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O OCULTISMO E A FRANCO-MAÇONARIA



[I.]


[1. O segredo e a busca do maravilhoso.

Antiguidades fantasiadas: Hirão, templários / De Molai, Rosenkreuz.]

[2. Origem prosaica na confluência de dois veios:

As corporações de pedreiros franqueados e sua atuação política. /

O prosista protestante J.V. Andreae e a fábula do rosa-cruz.]

[3. Da maçonaria política à maçonaria especulativa.

Sua laicidade. Désaguliers / Ramsey / De Hund.]


[II.]


[4. Martinez de Pasqually e o martinismo. Seus discípulos

Louis-Claude de Saint-Martin e Jean-Baptiste Willermoz.]

[5. Um correspondente de Willermoz: o jovem De Maistre. /

Juízo maduro de Joseph de Maistre sobre a maçonaria.]


[III.]


[6. Comércio com anjos e espiritismo.

J.-B. Willermoz e o caso Mademoiselle Rochette.]


[IV.]


[7. Juízo de René Guénon sobre o papel da maçonaria

na difusão da necromancia e da teosofia.]

[8. Retrospectiva e conclusão.]


O que impressiona ou intriga, antes de mais nada, ao profano ou historiador na questão da franco-maçonaria é o mistério de que ela se rodeia e o maravilhoso com que ela se atavia.

A seus adeptos ela impõe o segredo mais rigoroso. A cada degrau que galga da escala dos graus, o candidato renova seu juramento de nada divulgar daquilo que tiver visto ou sabido tocante à franco-maçonaria. E esse juramento é exigido dele não só quanto àquilo que lhe é comunicado na hora, mas também acerca de tudo o que lhe possa ser revelado no futuro. Ele presta esse juramento em meio a um aparato propositalmente impressionante, com fórmulas premeditadamente terríveis.

Para melhor assegurar o silêncio, a iniciação nos segredos das lojas é progressiva. Além disso, o Grão-Mestre ou Grande Conselho reserva para si o conhecimento dos últimos segredos. Silêncio é imposto sobre o nome dos Irmãos, sobre o assunto e as deliberações das reuniões. As atas que delas são feitas não estão no comércio. Só se as obtém inesperadamente. Ainda assim se percebe que estão cheias de reticências e dissimulações.

Jamais as Grandes Lojas expuseram claramente e oficialmente o desígnio a que se propõem. Dizer que se trata unicamente de filantropia, que a franco-maçonaria nada mais é que uma sociedade de auxílios mútuos e de beneficência é abusar da credulidade do público. Como admitir esse luxo extraordinário de precauções para um objetivo tão anódino? Que acesso de pudor ou que refinamento de discrição! O silêncio imposto aqui nada tem em comum com a reserva que é decente em matéria de beneficência. Para os seus negócios em conjunto os irmãos terão senhas, sinais de convenção, sem falar no famoso sinal de socorro que, nos tempos do combismo ou do pré-combismo, veio por vezes, nas assembleias parlamentares, congregar os irmãos hesitantes quando “chovia no templo”, e o que estava em perigo nunca era uma lei de interesse filantrópico.

Para uso dos irmãos, todo um vocabulário foi criado. É uma língua cuja chave caiu em mãos dos profanos, mas que estava, na intenção de seus criadores, reservada aos iniciados.


Nessa língua reservada já se manifesta outra característica da franco-maçonaria: a procura do maravilhoso. As coisas e ações mais simples são designadas por termos extraordinários, como para dar a entender a seus adeptos que nisso tudo haja um sentido profundo, uma significação alegórica cujo conteúdo lhes será revelado mais tarde.

O cerimonial das “vestiduras”, nas lojas oficiais, é fixado com a preocupação constante de representar uma história ou doutrina oculta, repleta de promessas. Sobretudo, o cenário das recepções é regulamentado com um luxo de detalhes que nos parecem rocambolescos, mas aos quais o irmão crente se submete com reverência, porque insere sob cada um deles um mistério rico em maravilhas.

A história de Hiram e do seu assassinato a ser vingado ocupa um grande lugar nos ritos maçônicos. Destarte, os irmãos pretendem ligar-se aos obreiros que erigiram o templo de Salomão e dos quais tirariam o seu nome[de maçons/pedreiros – ndt]. É verdade que outros, mais modestos, não se reivindicam senão dos templários. Outros, porém, colocam nas suas origens tanto os templários quanto os operários de Salomão, sem contar aqueles —e são numerosos— que, por intermédio de um tal Andreæ, se dizem herdeiros do misterioso Christian Rosencreutz [ou: Cristiano/Cristão Rosacruz – ndt], fundador dos rosa-cruzes, e remontam através dele até aos mistérios do antigo Egito e da Ásia.

