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Deus somente permitiu o mal, o pecado do homem, em vista de um bem maior

Por Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, O.P.

Artigo retirado da Obra, “O Salvador e seu amor por nós” (Le Sauveur et son amour pour nous), Cap. IX — O motivo da Encarnação e a vida íntima de Jesus, Pag. 151.



Mas há um outro aspecto desse mistério que permite responder à questão por vezes angustiante que é o problema do mal. Por que Deus permitiu mal, sobretudo o mal moral, o pecado do primeiro homem, já sabendo que ele se estenderia a toda a humanidade, privada consequentemente da graça e dos privilégios do estado de inocência?


São Tomás exprime muito bem esse segundo aspecto do mistério, que alguns de seus comentadores negligenciaram [82], e a que outros, felizmente deram destaque [83]. Ele diz (III, q. 1, a. 3, ad 3): “Nada impede que a natureza humana tenha sido elevada a qualquer coisa superior após o pecado. Pois Deus não permite o mal senão em vista de um bem maior. É por isso que São Paulo escreve aos Romanos: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20). E a Igreja canta na bênção do círio pascal: “O felix culpa, quae talem ac tantum meruit habere redemptorem! Ó feliz culpa, que mereceu um tal e tão grande Redentor!


Está claro, com efeito, que Deus não pode permitir o mal, sobretudo o pecado, senão em vista de um bem maior. caso contrário, a permissão divina, que deixa acontecer o pecado, não seria santa. Naturalmente não se poderia dizer a priori por qual bem maior Deus permitiu o pecado do primeiro homem. Mas, depois do fato da Encarnação, pode-se e deve-se dizer com São Paulo: Deus somente permitiu a abundância do pecado para que houvesse a superabundância de graça na pessoa de nosso Salvador, e por Ele em nós.


Portanto, quando o Verbo se fez carne para nos resgatar, de modo algum ele se subordinou a nós (ele continua sendo-nos infinitamente superior, e a Encarnação é mais preciosa que a nossa redenção); mas ele inclinou-se até nós, para nos erguer até ele. O que é próprio da misericórdia é justamente inclinar o superior para o inferior, não certamente para subordiná-lo ao inferior, mas para levantar este. É assim que o Verbo, ao encarnar-se, inclina-se para restaurar a ordem primitiva, a harmonia original, e mesmo para sobrelevar imensamente esta ordem primitiva, ao unir-se pessoalmente à natureza humana, manifestando-nos assim, de modo mais profundo, a sua onipotência e a sua bondade [84].


Deus não permite o mal senão em vista de um bem maior, e não teria permitido este mal imenso que foi o pecado original, se não tivesse em vista esse bem maior que é a Encarnação redentora. Assim, a Misericórdia divina, longe de subordinar a nós o Verbo que se encarnou para nós, é a mais alta manifestação do Poder de Deus e de sua Bondade. Ela canta a glória de Deus, mais do que todas as estrelas do firmamento.


O Verbo encarnado, nosso Salvador, é infinitamente maior que o primeiro homem inocente. Maria é também, guardadas as devidas proporções, incomparavelmente superior a Eva, e na mais pobre igrejinha do interior, quando se celebra a missa, oferece-se a Deus um culto infinitamente superior àquele que lhe era oferecido pelo primeiro homem inocente, no Paraíso terrestre.


Bibliografia:

82 — Por exemplo, Jean de Saint-Thomas e Billuart.


83 — Ver a exposição deste ponto da doutrina pelos carmelitas de Salamanca, e pelos dominicanos Godoy e Gonet. Ver também o que diz muito bem Caetano (in I, q. 22, a. 2, nº VII): (Si non esset peccatum a Deo permissum) “deesset universo hostia illa divini supositi, quam in cruce obtulit; quod adeo bonum fuit et est, ut excedat in bonitate omne malum culpae non solum hominum, sed daemonum… O felix culpa..”..


84 — Houve quem objetasse que seria perverso ordenar o superior ao inferior. Ora, a Encarnação é superior à nossa redenção. Portanto, seria perverso ordená-la a esta.

Os tomistas sempre responderam: Seria perverso e mesmo absurdo ordenar o superior ou o inferior como a um princípio de perfeição e um fim último, com toda certeza; mas não é perverso ordenar o superior ao inferior como a um sujeito perfectível que deve ser aperfeiçoado. Assim, embora nosso corpo seja para nossa alma, Deus ordena, de certo modo, a alma ao corpo para vivificá-lo e não criaria uma determinada alma de criança, se o corpo dessa criança não começasse a se formar. Do mesmo modo, embora nós sejamos para Cristo, que é o nosso fim, Ele veio para nos salvar, e não teria vindo se nós não precisássemos ser salvos. Assim como há uma dependência mútua entre o corpo feito para a alma e a alma que vivifica o corpo, “causae ad invincem sunt causae, sed in diverso genere”, há também dependência mútua entre a Encarnação em vista da qual o pecado original foi permitido e esse pecado, para livrar-nos do qual a Encarnação redentora foi querida pela misericórdia divina.

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