são papas, senão materialiter. No entanto, podem designar eleitores e até mesmo bispos com o propósito de suceder às sés de autoridade, e também podem alterar validamente as regras de eleição, especialmente se essas alterações forem aceitas pelo conclave.
IV. A união dos dois elementos da autoridade
17. Vacantis Apostolicæ sedis de Pio XII. Esse documento declara: “Após a eleição ter sido canonicamente finalizada, o último Cardeal Diácono convoca o Secretário do Sacro Colégio, o Prefeito de Cerimônias Apostólicas e dois Mestres de Cerimônias para a Sala do Conclave. Em seguida, o consentimento da pessoa eleita deve ser solicitado pelo Cardeal Decano, em nome do Sacro Colégio, com os seguintes dizeres: ‘Vós aceitais a eleição que acaba de ser feita canonicamente de vós como Sumo Pontífice?’. Esse consentimento sendo dado dentro de um período de tempo que, na medida em que for necessário, deve ser determinado pelo sábio julgamento dos cardeais por uma maioria de votos, a pessoa eleita é imediatamente verdadeiro papa e, por esse mesmo fato, adquire e pode exercer jurisdição plena e absoluta sobre todo o orbe” (§ 100 e 101).
É claro, portanto, que uma vez que o consentimento à eleição tenha sido expresso, a pessoa eleita torna-se papa. É por isso que a união da matéria e da forma do papado é imediata. Mas então, como alguém pode permanecer papa apenas materialiter após ter expresso seu próprio consentimento à eleição? Resposta: porque a matéria e a forma não podem se unir se a matéria não tiver as proporções corretas com a forma, e isso ocorre de dois modos: pela ordem natural entre a matéria e a forma e pela remoção de qualquer impedimento. Portanto, aquele que foi legalmente eleito ao papado recebe a parte da autoridade que é apto a receber, ou seja, aquela parte à qual não apresenta nenhum impedimento. Portanto, é possível que uma pessoa receba o direito de designação, que diz respeito à sucessão legítima e à permanência da vida corpórea da Igreja, e ao mesmo tempo não receba a autoridade propriamente dita, isto é, o direito de legislar, que diz respeito à legislação e ao governo da Igreja. Ora, como dissemos anteriormente, a intenção de promulgar erros ou leis disciplinares más impõe à pessoa eleita um impedimento à recepção da forma da autoridade, e isso, mesmo que tenha dado seu consentimento à eleição, permanecerá somente eleito enquanto não remover o impedimento.
V. A possibilidade de separar matéria e autoridade
18. Nos entes per accidens, a matéria e a forma podem ser separadas. Nos entes per se, por exemplo, um homem, é impossível que a pessoa sobreviva se a matéria e a forma forem separadas. A matéria não pode existir em ato sem a forma substancial. Nos entes per accidens, ou seja, nos entes que resultam da união de uma forma acidental com uma substância (que analogamente se torna matéria em relação ao acidente), a matéria e a forma podem ser separadas sem que haja qualquer corrupção do supósito, como um homem branco, um filólogo ou um músico.
Ora, o papa, enquanto papa, é um ente “per accidens” porque é um agregado de diversos entes, isto é, de um homem, por um lado, e de diversos acidentes, por outro. Desses diversos acidentes, alguns são puramente dispositivos, como a ordenação sacerdotal, a consagração episcopal, etc., mas apenas um é formal e pelo qual um determinado homem é chamado papa simpliciter, e esse acidente é o direito de legislar ou autoridade ou jurisdição.
O homem que tem a disposição para receber a autoridade é uma substância que possui todas as perfeições necessárias para receber a forma da autoridade; dessas perfeições, a última e, com efeito, a perfeição sine qua non, é a designação legal à recepção da autoridade. A pessoa assim designada pode receber a autoridade imediatamente ou após um certo lapso de tempo. Se não receber a autoridade imediatamente, continuará sendo a matéria última da autoridade, o homem eleito ou designado, mas não tem jurisdição, não tem o direito de legislar ou de conduzir a comunidade rumo aos fins que lhe são próprios.
Um ótimo exemplo é o presidente dos Estados Unidos da América. Ele é legalmente designado em novembro, mas não recebe autoridade até 20 de janeiro do ano seguinte. No período entre a eleição e a aquisição da autoridade, não é presidente porque não tem o poder, mas não é simpliciter não presidente, porque recebeu a designação legal. Ele é presidente materialmente (materialiter). Se essa pessoa eleita nunca fosse à Washington para receber a autoridade, permaneceria presidente materialmente enquanto o Congresso não removesse a designação. É difícil imaginar a mesma situação no caso do Romano Pontífice, uma vez que o costume e a lei estabelecem que este recebe imediatamente a jurisdição papal no próprio ato de aceitar a designação. Mas também pode ocorrer que uma determinada pessoa, mesmo que legalmente designada e tendo aceitado a designação, não receba a jurisdição porque falta uma disposição necessária, por exemplo, a intenção de receber a consagração episcopal se ainda não for bispo, ou o uso da razão se for insano. Nesse caso, o homem eleito seria designado ao papado, mas não seria verdadeiro papa; seria papa apenas materialiter até consentir com a consagração episcopal ou se recuperar de sua loucura.
A designação à recepção da autoridade e a própria autoridade são, portanto, dois acidentes que podem ser observados em um único sujeito e, como fazem parte da ordem acidental, são apenas por analogia, respectivamente, acidente material e acidente formal em relação ao papa (8).
Um homem que tem em si o primeiro acidente, isto é, a designação, torna-se automaticamente a matéria próxima da autoridade ou é autoridade (no sentido concreto) materialiter. Desse modo, se um leigo fosse designado ao papado, mas recusasse a consagração episcopal, seria papa materialiter até que um conclave retirasse sua designação.
Como a designação à autoridade é realmente distinta da própria autoridade (considerada formalmente), a designação pode existir em um determinado sujeito sem a autoridade, como foi dito acima. De maneira semelhante, os pais geram a matéria que está prestes a receber uma forma humana, mas não são eles que infundem a forma mesma. Paralelamente, os eleitores proporcionam a matéria próxima do papado ou de um chefe da sociedade, mas não fornecem a autoridade. Se a matéria gerada pelos pais não tiver, por uma razão ou outra, a disposição de receber a forma humana, ela não se tornará um homem, mas será expulsa do corpo da mulher. Portanto, se os eleitores fornecem uma matéria da autoridade, mas por uma razão ou outra ela não tem a disposição para receber a forma da autoridade, ela não se torna um papa, mas é expulsa, isto é, os eleitores lhe retiram a designação. Ademais, por analogia, assim como a mulher que não expulsa o feto não disposto à forma humana é acometida de infecção, assim também a Igreja ou a sociedade que não expulsa a matéria não disposta à autoridade é infectada pelo mal da confusão devido à ausência de autoridade. Além disso, se a causa da falta de disposição à autoridade é a vontade de promulgar a heresia, então as instituições da Igreja definham no ambiente fétido da heresia por causa da aparência de autoridade daquele que foi eleito.
VI. As causas que impedem a união entre matéria e forma da autoridade
19. Como dito mais acima, o sujeito da autoridade, isto é, a pessoa designada, não pode receber a autoridade para a qual foi designada se apresentar obstáculos voluntários. O que são esses obstáculos voluntários?
Resposta: qualquer coisa que impeça a pessoa designada de promover habitualmente o bem comum.
O caso do Romano Pontífice é bastante particular porque o bem que deve promover é muito mais elevado que o bem da sociedade civil. O bem da Igreja consiste em buscar os fins que o próprio Cristo impôs a ela e continua a desejar para ela. Esses fins são três e correspondem às três funções de Cristo:
1) Promover a verdade de maneira indefectível e infalível, como Cristo é Profeta.