De maneira que os próprios franco-maçons já não sabem qual foi o berço deles. De tanto procurar e acumular detalhes fabulosos, foram eles os primeiros a perder-se no matagal de suas invenções.

Há, não obstante, interesse, para melhor conhecer as relações entre a franco-maçonaria e o ocultismo, em perguntar a Gustave Bord,[1] e a alguns pesquisadores que seguiram as pistas indicadas por ele, o que é que se mostra consolidado como mais provável sobre as origens da franco-maçonaria.


Desde os tempos antigos existiram associações e mesmo corporações de construtores, frequentemente de caráter religioso. Encontramo-las no Egito, na Síria, na Grécia, em Roma. Depois de ter repelido ou absorvido os bárbaros, o Ocidente sente aumentar nele uma energia de vida. Sociedades de mações constróem catedrais, pontes, estradas e canais. Papas como Nicolau III, em 1277, lhes conferem privilégios e imunidades: isenção de impostos e do serviço militar, jurisdições especiais: donde o nome de maçons franqueados [= pedreiros-livres – ndt] ou franco-maçons.

No fim do século dezesseis e no dezessete, na Inglaterra e na Escócia, corporações de pedreiros construtores, sob o nome de Freemasons, colocam-se debaixo da proteção de personalidades influentes. Gustave Bord julga poder afirmar que Sir Christopher Wren foi mesmo grão-mestre da corporação, em 1685. Igualmente, parece-lhe objeto de certeza que a abadia de Kilvinning, na Escócia, era no século dezessete um centro importante de maçons construtores escoceses. Foram publicados os Deveres e Estatutos, recolhidos por ordem de Guilherme III de Orange em 1694. A partir desse documento, está provado que existia no fim do século dezessete, na Inglaterra, uma corporação de maçons; eles se chamavam entre si de companheiros ou irmãos; reconheciam um mestre; se entrava na corporação por uma iniciação, o que suporia um estágio e o equivalente do grau de aprendiz; impunha-se segredo sobre todas as coisas de maçonaria; de resto, o primeiro dever era ser fiel a Deus, precavendo-se contra “todas as heresias, que O desconhecem”, e o segundo, ser súdito leal do rei. Corporação de ofício, com grupos ou “clubes” mundanos pela adesão de membros da nobreza.

“Na Inglaterra, enquanto começava a luta entre a realeza dos Stuart e o Parlamento, e mais tarde entre os Stuart e a Casa de Orange ou a de Hanovre, os partidos políticos —diz Gustave Bord— tiveram de agrupar as corporações ao redor deles… É certeza que os Stuart, de Jaime I até Jaime II, fizeram uso desses meios, ao menos no que se refere aos franco-maçons.” A corporação de ofício e os clubes mundanos adotam posições políticas.

Entretanto, em dezembro de 1614, saía em Cassel um manifesto intituladoFama Fraternitatis Rosae Crucis. O saudoso Padre Léonce de Grandmaison narrou faz tempo essa história aqui em Études [2]. Um nobre alemão, que não é nomeado, criado num convento desde os cinco anos de idade, sai para realizar uma peregrinação aos lugares santos. Prossegue até Damasco, depois ao Egito, à Berbéria, ao Marrocos, onde por toda parte sábios lhe revelam maravilhosos segredos. Depois de algumas tentativas infaustas na Espanha, ele reentra na Alemanha em seu convento. Erige ali a “Morada do Espírito Santo”, onde ensina aos Irmãos a ciência oculta que descobriu outrora em Damasco, no Livro do Mundo. Regulamentos garantem a perpetuidade e o segredo da fraternidade. O fundador morre aos cento e seis anos. Cento e vinte anos depois da morte dele, é descoberta na “Morada do Espírito Santo” uma porta com esta inscrição:Post CXX annos patebo [“Depois de 120 anos serei aberta” – ndt]. A porta levava a um sepulcro carregado de alegorias e inscrições simbólicas; ali repousava o “Irmão Rosa-Cruz”.

No ano seguinte, era publicado em Cassel um segundo escrito: Confessio Fraternitatis R†C, ad Eruditos Europæ. Retomava este, resumindo-a, a primeira história, com um tom antipapal bastante acentuado. Principalmente, dava o nome do misterioso fundador e sua data de nascimento: Christian Rosencreutz, nascido em 1378. Sucesso fulminante do duplo romance rosacruciano. Multiplicam-se escritos a favor ou contra a doutrina ensinada. Ninguém parece pôr em dúvida a sua autenticidade.

