Se vivemos, vivemos para o Senhor; se morremos, morremos para o Senhor. Quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor (Romanos XIV, 8).
Na época da terrível morte de Terri Schiavo, nos EUA, uma pergunta ganhou corpo na reflexão ética: onde se inicia o excesso terapêutico? Obviamente, tal questionamento não era novo, ele já passou pela cabeça de quase todos que se depararam com uma situação limite que atingiu um amigo ou parente, mas naquele momento, nos meios tradicionalistas católicos, a problemática se tornou fratricida, na medida em que algumas vozes influentes mostraram divergência sobre o que se entendia como moralmente correto na condução do caso citado. Expomos aqui fatos e princípios da Teologia Moral que se submetem ao juízo futuro da Igreja e de nossos atuais superiores.
Fundamentos teóricos
Para entender claramente essas diferenciações no campo da morte, devemos estudar de maneira um pouco mais profunda as noções de meios ordinários e extraordinários de manter a vida.
Santo Tomás estabeleceu os parâmetros iniciais da discussão subseqüente sobre a preservação da vida. Tirar a própria vida é um pecado, uma violação do domínio de Deus sobre a vida e a morte. O quinto mandamento, “Não matarás”, é um preceito negativo, isto é, impõe a obrigação de não fazer uma certa ação. No contexto que estamos trabalhando, ele indica que não podemos matar a nós mesmos, pois o preceito negativo também implica um dever de agir, dever de preservar nossa vida. Recusar esse dever é o mesmo que violar o preceito negativo:
Um homem tem a obrigação de sustentar seu corpo, ou ele será o assassino de si mesmos (…); por preceito, então, ele é chamado a cuidar de seu corpo e, em conseqüência, de tudo sem o qual o corpo não pode viver (In II Tes., lect. II, n. 77 / a tradução, livre, é minha).
Santo Tomás pergunta, então, se essa obrigação é absoluta. Responde: Semper sed non pro semper. “Sempre, mas não em todas as circunstâncias”. Há certas situações, certas condições nas quais esse dever positivo não obriga, condições nas quais nós podemos abandonar o dever de preservar nossa própria vida, tendo em vista um bem maior. O bem temporal que é o dever de preservar nosso corpo, deve ser avaliado tendo em vista nosso fim espiritual, podendo ser desconsiderado se perfaz um obstáculo no nosso caminho para Deus.
No século XVI, o dominicano espanhol Francisco de Vitória, foi o primeiro a considerar com grandes detalhes os meios de preservar a vida. Ele ensinava que certos meios são obrigatórios, pois não fazer uso deles equivale ao suicídio, como é o caso dos remédios, da comida e da água.
Contudo, o ponto chave do pensamento dele é que esses meios obrigatórios têm de ser avaliados não só pelo que é comum a todos homens, mas também pelas condições duma pessoa específica. Num caso concreto, o que é normal para a generalidade das pessoas pode impor um sofrimento excessivo. Noutras palavras: existem circunstâncias nas quais, devido a disposição subjetiva, os meios ordinários se tornam extraordinários para um certo indivíduo; a escusa para não usá-los não tem relação com eles em si, mas com a impossibilidade moral de aplicá-los a uma pessoa específica.
Um outro dominicano espanhol, Domingo Banez, foi o primeiro a inserir as explicações ordinário e extraordinário. Ordinário ao que é comum e obrigatório, extraordinário ao que é incomum e pode ser escusado.
As ciências médicas não tinham avançado muito mais, quando o Cardeal Juam de Lugo propôs uma nova aplicação do axioma: moraliter pro nihilo reputator. No âmbito deste tópico, isso significa que certos meios de preservar a vida de alguém são moralmente como nada.
Exemplo: um homem está no alto de uma torre em chamas; ele não pode escapar, mas tem um pouco de água que pode jogar no fogo a fim de afastá-lo e ganhar mais alguns minutos de vida. Ele está obrigado a jogar a água no fogo? Não. Moraliter pro nihilo reputator: uma quantidade tão pequena não evitará o resultado, ele vai morrer de qualquer modo. O que devemos entender é que num caso como esse o alívio oferecido é tão pequeno que equivale a nada e, portanto, não cria uma obrigação moral de ser usado. Santo Afonso de Ligório acrescentou o fato que se a repugnância individual a um certo tipo de tratamento médico fosse grande o bastante para por em risco a saúde espiritual do paciente, esse seria um motivo forte o bastante para rejeitá-lo.
Meios Ordinários
Os meios ordinários não estão definidos no sentido de haver uma relação deles, o que há é uma indicação teórica do que é ordinário. Uma definição precisa e universal seria um impedimento para o julgamento prático quanto a obrigatoriedade em certos casos, tendo em vista o elemento subjetivo.
A distinção entre meios ordinários e extraordinários é usada tanto por médicos quanto por moralistas, mas isso não quer dizer que suas noções do que é ordinário e extraordinário são as mesmas. Pode acontecer das noções se sobreporem, mas elas não são necessariamente coextensivas: um meio pode ser ordinário para um médico, no sentido de usual, de ser comum na prática médica, mas considerado extraordinário por um teólogo moral e vice-versa.
Meios ordinários são os que são usados normalmente para a preservação da vida e podem ser conseguidos com a diligência do homem médio. Quatro características devem ser avaliadas:
1. Media communia, meios comuns, o que no julgamento comum são necessários para a preservação da vida: comida, água, roupas, moradia, remédios, a possibilidade de ir ao médico. Consegui-los não pede uma diligência maior que a média.
2. Secundum proportionem status, a introdução de um certo julgamento subjetivo na avaliação dos meios tendo em vista o papel de alguém na vida social. Existem meios que podem ser julgados excessivos para o comum dos homens, mas que não serão para a de um cientista importante, por exemplo; não porque sua vida valha mais que a dos outros, mas devido a importância relativa dessa vida para o bem comum.