2) Oferecer o único e verdadeiro sacrifício ao único e verdadeiro Deus e administrar os verdadeiros sacramentos, pois Cristo é Sumo Sacerdote.
3) Estabelecer infalivelmente leis que conduzam infalivelmente à vida eterna, na medida em que Cristo é Rei.
Portanto, quem quer que tenha ou impeça uma dessas três funções essenciais de Cristo e da Igreja não pode receber autoridade de Cristo ou da Igreja, uma vez que a autoridade, como vimos anteriormente, é necessária e essencialmente ordenada ao bem comum, à busca dos fins próprios da sociedade.
Desse modo, quem quer que tenha a intenção:
1) de promulgar o erro
2) promulgar o uso de um falso culto ou o culto a um falso Deus ou o não uso do verdadeiro culto, ou
3) de promulgar leis más, ainda que validamente designado, não poderia receber autoridade. Pretender realizar essas coisas é desejar a ruína da Igreja e sua completa aniquilação. Pois a Igreja é a coluna da verdade por instituição de Cristo, e quem quer que pretenda promulgar o erro em seu nome, tanto em questões teóricas quanto práticas, viola sua natureza. Cristo é o chefe supremo da Igreja e a autoridade do Papa é a autoridade de Cristo. Portanto: a intenção de promulgar o erro destrói completamente a proporção entre a autoridade de Cristo e a autoridade designada. Entretanto, a intenção de tumultuar a Igreja disseminando erros não é a única razão pela qual uma pessoa não pode receber a autoridade papal. No exemplo dado acima, Pio XII declarou que um leigo que tenha sido eleito ao pontificado não pode aceitar a eleição até que tenha consentido em receber a ordenação. A razão é óbvia: quem não quiser ser padre implicitamente não quer e, portanto, não pode receber a autoridade sacerdotal; tampouco pode ser uma imagem de Cristo, Sumo Sacerdote, e, portanto, não pode cumprir a função essencial do papado. O mesmo se aplica às outras funções: aquele que pretende difundir uma falsa doutrina não pode cumprir o ofício de Cristo, Verdade Suprema; aquele que pretende estabelecer um falso culto não pode cumprir o ofício de Cristo, Sumo Sacerdote; aquele que pretende promulgar leis más não pode cumprir o ofício de Cristo, Rei.
Como Cristo, seu Mestre, a Igreja deve ser para todos os homens o caminho, a verdade e a vida, na medida em que ela infalivelmente governa, ensina e santifica. Mas se a autoridade da Igreja promulga o erro, a Igreja não pode ser nem caminho, nem verdade, nem vida a ninguém (9).
APÊNDICE I. A distinção entre um fato real e o reconhecimento legal de um fato real
20. Antes de proceder à exposição da Tese, é necessário explicar outra distinção de grande importância, a saber, a distinção entre um fato real e o reconhecimento legal de um fato real.
Toda sociedade é uma pessoa moral e, por analogia com uma pessoa física, uma sociedade tem sua própria inteligência e sua própria vontade. Portanto, pode ocorrer, e frequentemente acontece, que um fato seja verdadeiro no sentido real e até mesmo absolutamente óbvio, mas que, apesar disso, não seja reconhecido como tal pela sociedade.
Por exemplo, alguém pode cometer um homicídio na presença de diversas testemunhas. Mesmo que as testemunhas saibam que ele é um assassino, a lei ainda o considera inocente até que seja condenado por um tribunal. Em outras palavras: aos olhos da sociedade, um indivíduo não é um assassino até que seja condenado, mesmo que as testemunhas tenham certeza absoluta de que ele é um assassino e que de fato o é.
Outro exemplo: em um casamento, um dos cônjuges simula o consentimento. Nesse caso, aos olhos de Deus e na realidade, o vínculo matrimonial não existe, mas aos olhos da Igreja, o casamento é válido até que se prove que o consentimento foi simulado. Se um sacerdote, por meio da confissão de um dos cônjuges, vier a saber que o consentimento foi simulado, deve proibir os cônjuges de usufruir do matrimônio, pois perante Deus o vínculo não existe, mesmo que perante a Igreja o vínculo exista, desde que não seja declarado nulo por declaração legal. Um outro exemplo: durante a ordenação, um sacerdote secretamente retira sua intenção de receber o sacramento da ordem. Legalmente, aos olhos da Igreja, deixa a ordenação como se fosse um sacerdote, embora aos olhos de Deus e na realidade não seja um sacerdote. Se, posteriormente, desejar demonstrar a nulidade do sacramento, continuará sendo legalmente um sacerdote, desde que a nulidade não tenha sido comprovada na forma exigida.
Por causa dessa distinção entre um “fato real” e um “fato legal”, a Igreja e qualquer outra sociedade se distinguem de uma massa de homens.
Ademais, essa distinção é confirmada no caso de Nestório, em que, depois que expressou sua heresia em sua catedral em 428, o clero e o povo romperam a comunhão e se recusaram a obedecê-lo. Apesar disso, continuou a ocupar a sé, como legalmente designado, até ser legalmente deposto pelo Concílio de Éfeso em 431. Se o reconhecimento legal de seu crime não fosse necessário, o papa teria nomeado outra autoridade eleita em seu lugar antes do juízo do Concílio.
Nosso problema atual — que é verdadeiramente terrível — consiste no fato de que todas as sés de autoridade, ao menos aparentemente, ensinam como magistério os erros do Concílio Vaticano II e todos os eleitores do Papa partilham os erros do Vaticano II, de sorte que não há ninguém que possa reconhecer ou constatar legalmente o fato do erro no magistério e, consequentemente, a ausência de autoridade naqueles que o promulgam.
Perante esse estado de coisas, que nunca ocorreu antes na história da Igreja, os fiéis devem, por um lado, proteger-se, assim como os fiéis de Constantinopla tiveram que se proteger de Nestório, rompendo a comunhão com aqueles que promulgam o erro e recusando-se a reconhecer que eles possuem autoridade, mas, por outro lado, devem observar a qualidade legal da Igreja pela qual alguém continua a permanecer na sé e no cargo enquanto não for removido pela lei.
Por essas razões, a Tese que venho demonstrando oferece uma explicação perfeita do problema atual e uma posição verdadeiramente católica, pois, por um lado, mantém a indefectibilidade da Igreja e a infalibilidade de seu magistério, recusando-se a reconhecer a autoridade de Cristo naqueles que propagam erros, mas, por outro lado, mantém a apostolicidade e a unidade da Igreja como um único corpo moral, reconhecendo a designação legal daqueles legalmente designados aos cargos eclesiásticos, desde que não lhes seja retirada pela autoridade competente.
TERCEIRA SEÇÃO:
EXPOSIÇÃO E DEMONSTRAÇÃO DA TESE
RESPOSTA ÀS OBJEÇÕES
21. Exposição e demonstração da Tese.
TESE: Aquele que foi eleito ao papado por um conclave legalmente convocado e na forma requerida, mas que tenciona ensinar o erro ou promulgar leis más, não pode receber a autoridade papal até que se arrependa e rejeite o erro ou as leis más. Em outras palavras, não é Papa formalmente; mas permanece validamente designado a receber o poder papal, isto é, é Papa materialmente até sua morte ou até que renuncie ou até que um conclave legal ou outra autoridade competente verifique que a sé está vacante.
Prova da primeira parte:
Maior: A autoridade papal não é conferida por Deus a uma pessoa que, mesmo que designada validamente, apresenta um impedimento à recepção da autoridade papal.