Entretanto um certo teólogo protestante vurtemberguês, Johann Valentin Andreæ, publicava em 1616, em Estrasburgo, as Bodas Químicas de Christian Rosencreutz [3]. Era como que um desenvolvimento satírico das doutrinas rosacrucianas. Os “eruditos” foram levados a comparar os dois escritos atribuídos a Christian Rosencreutz com diversas obras de J. V. Andreæ e com o que se sabia da vida e das doutrinas deste último. A suspeita deu lugar à certeza quando, em 1849, J. Rheinwald publicou pela primeira vez a Autobiografia de Johann Valentin Andreæ: ele se confessava nela o autor dos escritos rosacrucianos.


As doutrinas dos rosa-cruzes viriam a invadir as corporações de maçons. Afiliado à Sociedade dos Rosa-Cruzes de Londres, Elias Ashmole logo dela se tornava, com sua inteligência e ambição, um dos membros mais influentes. Em 1646, ele se fazia admitir no grupo dos franco-maçons de Warington. Com ele introduziam-se a legenda simbólica do Templo de Salomão e, provavelmente, a do assassinato de Hiram, arquiteto do templo. Ocupavam-se eles, sob formas alegóricas, das ciências naturais. A lei do segredo era ampliada e reforçada. Inventavam-se as cerimônias iniciáticas.

Após a derrota dos Stuart, em 1715, a franco-maçonaria na Inglaterra está em plena decadência. Um francês emigrado na sequela da revogação do Edito de Nantes, Désaguliers, trabalha com a proteção de Jorge II para reconstituí-la à margem de toda influência dos Stuart. É nessa época que, na Inglaterra, as confrarias de maçonaria profissional e políticas transformam-se resolutamente em maçonaria filosófica. A mudança se fez entre 1717 e 1723. Textos datados de 1720, ou em torno disso, trazem as Obrigações dos maçons e também os Estatutos ou Regulamentos gerais da Associação. Ali se diz: “Deixando a eles próprios (aos maçons) suas opiniões particulares, julga-se mais apropriado obrigá-los somente a seguir a religião sobre a qual todos os homens estão de acordo. Consiste ela em ser bons, sinceros, modestos e honrados, seja qual for a denominação ou crença particular pela qual que se possa distinguir-se.” Isso se chamava não ser “um ateu estúpido nem um libertino sem religião”. Mas fica bastante evidente que é uma religião totalmente laica. Por outro lado, continuava-se a falar de salários, de trabalho por jornada ou por empreitada, da proibição de abandonar o canteiro antes de terminada a obra e dos deveres dos supervisores na ausência do diretor da obra, no aguardo de que a colher de trolha, o esquadro e o fio de prumo servissem de alegorias e de emblemas na nova religião filantrópica e igualitária.

Entretanto, um personagem de cultura mais vasta e de incrível atividade, em contato com Fénelon e que ficara católico, Andrew Michael Ramsay, dispensado da Inglaterra por seu catolicismo, chegava a Paris. Em cartas dirigidas ao cardeal Fleury, em 1737, ele solicitava a proteção deste em favor da Ordem dos maçons. O cardeal recusou-se. Ramsay retomava, por um momento, a ideia de restabelecer os Stuart no trono. Ele pretendia fixar a história lendária dos maçons.[4] Principalmente, ele se aplicava, senão em criar, ao menos em fortificar os altos graus, aqueles que deram à franco-maçonaria sua forma exterior definitiva. Assim se sobrepunha, à franco-maçonaria vulgar ou maçonaria azul com seus três graus: aprendiz, companheiro e mestre, o rito escocês com sete, nove e, finalmente, trinta e três graus.

Essa multiplicação dos graus tinha diversos fins. Permitia recrutar altos e poderosos personagens, oferecendo-lhes um título proporcional à sua qualidade. Reforçava a disciplina do segredo: o titular de um grau superior era considerado detentor de segredos que não devia comunicar a ninguém de graus inferiores; assim, retraía-se e afastava-se da massa dos adeptos o mistério sobre o desígnio último da associação. Por fim, conservava a esperança de conhecer um dia essas doutrinas misteriosas prometidas e o sentido profundo dos ritos e alegorias. Se alguns achavam bem leve a bagagem de conhecimentos até então revelados, diziam eles consigo, a eles se dizia, que no grau superior a luz seria dada.