3. Medicina non difficilia, os remédios ou meios que não são difíceis de obter ou usar. Como exemplo, temos os remédios que podem ser achados facilmente numa farmácia ou os tratamentos comuns a qualquer hospital, que são considerados standard para a prática médica. Uma pessoa não é obrigada a ir para o outro lado do mundo se só um hospital lá dispuser de um certo tratamento; uma pessoa não tem de se submeter a um longo e doloroso tratamento.
4. Spes salutis, a esperança de um resultado benéfico. Se a doença está tão avançada que nenhum tratamento razoável pode ser efetivado para salvar a vida do paciente, ele não deve ser molestado.
Meios Extraordinários
Sobre os meios extraordinários, também não há lista, só a descrição objetiva. Características:
1. Quaedam impossibilitas, não há impossibilidade física de usá-los porque não estão disponíveis, mas a impossibilidade moral, como no caso de uma repugnância extrema.
2. Summus labor, media nimis dura, a dificuldade extrema para achar ou usar algum meio.
3. Quidam ruciatus, ingens dolor, se o uso provoca dor intensa e constante, esse meio se tornou extraordinário para esse caso, mesmo sendo objetivamente ordinário.
4. Sumptus extraordinarius, media pretiosa, o custo é absurdo, a ponto de reduzir o paciente ou as pessoas que cuidam dele à pobreza.
5. Vehemens horror, uma intensa emoção e horror pelo uso de um certo meio.
Relação entre qualidade objetiva, fardo, benefício
Tentei descrever os meios objetivamente, mas sempre uma referência ao indivíduo, ao elemento subjetivo, faz-se necessária. Por isso certas considerações têm de ser postas:
A primeira é que a ênfase deve sempre cair na qualidade objetiva dos meios. Os manuais de Teologia Moral fizeram todo esforço possível para descrever objetivamente quais são os meios ordinários e quais os extraordinários. Essa descrição estabelece primariamente certos meios ordinários e certos extraordinários. Então, num segundo estágio, é que vem a aplicação desses meios ao paciente.
A segunda é que a noção do fardo imposto pelos meios tem de ser considerado objetiva e subjetivamente. Um certo meio pode ser objetivamente um fardo porque é difícil de obter, custa excessivamente ou causa dor severa. Mas ele também pode ser percebido subjetivamente como um fardo em circunstâncias particulares e conseqüentemente não usado.
A terceira é que há uma relação inversa na proporção entre a ordinariedade objetiva de um meio e as circunstâncias subjetivas de seu uso. Quando os meios são objetivamente ordinários, as circunstâncias subjetivas que nos levarão a recusá-los têm de ser graves e com fundamentos sólidos. De maneira simples: quanto mais ordinário for o meio, mas extraordinária a circunstância subjetiva tem de ser para que ele seja recusado.
A quarta é que nós temos de perceber a relação do fardo imposto pelo uso de um meio e o benefício que se espera dele. Se o benefício for pequeno, mas o meio não impõe nenhum fardo, a obrigação de fazer uso dele permanece. Se a esperança de um resultado benéfico é pequena, mas o meio é objetivamente extraordinário, não a obrigação de fazer uso dele.
Portanto, dois pontos devem sempre ser lembrados para o reto julgamento:
1. A qualificação objetiva do meio.
2. A relação proporcional que deve existir entre o fardo, o benefício e o meio.
Magistério de Pio XII
Confrontados com as novas técnicas médicas e as teorias espalhadas por teólogos liberais, muitas pessoas se acharam em dúvida e pediram a Igreja que apresentasse novamente seu ponto de vista sobre essas questões. O Papa Pio XII voltou a sondar a Tradição e os princípios básicos da moral natural e cristã.
Ele reafirmou o princípio da totalidade, já apresentado por Santo Tomás e que nos diz que podemos sacrificar uma parte do corpo para preservar a vida.
O paciente está limitado pelos princípios imanentes da natureza… Por ser beneficiário e não o proprietário, ele não possui poder ilimitado para permitir atos de destruição ou mutilação de caráter anatômico ou funcional. Mas em virtude do princípio da totalidade (…), ele pode permitir a destruição ou mutilação de partes individuais só e quando isso é necessário para o bem dele como um todo, para assegurar sua existência ou evitar um dano maior que um caso contrário não poderá ser reparado (Alocução ao primeiro Congresso Internacional de Histopatologia, 13 de setembro de 1952 – tradução livre).
Qual o propósito do desenvolvimento do corpo, de suas energias, de sua beleza, se não para servir a algo mais nobre, a alma?… Isso ensina o homem a respeitar seu corpo, mas não a estimá-lo mais que o devido… Cuidar do corpo não é o primeiro anseio do homem, nem o corpo tereno e mortal como ele é agora, nem o corpo glorificado feito espiritual como ele será um dia. O primeiro lugar na composição do homem não pertence ao corpo tirado do limo da terra, mas ao espírito, a alma espiritual (Alocução ao Congresso Científico de Esportes, 8 de novembro de 1952 – tradução livre).
Pio XII também relembrou as noções de meios ordinários e extraordinários. Ordinários são os tratamentos que oferecem uma esperança razoável de benefício sem impor fardos inaceitáveis ao paciente ou a outros, e são sempre considerados em relação as diferentes circunstâncias de pessoas, lugares, tempo e culturas. Extraordinários são os meios que impõem fardos inaceitáveis.
O Papa não escreveu nenhum critério específico para distinguir entre tratamentos ordinários e extraordinários, mas falou sobre uma aplicação específica: um respirador de um paciente moribundo pode ser considerado um meio extraordinário.
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