Menor: Ora, aquele que tenciona ensinar o erro ou promulgar leis más apresenta um impedimento à recepção da autoridade papal.
Conclusão: A autoridade papal não é, portanto, conferida por Deus a uma pessoa validamente designada que tenha a intenção de ensinar erros ou promulgar leis más.
Prova da maior: Do que foi dito acima. A autoridade considerada concretamente é composta da união de duas partes, uma material e outra formal. Essa união não pode ser alcançada se houver um impedimento, por analogia com os elementos naturais.
Prova da menor: A condição sine qua non para receber a autoridade é que aquele que a recebe tenha a intenção de promover o bem comum da comunidade da qual é o chefe. Ora, o bem comum da Igreja é ensinar aos homens a verdade, conduzi-los ao céu pelo caminho reto e santificá-los por meio dos sacramentos verdadeiros e válidos. A autoridade da Igreja é, portanto, essencialmente ordenada a ensinar aos homens a verdade, a conduzi-los ao céu pelo caminho certo e a santificá-los por meio dos sacramentos verdadeiros e válidos. Portanto, aqueles que não operam rumo a esses fins apresentam um impedimento à recepção da autoridade.
Prova da segunda parte:
Maior: A designação legal ao papado só pode ser perdida de três maneiras: 1) pela morte do sujeito; 2) pela recusa ou renúncia voluntária do sujeito ou 3) pela privação da designação do sujeito por parte da autoridade competente.
Menor: Ora, aquele que é eleito por um conclave legalmente convocado conforme as formas requeridas, mas que tenciona ensinar o erro ou promulgar leis más (como João Paulo II), não morreu, não recusou ou renunciou voluntariamente à designação, não foi privado [da designação] pela autoridade competente.
Conclusão: Portanto, alguém que tenha sido eleito por um conclave legalmente convocado conforme as formas requeridas, mas que tenciona ensinar o erro ou promulgar leis más (como João Paulo II), não perdeu sua designação legal ao papado.
Prova da maior: Do Direito Canônico (Cânon 183 § 1): Nem a transferência nem a expiração do período fixado pelo ato de provisão se aplicam ao papado.
Prova da menor: Dos fatos. João Paulo II 1) está vivo, 2) aceitou a designação do Conclave e nunca a renunciou, 3) não foi privado [da designação] pela autoridade competente.
22. RESPOSTA ÀS OBJEÇÕES
Objeções à primeira parte da Tese
I. É errônea a tese que atribui aos fiéis o direito de acusar o eleito ao papado de não desejar o bem da Igreja, pois esse direito pertence somente à autoridade competente.
Ora, a Tese atribui aos fiéis o direito de acusar alguém eleito ao papado de não tencionar fazer o bem da Igreja. Portanto, a tese é errônea.
Resposta: Distingo a maior: Não cabe aos fiéis, mas à autoridade competente, acusar legalmente alguém que foi eleito ao papado de não tencionar fazer o bem da Igreja. Eu concedo. Não cabe aos fiéis, mas à autoridade competente, acusar, como pessoa privada, alguém que foi eleito ao papado de não tencionar fazer o bem da Igreja. Eu nego. E contra-distingo a menor: a Tese alega que os fiéis acusam legalmente a pessoa eleita ao papado de não querer fazer o bem da Igreja, nego; como pessoa privada, concedo. E nego a conclusão. Os fiéis não têm o direito de condenar legalmente um eleito ao papado, mas somente a possibilidade de fazer um juízo particular, comparando as inovações do Concílio Vaticano II com o magistério e a práxis precedentes. A razão para isso é que os fiéis não podem dar seu assentimento a princípios contraditórios. Uma vez que o magistério do Concílio Vaticano II contradiz o magistério anterior, os fiéis não podem deixar de acusar, por juízo particular, aquele que promulga esse “magistério”, como os fiéis de Constantinopla acusaram Nestório.
II. É errônea a tese que atribui aos fiéis o direito de examinar por juízo particular os atos e o magistério de um concílio geral ou do papa, tendo até mesmo um caráter protestante. Ora, na Tese que o vós sustentais, os fiéis examinam por juízo particular os atos e o magistério de um concílio geral ou do papa. Portanto, a Tese é errônea e tem um caráter protestante.
Resposta: Distingo a maior: os fiéis não têm o direito de examinar por juízo particular os atos e o magistério de um concílio geral ou do Papa, na medida em que eles (os fiéis) não podem dar seu assentimento ao magistério da Igreja. Eu concedo. Na medida em que não podem comparar o magistério com o magistério anterior, eu nego. E contra-distingo a menor e nego a conclusão. Os fiéis, de fato, devem fazer a comparação, porque a Fé Católica é uma só e todas as suas verdades são coerentes entre si. A verdade natural tampouco pode tolerar a contradição, porque é inconcebível; e a contradição é ainda mais repugnante à verdade sobrenatural e ao habitus sobrenatural com o qual damos nosso assentimento a essas verdades.
III. Se houver uma contradição entre o magistério do Vaticano II e o magistério anterior, os fiéis devem presumir que a contradição é apenas aparente e não real. Mas, segundo a vossa Tese, os fiéis não têm essa presunção. Portanto, a Tese é errônea.
Resposta: Nego a maior porque é absurda. É metafisicamente impossível dar assentimento a duas normas dogmáticas contraditórias entre si. Por isso, os fiéis não podem dar seu assentimento ao magistério do Concílio Vaticano II e, simultaneamente, aprovar o magistério anterior, porque se contradizem. Portanto, para que os fiéis dêem seu assentimento a ambos os magistérios simultaneamente, teriam que interpretar um ou outro ato magisterial com seu juízo particular para que se tornem coerentes. Mas, dessa maneira, a própria noção de magistério é destruída, pois os fiéis, ao se basearem em seu próprio juízo, perdem o motivo sobrenatural da adesão ao magistério. Ademais, cada um dos fiéis daria sua própria interpretação e facilmente cairia em erro. Mais ainda, os fiéis não podem recorrer a seu juízo pessoal para estabelecer se uma contradição no magistério é aparente ou real, mas têm apenas um dever com relação à contradição: aderir ao magistério antecedente e rejeitar a doutrina que o contradiz. A interpretação do magistério é uma questão exclusiva do magistério, não dos fiéis.
IV. Aqueles que aceitam a Tese, e os sedevacantistas em geral, são semelhantes aos “Vétero Católicos” que acusaram o Concílio Vaticano I de se distanciar da tradição da Igreja ao promulgar a doutrina da infalibilidade pontifícia.
Resposta: Não há qualquer analogia entre os Vétero Católicos e os católicos que hoje rejeitam os erros do Concílio Vaticano II. A razão é que ninguém pode encontrar no magistério da Igreja a condenação da infalibilidade pontifícia. Se os Vétero Católicos pudessem encontrar no magistério anterior que a doutrina da infalibilidade do Pontífice é chamada de “delírio” ou condenada como “doutrina perversa” ou “reprovada, proscrita e condenada” pela autoridade apostólica do Papa precedente, então teriam corretamente rejeitado essa doutrina nova e contraditória. Com essas palavras, Pio IX condenou a doutrina da liberdade religiosa. É óbvio que essas palavras nunca foram proferidas com referência ao dogma da infalibilidade pontifícia. Portanto, a comparação não procede.
V. Aqueles que aceitam a Tese e os sedevacantistas em geral são semelhantes aos seguidores do Padre Feeney, que interpretou a seu modo a doutrina de que não há salvação fora da Igreja.
Resposta: Ao contrário, aqueles que dão uma interpretação benevolente ao Concílio Vaticano II são semelhantes ao Padre Feeney: não procuram interpretar o Concílio Vaticano II segundo o magistério daqueles que o promulgaram, mas dão a ele uma interpretação própria que difere daquela dada pelo “magistério” de Paulo VI e João Paulo II. Interpretar, com efeito, nada mais é do que descobrir o pensamento ou a intenção do autor. Mas o autor do magistério é aquele que ensina. Portanto, João Paulo II é o intérprete autêntico do magistério do Concílio Vaticano II. Caso contrário, quando a Igreja promulgasse um documento, os fiéis cairiam em uma interpretação pessoal do magistério e cada um adotaria sua própria interpretação de acordo com sua opinião pessoal. Ao contrário, somente o magistério é o intérprete autêntico do magistério e a Igreja discente não tem o direito de interpretá-lo à sua própria maneira. Ademais, a interpretação de João Paulo II do magistério do Concílio Vaticano II é heterodoxa não apenas em palavras, mas também em atos. Portanto, é justamente por isso que os Católicos rejeitam esse magistério.
Objeções à segunda parte da Tese
VI. O Cânon 188 § 4 estabelece que qualquer pessoa que defeccione publicamente da fé católica renuncia tacitamente ao seu cargo. Ora, os “papas conciliares” defeccionaram publicamente da fé católica. Portanto, renunciaram tacitamente ao seu cargo. Portanto, não são papas nem formal nem materialmente.
Resposta: Distingo a maior: o Cânon 188 § 4 diz que aquele que defeccionou publicamente da Fé Católica renuncia tacitamente ao seu cargo, se sua imputabilidade for pública, eu concedo; porém, se for oculta, eu nego. A razão para isso é que a defecção da fé deve ser legalmente constatada, o que ocorre por uma declaração ou por notoriedade. Mas a notoriedade requer não apenas que o fato do delito seja publicamente conhecido, mas também que sua imputabilidade seja conhecida (Cânon 2197). Ora, no caso de defecção da Fé católica, seja por heresia ou cisma, é necessário que a defecção seja pertinaz para que seja imputável. Caso contrário, a lei tornar-se-ia absurda: qualquer sacerdote que inadvertidamente expressasse heresia em uma homilia seria culpado de heresia notória, com todas as penalidades inerentes, e renunciaria tacitamente ao seu cargo. Ora, a defecção da fé católica por parte dos “papas conciliares”, embora pública quanto ao fato, não é pública quanto à imputabilidade. Portanto, não há renúncia tácita. O que é público é a intenção desses “papas” de promulgar erros condenados pelo magistério eclesiástico e uma práxis sacramental que é herética e blasfema. Diante dessa situação, devemos concluir que necessariamente não possuem autoridade apostólica, nem mais nem menos. Nem mais, pois somente a autoridade competente pode verificar e declarar legalmente a realidade de sua defecção da Fé católica; nem menos, pois é impossível que a autoridade apostólica, por causa da infalibilidade e indefectibilidade da Igreja, promulgue erros que foram condenados pelo magistério eclesiástico e uma práxis sacramental que é herética e blasfema.
Instância: Mas o Cânon 188 afirma que a renúncia não requer uma declaração.
Resposta: Não requer uma declaração de vacância do cargo, se a defecção imputável for notória ou declarada por lei, eu concedo; se a defecção for notoriamente imputável ou declarada, eu nego. Em outras palavras, é necessário que a defecção pública da Fé católica tenha algum reconhecimento legal, seja por notoriedade de imputabilidade ou por declaração legal.
Instância: Mas a imputabilidade da defecção desses “papas” é notória.
Resposta: eu nego. Para que a imputabilidade seja notória, é necessário que 1) aquele que expressou a heresia reconheça publicamente que professa uma doutrina contrária ao magistério da Igreja, como fez Lutero; ou que 2) depois de ter sido admoestado pela autoridade eclesiástica, rechace publicamente a dita autoridade. Nenhuma dessas condições é satisfeita pelos “papas conciliares”. Portanto, a imputabilidade da defecção
não é notória.
Instância: Mas o Cânon 2200 presume a imputabilidade se o fato do delito tiver sido provado.
Resposta: distingo: ele presume a imputabilidade quando houve uma violação externa da lei, eu concedo; presume a imputabilidade quando não houve uma violação externa da lei, eu nego. No caso da defecção da Fé católica, a violação da lei implica pertinácia; se não houver pertinácia, a lei não é violada. Portanto, onde a pertinácia não é notória nem declarada pela lei, o Cânon 2200 não pode ser aplicado. Penso, no entanto, que não há contradição real entre aqueles que sustentam o Cânon 188 e aqueles que sustentam a Tese: todos estão de acordo que João Paulo II não possui o cargo do papado, uma vez que possuir o cargo é a mesma coisa que gozar de autoridade ou jurisdição. A Tese ensina que João Paulo II mantém o direito ao papado (jus in papatu), isto é, mantém uma designação legal ao papado. Ora, a designação ao cargo não é a posse do cargo. Portanto, não há incompatibilidade entre as duas argumentações. No entanto, os partidários do Cânon 188 devem ter cuidado, uma vez que [logicamente] seu argumento implica que 1) João Paulo II foi legalmente eleito ao papado; 2) que ao menos por um período de tempo teve posse do papado legitimamente e com plenitude [!], visto que ninguém pode renunciar a um cargo se não o possuía antes; 3) que João Paulo II, como pleno detentor do papado, está acima do direito canônico e, portanto, esse Cânon não pode ser aplicado a ele. A Tese, em verdade, não se limita ao direito canônico e se baseia em noções filosóficas de autoridade que podem ser aplicadas até mesmo à autoridade suprema do Pontífice Romano.
VII. É impossível que a matéria exista sem a forma. Ora, na Tese, a matéria do papa existe sem a forma do papa. Portanto, a Tese é errônea.
Resposta: Distingo a maior. É impossível que a matéria exista sem a forma, ou seja, que a matéria prima exista em ato sem a forma substancial, eu concedo; que um ente per se [não acidental] não possa existir sem seus próprios acidentes, eu nego. A substância é material somente por analogia relativamente aos acidentes que lhe são próprios, os quais, por sua vez, são formais somente por analogia relativamente à substância, na medida em que são suas perfeições.
Da definição de acidente, podemos deduzir claramente que a substância pode subsistir sem acidente. Como foi dito anteriormente, um papa, enquanto papa, é um simples ente per accidens; portanto, composto de matéria e forma apenas lato sensu e somente por analogia a um ente per se. A designação ao cargo do papado gera um direito naquele que possui essa designação; ademais, a própria autoridade é um direito, e tudo isso não são acidentes. É absolutamente claro que um homem pode existir sem esses acidentes e pode possuir a designação sem também possuir a autoridade.
VIII. Se os eleitores não têm o direito de eleger um papa, então a pessoa eleita por eles não é realmente designada ao papado. Os eleitores dos “papas conciliares” não têm o direito de eleger porque são hereges. Portanto, a pessoa eleita por eles não é verdadeiramente designada ao papado.
Resposta: Concedo a maior. Nego a menor e a conclusão. Os eleitores dos “papas” do Concílio, a saber, Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II, têm o direito de eleger, uma vez que não perderam esse direito devido à heresia por diversas razões: 1) sua defecção da Fé católica não é declarada nem notória pela razão acima exposta (Objeção VI). Portanto, não há renúncia tácita nem censura; 2) o direito de eleger não é jurisdicional. Não é um direito de legislar. Não é um cargo. É uma faculdade puramente moral de designar legalmente a pessoa que deve receber a autoridade suprema. Portanto, para possuir e exercer esse direito, nada mais é necessário, exceto que alguém seja legalmente designado por quem quer que tenha o direito legal de designar os eleitores do papa. A posse de autoridade, isto é, o direito de legislar, exige que o detentor tenha a intenção de dirigir a Igreja a seus fins próprios; a posse do direito de designação, por outro lado, exige apenas que o detentor tenha o bem da continuidade da hierarquia da Igreja. Entretanto, os atuais eleitores, mesmo que em geral favoráveis ao Concílio Vaticano II e ao Novus Ordo, visam objetivamente a continuidade da hierarquia eclesiástica. Portanto, possuem válida e legalmente o direito de designar, e a pessoa eleita foi válida e legalmente eleita e possui um direito legal ao papado.
IX. Aquele que recebe o direito de eleger de um não-papa não possui o direito válido e legal de eleger um verdadeiro papa. Ora, os eleitores dos “papas do concílio” são eleitores designados por um não-papa. Portanto, não possuem o direito válido e legal de eleger um verdadeiro papa.
Resposta: Distingo a maior. Aquele que recebe o direito de eleger o papa daquele que também não é papa materialmente, eu concedo; daquele que não é papa apenas formalmente, eu nego. Contra-distingo a menor e nego a conclusão. A razão é que, como disse anteriormente, a autoridade tem um duplo objeto: um, que diz respeito ao fato de legislar, e o outro, que diz respeito à continuidade do corpo da Igreja. Propriamente falando, a autoridade, que é o direito de legislar, concerne ao primeiro objeto e provém diretamente de Deus; ao contrário, o direito de designar, que propriamente falando não é autoridade, concerne ao outro objeto e provém da Igreja. Ora, aquele que foi eleito ao papado recebe autoridade em si mesmo imediatamente após ter aceitado a eleição, desde que não apresente nenhum obstáculo à recepção da autoridade, como disse anteriormente. Portanto, pode ocorrer que o eleito ao papado receba em si o direito de designar, que diz respeito à continuidade do corpo da Igreja, mas não receba a autoridade que diz respeito à promulgação de leis; nesse caso, o papa eleito (isto é, papa apenas materialmente) designará válida e legalmente os eleitores dos papas, mas não poderá válida e legalmente legislar. Esse é o caso dos “papas conciliares”, que designam válida e legalmente os eleitores dos papas, mesmo dos papas do Novus Ordo.
X. Aquele que não é membro da Igreja não pode ser seu chefe. Ora, “os papas do concílio” não são membros da Igreja. Portanto, não podem ser o chefe dela.
Resposta: Distingo a maior. Aquele que não é membro da Igreja não pode ser seu chefe formalmente, eu concedo; não pode ser seu chefe materialmente, eu nego. A razão é que ser chefe materialmente, como foi dito acima, implica apenas a designação à recepção do papado; mas a forma, que é a autoridade, exige que o designado seja membro da Igreja. Por exemplo, Santo Ambrósio foi designado ao episcopado de Milão quando ainda era catecúmeno (isto é, não era batizado e estava fora da Igreja). Se tivesse recusado o batismo, não poderia receber a autoridade, mas também teria permanecido como bispo eleito, desde que essa designação não lhe tivesse sido retirada. Mas, mesmo que alguém queira rejeitar esse argumento, será necessário distinguir a menor: os “papas do concílio” não são membros da Igreja diante de Deus e na realidade, eu o concedo como sendo apenas provável, uma vez que apenas provavelmente são obstinados na heresia; não são membros da Igreja diante da lei, eu nego: na medida em que sua pertinácia na heresia não é provada nem presumida pela lei. Toda a força da objeção depende da possibilidade de demonstrar sua pertinácia e, sem uma declaração da Igreja, isso é extremamente difícil. Ademais, se houvesse qualquer dúvida quanto à sua pertinácia ou imputabilidade, a presunção da lei seria a favor do acusado e a prova pereceria.
Instância: Mesmo os hereges que erram de boa fé não são membros da Igreja.
Resposta: Distingo: os hereges que nasceram em seitas não-católicas, que erram de boa Fé, não são membros da Igreja, eu concedo; mas os hereges que foram batizados na Igreja Católica, que erram de boa Fé, não são membros da Igreja, eu nego. Essa distinção é de suma importância e aqueles que não a fazem acabam em grande confusão. A razão é que aqueles que receberam o batismo são legalmente membros da Igreja, desde que não deixem de sê-lo 1) por heresia notória e pertinaz; 2) por cisma notório e pertinaz; 3) por apostasia notória e pertinaz; 4) por excomunhão. As três primeiras razões implicam a pertinácia, e é por isso que não servem para este argumento. A excomunhão pode ser tanto latæ sententiæ quanto declaratória. No primeiro caso, o argumento não é válido, uma vez que as censuras contra a heresia exigem imputabilidade notória (isto é, pertinência). Se, por outro lado, a excomunhão foi declarada, o argumento é válido. Se, por outro lado, a excomunhão não foi declarada, o argumento é inválido. Ora, a excomunhão não foi declarada, portanto o argumento é inválido. Aqueles que nasceram em seitas não-católicas, mesmo que tenham cometido erros de boa Fé, são legalmente presumidos como tendo errado obstinadamente e, portanto, estão legalmente fora da Igreja, embora possam ser membros da Igreja por desejo.
Instância: O Cânon 2200 § 2 presume a imputabilidade quando há uma violação externa da lei.
Resposta: É uma petitio principii (petição de princípio). Invocar o Cânon 2200 é um círculo vicioso, pois a violação da lei no caso de heresia requer pertinácia. Leiamos a lei (Cânon 1325 § 2): se alguém, após receber o batismo, mantendo o nome de cristão, pertinazmente nega ou duvida de uma das verdades a serem cridas da Fé divina e católica, este é um herege; se abandona completamente a Fé católica, é um apóstata; se finalmente nega a submissão ao Sumo Pontífice ou recusa a comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos, é um cismático. Portanto, não há violação externa da lei onde não há pertinácia externa. Mas mesmo se quisermos aplicar o Cânon 2200 § 2, a presunção de imputabilidade na violação da lei contra a heresia não tem valor sem uma declaração da Igreja, pois a presunção deve ceder diante dos fatos. De facto, porém, não é certo que esses “papas” sejam hereges obstinados, nem que haja uma autoridade ou tribunal competente capaz de declarar o fato da pertinácia. Toda a argumentação vacila em razão da dificuldade de provar ou mesmo presumir a pertinácia. Em outras palavras, quando a autoridade não existe ou deixa de operar, surge uma grande confusão e a certeza em questões legais se torna extremamente difícil, senão impossível. Esse discurso sempre termina em um discurso sobre a pertinácia desses “papas”, que é, em minha opinião, uma questão sem saída.
XI. A Tese é absurda porque afirma que alguém pode ser Papa e não ser Papa simultaneamente.
Resposta: aqueles que apresentam essa objeção não entendem a real distinção entre ato e potência, nem a distinção entre não-ente simpliciter e ente em potência. Sugerimos que consultem os manuais de filosofia aristotélico-tomista.
XII. A Tese não tem fundamento no Direito Canônico.
Resposta: nego. Se vós analisardes as questões relativas à vacância dos cargos eclesiásticos, encontrareis a distinção entre cargos que são vacantes 1) de jure e de facto; 2) de jure, mas não de facto; 3) de facto, mas não de jure. A Tese sustenta que o cargo do Papado está vacante de facto, mas não de jure, no seguinte sentido: João Paulo II de facto não possui o cargo do Papado, mas possui o direito ao Papado enquanto não houver declaração em contrário por uma autoridade competente (10). Em outras palavras, João Paulo II é o detentor legal do papado, mas não tem a posse do papado porque apresenta um obstáculo à recepção da autoridade.
APÊNDICE II. CONFIRMAÇÃO DA TESE PELOS ESCRITOS DE TOMMASO DE VIO, O.P. (CARDEAL CAETANO)

De Comparatione Auctoritatis Papæ et Concilii, c. XX (I).
[I. Confronto tra Autorità del Papa e Autorità del Concilio, Ed. Istituto Angelicum, Romæ 1936.]
Presumindo a certeza dos três pontos seguintes, a saber, que o Papa, pelo fato de ter se tornado herege, não é automaticamente deposto por direito humano ou divino, e que o Papa não tem superior na terra e que o Papa, se se desviar da Fé, deve ser deposto, como é dito no cap. Si Papa., XL D., uma grande incerteza permanece quanto a como e por quem o Papa a ser deposto deve ser julgado para ser efetivamente deposto, uma vez que um juiz enquanto tal é superior àquele que é julgado.
Por isso, o Apóstolo na epístola aos Romanos XIV, 4 diz: “Quem és tu para julgar o servo alheio? Se ele está de pé ou cai, isso é com o seu senhor”. E Santo Tomás na IIa IIæ, q. 67 declara que o juiz pode julgar somente o sujeito e como também é dito nas Decretais D. XXI, cap. Inferior.
Se, com efeito, o Papa deve ser julgado e deposto por um Concílio Universal, segue-se imediatamente que, permanecendo Papa, está acima do Concílio Universal, ao menos em caso de heresia. Se, por outro lado, nem o Concílio nem a Igreja estão acima do Papa, segue-se imediatamente que um Papa que se desvia da Fé deve ser julgado e deposto, e, no entanto, ninguém pode julgá-lo e depô-lo. E isso é absurdo.
Então, o que podemos dizer para evitar esses dois extremos? Não podemos fazer nada além de nos voltarmos para a via mediana, que é difícil de alcançar: na realização da qual consiste a virtude que normalmente soluciona muitas questões.
Portanto, dizemos que há duas vias extremas, ambas falsas. Uma é aquela segundo a qual um Papa que se tornou herege é deposto ipso facto por direito divino, sem julgamento humano: a outra é aquela segundo a qual o Papa, permanecendo Papa, possui acima de si um poder superior pelo qual pode ser deposto.
Mas a via mediana se divide em duas: uma diz que o Papa não tem absolutamente nenhum superior na terra, mas que, no caso de heresia, tem a Igreja universal como seu superior na terra; a outra diz que o Papa não tem um superior na terra, nem simpliciter nem em um caso particular, mas está sujeito ao poder ministerial da Igreja universal apenas no que diz respeito à destituição.
A primeira via baseia-se na força coercitiva e judicial da Igreja sobre Pedro, o Papa, no caso de heresia: com efeito, para ser julgado, é preciso submeter-se e ser coagido. Essa é a via comumente seguida, até onde pude observar até o momento.
Contra essa abordagem deve ser considerado o fato de que, como vimos, o Papa, por direito divino, está acima do Concílio e da Igreja; segue-se que, se em algum caso particular ele estiver sujeito a isso, essa exceção teria de ser estabelecida por direito divino. Com efeito, é evidente que nenhum outro direito inferior pode estabelecer essa exceção.
Ora, no direito divino, quando a exceção do caso de heresia é estabelecida, não falamos de submissão, mas de separação, como fica evidente em cada um dos textos da Sagrada Escritura referidos: Em Nm. XVI, 26 é dito: “Afastai-vos”; em Gl. I, 8: “Que seja anátema”, isto é: “que seja separado”; em 2Ts. III, 6: “Apartai-vos”; em 2Co. VI, 14: “Não vos sujeiteis ao mesmo jugo”; 2Jo. I, 10: “Não o recebais, nem o saudeis”; em Tt. III, 10: “Rejeite”. Em suma, não encontro em lugar algum que a lei divina fale de superioridade ou inferioridade no caso de heresia, mas apenas de separação. Com efeito, sabe-se que a Igreja pode se separar do Papa unicamente por meio desse poder ministerial com o qual ela pode elegê-lo. Portanto, uma vez que foi sancionado por direito divino que o herege seja evitado e seja um estranho à Igreja, não é necessário que haja um poder maior do que o poder ministerial: é por isso que ele é suficiente e se encontra na Igreja.
Para confirmar isso, é preciso observar que não se deve atribuir ao direito divino o que não se encontra nele ou não decorre necessariamente do que está expresso nele. Ora, no direito divino não há menção, no sentido estrito, de um poder sobre o Papa no caso de heresia, nem isso pode ser deduzido como uma consequência necessária do direito divino. Portanto, prova-se a menor: que não existe tal coisa, penso que isso é evidente para qualquer um que esteja lendo isto. Digo “penso” porque um cisma iminente me levou inesperadamente a escrever este opúsculo em dois meses.
E que, em verdade, também não pode ser deduzido [do direito divino], é evidente pelo fato de que, como não é conveniente multiplicar os entes sem necessidade, é preferível estabelecer um princípio a estabelecer vários. Uma vez que o poder ministerial é suficiente, não há necessidade de outro.
Será, portanto, a via mediana, a verdadeira via, visto que um Papa que se tornou herege e persevera na heresia não tem poder na terra que lhe seja superior, mas tão somente poder ministerial para sua destituição.
Portanto, para provar isso, devemos retroceder um pouco e, primeiro, fazer três observações. Em primeiro lugar: há três elementos no Papa: o papado, a pessoa que é Papa, por exemplo, Pedro, e a união desses dois elementos, isto é, o papado em Pedro, e dessa união surge Pedro-Papa.
Em segundo lugar: reconhecendo e aplicando cada causa ao seu devido efeito, descobrimos que o papado provém imediatamente de Deus, Pedro provém de seu pai, etc.; mas a união do papado em Pedro, após o primeiro Pedro ter sido instituído imediatamente por Cristo, não provém de Deus, mas de um homem, como se mostra evidente, pois ocorre por meio de uma eleição por parte dos homens.
Dois consentimentos humanos concorrem para esse efeito, a saber, o dos eleitores e o do eleito: com efeito, é necessário que os eleitores elejam voluntariamente e que o eleito aceite voluntariamente a eleição, caso contrário, nada sucede [nihil fit]. Portanto, a união do papado em Pedro não provém imediatamente de Deus, mas de um ministério humano, seja da parte dos eleitores, seja da parte do eleito.
O ministério humano que produz essa união não age como quando o ativo está unido ao passivo, ou o fogo à palha, ou a virtude da paixão de Cristo ao sujeito, como faz aquele que batiza e administra os sacramentos, porque em nosso caso não há ativo unido, mas apenas a vontade humana dos eleitores e do eleito: não seria fácil imaginar qualquer outro ativo [non facile esset fingere aliquod aliud activum]. Mas do fato de que a união do papado com Pedro é um efeito da vontade humana, quando a mesma vontade constitui Pedro-Papa, segue-se que, embora o Papa dependa apenas de Deus in esse et in fieri, Pedro-Papa também depende do homem in fieri. Com efeito, Pedro é feito Papa pelo homem quando, eleito pelos homens, o homem eleito aceita, e assim o papado é unido a Pedro.
Em terceiro lugar: dado que nada é tão natural quanto o fato de que tudo ocorre por meio de causas determinadas, inversamente (é natural que) pela mesma causa [tudo] é anulado, como é dito no cap. Omnis, de regulis juris; portanto, Pedro-Papa, que tem sua própria causa em seu consentimento e na de seus eleitores, pode, por outro lado, ser anulado pela mesma causa. E isso foi estabelecido por Celestino V, e pela Decretal de Bonifácio VIII, em VI°, De renunciatione, cap. I.
Dessas três premissas, em primeiro lugar, parece certo e sem sombra de dúvida que Pedro-Papa, seja ao se tornar tal ou ao ser deposto, depende de um poder humano que não é maior ou igual ao poder do Papa, mas menor, porque nem para passar de Pedro-não-Papa para Pedro-Papa, nem no sentido oposto, de Pedro-Papa para Pedro-não-Papa, é necessária qualquer outra faculdade além da faculdade da vontade humana, isto é, do eleito e dos eleitores. E, na questão com a qual nos ocupamos, não devemos olhar para a boa ou má consciência, ou se elas são animadas por boa ou má intenção ou razão; nessa questão, devemos nos ater aos fatos, de modo que, na verdade, Pedro é ou não é Papa.
Que esse poder também é inferior ao poder do Papa é evidente, mesmo sem outra prova, pelo fato de que, tendo morrido um Papa, mesmo sem uma decisão de direito positivo, esse poder se encontra na Igreja e não se estende às coisas às quais se estende a autoridade do Sumo Pontífice: caso contrário, haveria dois poderes supremos na Igreja e Cristo não teria instituído um regime eclesiástico monárquico. E uma vez que o igual não tem poder sobre seu próprio igual, os Pontífices não poderiam ter imposto a esse poder o modo de execução: isto é, por quem, por quanto e como a eleição deve ocorrer e a invalidade do ato se fosse feito de modo diferente. Tudo isso mostra que esse poder não é nem inferior nem igual, mas inferior ao poder do Papa; com efeito, é próprio de uma virtude superior dispor com autoridade a respeito de um ato de um inferior de tal modo que, se fosse realizado de modo diferente, não seria válido, como é o caso na questão que enfrentamos.
Em segundo lugar, é certíssimo que uma coisa é ter poder sobre a conjunção a ser estabelecida ou anulada entre Pedro e o papado, e outra coisa é ter poder sobre o Papa. Pelo fato de que o poder inferior ao papado, isto é, a simples vontade dos eleitos e eleitores, pode fazer ou desfazer essa união e que um poder desse gênero, sendo inferior ao papado, não tem poder sobre o Papa, fica claramente demonstrado que uma coisa é ter poder sobre essa união e outra coisa é ter poder sobre o Papa. Portanto, não há poder sobre o Papa, exceto em Nosso Senhor Jesus Cristo; ao contrário, o poder sobre a união do papado e de Pedro é encontrado na Terra, e com razão, porque o papado é obra de Deus imediatamente [quia papatus opus Dei immediate est], enquanto a união do papado e de Pedro é obra nossa [coniunctio autem papatus et Petri opus nostrum].
Tampouco vós, que professais ser um filósofo, ficaria surpreso com o fato de que há um poder acima da união da forma com a matéria, que não está acima da forma, dado que a união da forma com a matéria ocorre posteriormente. Vossa surpresa cessaria se considerásseis que a união da forma e da matéria pode ser considerada de dois pontos de vista, por parte da matéria e por parte da forma, e que o que tem poder sobre a união da forma e da matéria por parte de ambos ou por parte da forma também tem poder sobre a forma, mas o que tem poder sobre essa união por parte da matéria não precisa ter poder sobre a forma, como é evidente na geração do homem. “O sol e o homem geram o homem”(II), que consiste na união do corpo e da alma intelectual, ou nasce dessa união, e sabemos que o sol e o homem não têm poder sobre a alma intelectual, que vem do exterior, mas têm poder sobre essa união por parte do corpo, que é a matéria. Isto é o que se passa na questão que nos interessa: com efeito, o papado e Pedro são como matéria e forma, e somente Jesus Cristo tem poder sobre a união deles por parte do papado e, consequentemente, das duas partes, e por isso somente Ele pode estabelecer limites e estabelecer o poder do Papa; a Igreja tem poder sobre a união deles somente por parte de Pedro e por isso não pode fazer nada a respeito do Papa, mas somente no que diz respeito à união.
[II. Aristóteles, Phys., II, 2.]
E como a moção do Papa, seja por renúncia, seja por destituição, seja por expulsão, não é a dissolução do papado ou de Pedro, mas da união do papado e de Pedro, é necessário, por essa razão, que, com a maior diligência e prudência, quando se trata da moção de um Papa, sempre se tenha em mente que isso não requer um poder superior ao Papa, mas superior à união entre Pedro e o papado.
Sendo mais claro: temos de saber que é certo que Pedro-Papa vivo pode ser privado do papado de três modos: primeiro, por expulsão da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo; segundo, por renúncia espontânea de sua parte; terceiro, por destituição involuntária por heresia incorrigível da parte da Igreja. Mas em todos esses casos o papado e Pedro não cessam de existir; apenas a união dos dois deixa de existir, mas de modo distinto em cada caso. No primeiro, em outras palavras, pela expulsão por parte de Nosso Senhor Jesus Cristo, essa união é dissolvida por um poder superior não apenas em relação à união, mas também em relação ao papado: com efeito, a autoridade do Senhor permanece acima dessa união por parte da forma. E posto que, como já foi dito, não há outro poder acima do Papa e, por essa razão, nenhum outro poder pode afetar essa união por parte da forma, segue-se que nenhum outro poder pode depor o Papa como um poder superior a ele, a não ser o próprio de nosso Salvador.
E é precisamente desse modo que deve ser interpretado o que foi dito pelo Papa Anacleto D. LXXIX, Eiectionem, que afirma: “O Senhor reservou a Si mesmo a expulsão dos Sumos Pontífices”. Com efeito, a diferença entre o Papa e os outros Pontífices reside no fato de que os outros Pontífices podem ser expulsos por um poder maior do que o poder dos próprios Pontífices, mas não o Papa; porque na Igreja terrestre há um poder maior do que o poder jurisdicional do bispo, mas não um poder maior que o poder do Papa. Disso resulta que o Senhor concedeu ao Papa a expulsão deles, atribuindo-lhe um poder superior, mas reservou para Si mesmo a expulsão do Papa, não concedendo a ninguém mais um poder superior ao do papado. Portanto, se o Papa João expulsasse um bispo com a plenitude de seu poder, esse bispo seria expulso e não teria mais poder de jurisdição, mas na Igreja o Senhor não deixou nenhum poder que pudesse atuar do mesmo modo contra Pedro-Papa. No segundo modo, isto é, pela renúncia, e no terceiro, pela destituição, essa união é dissolvida não por um poder que está acima do papado, mas por um poder que está acima apenas da união, uma vez que nem a vontade de Pedro nem a vontade da Igreja estão acima do papado, e é precisamente dessas vontades que essa união provém e é dissolvida, como parece evidente.
Como, portanto, é certo que um papa que se tornou um herege incorrigível não é automaticamente deposto e deve ser deposto pela Igreja, e que a Igreja não tem poder sobre o papado, e que a Igreja tem poder sobre a união de Pedro com o papado, na medida em que é obra sua, deve-se dizer que quando Pedro, que se tornou um herege incorrigível, é deposto pela Igreja, é julgado e deposto por um poder superior não ao papado, mas à união entre o papado e Pedro.
Nota [de Sodalitium]: este escrito do Cardeal Caetano, datado de 1511, confirma nossa tese na medida em que estabelece claramente a distinção, no Papado, entre um elemento formal e um material e a possibilidade de separar os dois. A Tese, no entanto, não acolhe nem a posição de Caetano (Papa Hæreticus deponendus est) nem a de Belarmino (Papa Hæreticus depositus est), pois desconsidera completamente o caso do “Papa herético”.
Notas:
1. Caso os bispos cismáticos se arrependam e peçam para se reconciliar com Roma, são geralmente recebidos pela Igreja como bispos, ou seja, mantêm suas dioceses unidas com o clero, os religiosos e os fiéis.
2. Na filosofia escolástica, o habitus é entendido como uma qualidade estável que dispõe o sujeito a ser ou fazer o bem ou o mal (nota de Sodalitium).
3. A sociedade não parece ser outra coisa senão uma reunião de homens com o objetivo de realizar uma única coisa de modo conjunto (Santo Tomás, Contra impugnantes Dei Cultum ac Religionem).
4. Pio XII previu o caso em que um leigo eleito à Santa Sé não poderia receber a eleição se recusasse a ordenação sacerdotal: “Se um leigo fosse eleito Papa, só poderia aceitar a eleição sob a condição de estar apto a receber a ordenação e disposto a ser ordenado” (Discurso ao Segundo Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos, 5 de outubro de 1957).
5. O Cânon 183 §1 elenca as causas para a perda dos cargos eclesiásticos, que são: renúncia, privação, transferência para outro cargo, transladação, expiração do período de tempo indicado. Em nosso caso, entretanto, nem a privação, nem a transferência para outro cargo, nem a expiração do período indicado podem ser aplicadas.
6. Em outras palavras, os papas apenas “secundum quid” (sob certo aspecto), mas não “simpliciter” (em absoluto), isto é, formalmente.
7. No nº 15 de seu estudo, como no nº 16 subsequente, o autor demonstra, com argumentos diretos, como um “papa” apenas materialiter (e, portanto, privado de autoridade) pode designar validamente os eleitores do Conclave (os cardeais), os ocupantes das sés episcopais e mudar as regras da eleição. Os argumentos adotados pelo padre Sanborn nos parecem convincentes, claros e definitivos, e apoiam a posição já expressa pelo Padre Guérard des Lauriers e pelo padre Bernard Lucien sobre a “permanência material da hierarquia” (cf. B. LUCIEN, La situation actuelle de l’Autorité dans l’Église. La Thèse de Cassiciacum, Documents de Catholicité, 1985, c. X, pp. 97–103). Entretanto, se o leitor ainda não estiver convencido, outras provas podem ser fornecidas, mesmo que sejam menos profundas, pois são indiretas. Com efeito, se não admitirmos essa possibilidade, devemos concluir que a Igreja hierárquica está atualmente completamente destruída, e que não há mais nenhuma possibilidade de eleger um papa no futuro, o que é contrário à indefectibilidade da Igreja. Assumindo, então, que o “papa” materialiter não é capaz, por si mesmo, de designar legalmente os eleitores do Conclave e os ocupantes das sés episcopais, teríamos que admitir que essa capacidade viria a ele por meio de uma substituição por parte de Cristo. A hipótese de uma substituição por parte de Cristo não é sem fundamento, mesmo entre os autores. C.R. Billuart, O.P., por exemplo, supõe isso no caso hipotético do “papa herético”. “É uma sentença comum — escreve Billuart — que Cristo, para o bem comum e a tranquilidade da Igreja, com uma dispensa especial, concede jurisdição a um papa que é manifestamente herético, desde que não tenha sido declarado como tal pela Igreja” (Summa Sancti Thomæ…, t. IX, Tractatus de fide et regulis fidei, obj. 2°) [aqui Billuart chega a apoiar uma suplência da autoridade de jurisdição, que não pode ser admitida em nosso caso]. Timoteo Zapelena, S.J., também expressa a hipótese de que Cristo concedeu uma suplência de jurisdição limitada, mas ainda válida, para assegurar a continuidade da Igreja. Ao examinar o caso do Grande Cisma do Ocidente, depois de explicar que o papa legítimo era o papa romano, o teólogo jesuíta considera o que teria acontecido se os três “papas” do Grande Cisma tivessem sido “duvidosos” e, portanto, “nulos”. Todos os cardeais e bispos designados por eles não teriam sido inválidos? De acordo com Zapelena, nessa hipótese, “teríamos que admitir uma suplência de jurisdição (com base no título ‘colorido’), não por parte da Igreja, que não tem autoridade suprema, mas por parte do próprio Cristo, que teria concedido jurisdição a cada um dos antipapas na medida em que isso fosse necessário”, ou seja, apenas na designação de cardeais (e bispos) aptos à eleição do papa (De Ecclesia Christi, pars altera apologetico dogmatica, Università Gregoriana, Roma 1954, p. 115). O caso analisado por Zapelena é muito semelhante ao nosso. Se Billuart propõe a hipótese de uma suplência de jurisdição para um papa manifestamente herético, e Zapelena propõe a hipótese mesmo para um antipapa, não vemos razão para que essa suplência de jurisdição não seja teologicamente possível mesmo para um “papa” materialiter, com moderação, é claro, para aqueles atos necessários à continuidade da estrutura hierárquica da Igreja, que é postulada pela fé nas promessas de Nosso Senhor (nota de Sodalitium).
8. Como a matéria é uma potência que recebe forma, e o imperfeito ou potencial é aquele através do qual o perfeito vem, o que segue é redutível à causa material: a) os acidentes que dispõem o sujeito a receber uma forma: causa material dispositiva determinada; b) as partes, tanto essenciais (matéria e forma) quanto integrais, que compõem o todo; c) qualquer sujeito potencial que recebe um ato. Por exemplo, a substância espiritual em relação aos seus acidentes, a essência em relação à existência, um acidente em relação a outro, são ditos causas materiais em sentido lato (Gredt, Elementa Philosophiæ Aristotelico-Thomisticæ, Friburgi Brisgroviæ: Herder, 1932 n° 751).
9. Um outro impedimento, que não nos concerne, é a insanidade: uma pessoa insana não é apta a cargo algum. Entretanto, se for designada, uma pessoa insana permanecerá designada até que a autoridade competente remova a designação.
10. “Diz-se vacante um cargo sem titular ou possuidor. O cânon 183 § 1 enumera as causas de vacância: morte, renúncia, privação, remoção, transferência, expiração do período fixado pelo ato de provisão. A própria diversidade dessas causas torna possível distinguir vários tipos de vacância. O cargo pode ser vacante plene, ou seja, de jure e de facto, o que ocorre quando não tem titular ou possuidor atual em decorrência da morte. Pode estar vacante ‘minus plene’, ou de jure tantum, não de fato, quando não tem um titular legítimo, mas está nas mãos de um possuidor atual que não tem título; pode, por fim, estar vacante improprie, ou seja, de fato, não de direito, quando tem um titular regular, mas que não está na posse, seja porque a perdeu, seja porque ainda não conseguiu tomar essa posse. Esse seria o caso de um pároco que ainda não está empossado.
A provisão de um cargo que esteja vacante apenas de direito só pode ser feita mediante o cumprimento das seguintes condições: a vacância deve ser notificada em uma declaração conforme as prescrições da lei e que demonstre que o atual ocupante do cargo não tem título legítimo. A menção a essa declaração deve ser feita no ato de provisão do novo titular” (Cân. 151) [Naz: art. “Offices Ecclésiastiques” in Dictionnaire de Droit Canonique, Paris: Letouzey et Ané, 1957, Tomo VI, col. 1086 & 1087]. Muito provavelmente o cânon 151 não se refere à provisão do papado, mas esse cânon demonstra o princípio geral segundo o qual a autoridade competente deve reconhecer legalmente que o cargo está vacante.
Retirado da edição (francesa) nn. 48-49 da “Revista Sodalitium”.