“Os altos graus se espalharam rapidamente na França”, diz-nos Gustave Bord. Entraram na Alemanha com De Hund, fundador da Estrita Observância. “Foi De Hund quem bolou fundir o grau de Cavaleiro do Templo (de Salomão) com a legenda dos cavaleiros cruzados e inventar a fábula dos templários.” Estes últimos teriam estado na possessão de conhecimentos misteriosos, originários do Oriente, assim como de imensas riquezas. A franco-maçonaria teria herdado os primeiros e cogitou por um instante reivindicar as segundas, detidas em parte pela Ordem de Malta. Ela assumiu a missão de vingar, ao mesmo tempo que a sina de Hiram, a execução de Jacques Molay, vítima de Filipe, o Belo, e de Clemente V, sob pretexto dos quais ela encontrava, quando necessário, o meio de combater a realeza e o Papado. De uma simples similitude de nome, nascia essa extensão da lenda primitiva.

Foi somente em 1738 que a franco-maçonaria francesa parece ter recebido como que a sua autonomia e a sua constituição, com a eleição do pouco edificante duque D’Antin na qualidade de primeiro Grão-Mestre. Temos dele um discurso pronunciado em assembleia solene de 1740, no qual, após algumas declarações humanitárias, ele assim se exprime:


“A Ordem exige de cada um dos senhores contribuir com a sua produção, com a sua liberalidade ou com o seu trabalho numa vasta obra para a qual academia nenhuma será suficiente. Todos os G∴ M∴ na Alemanha, na Inglaterra, na Itália e alhures exortam a todos os sábios e a todos os artesãos da confraternidade a unir-se para fornecer os materiais de um dicionário universal das artes liberais e das ciências úteis, excetuadas somente a teologia e a política. Já se começou a obra em Londres.”[5]


A Enciclopédia Inglesa de que se trata aqui antecipava-se, ao mesmo tempo que os preparava, ao Dicionário de Bayle e à Grande Enciclopédiadirigida por Diderot e D’Alembert. Vê-se que a franco-maçonaria na França assumia uma aparência nitidamente filosófica.

Entretanto ela conservava, junto dos altos graus da franco-maçonaria escocesa, as legendas, ritos e alegorias desta última. Mais ainda, ela se impregnava diretamente de doutrinas e práticas ocultas.


*

* *



Essa influência mostra-se nitidamente na correspondência e nos relatos de uma figura que, sem desempenhar um papel inspirador de primeiro plano na franco-maçonaria, esteve mesclado, mais do que ninguém, a todos os movimentos dela durante sua longa vida, que só terminou em 1824, aos noventa e quatro anos, e dela deixou-nos um quadro fiel.

Jean-Baptiste Willermoz nasceu em Lião a 10 de julho de 1730. Pertencia à melhor burguesia lionesa. Ele próprio “fabricante de tecidos de seda e de prata”, “comissionista em tecelagem de seda”, mostrou notável aptidão nos negócios. Quando morreu, era um dos mais ricos negociantes e proprietários imobiliários da cidade. Em 1753, ele funda a Loja Perfeita Amizade, do rito ordinário. A loja contava somente nove membros. Willermoz era Venerávelinamovível. Ela aderiu à Grande Loja da França quando esta separou-se da de Londres. Willermoz fez confirmar os seus poderes. Em 1761, encontramo-lo Grão-Mestre da Grande Loja dos Mestres regulares, de seis membros, que pretendia exercer uma espécie de policiamento sobre as lojas da região. No ano seguinte, ele se indispõe com a Grande Loja da França, mas mescla-se cada vez mais em diversos movimentos independentes, dos quais ele se esforça por assumir a direção. Assim, em 1766 ou 1767, ele chefia, em Lião, a Loja dos Eleitos Coens(sacerdotes, em hebreu). Os Eleitos Coens formam uma classe secretíssima de iniciados superiores, ignorada dos maçons ordinários, como viria a ocorrer no futuro e, sem dúvida, já acontecera no passado. Em 1769, não passam de cinco. O fundador desse grupo é um personagem em redor do qual criou-se toda uma lenda.

Martinez Pasqualis, dito Martinès de Pasqually, era judeu português? A sua certidão de batismo, tendo sido encontrada, demonstra que ele era católico. Nasceu provavelmente em 1715, nos arredores de Grenoble. O nome verdadeiro dele era, sem dúvida, simplesmente Martin Pascalis.[6] Ensinava que os seres, espíritos puros, homens, criaturas materiais, contidos originalmente no seio de Deus, dali emanaram por um ato da Vontade dele. Mas dali sair é decair. A vida é um exílio. Todos aspiram à reintegração. Realiza-se esta pelo esforço da vontade deles, que se identifica com a vontade de Deus e reconquista a vida divina. A reintegração será universal: a natureza será renovada, e o princípio maligno, purificado. Para essa grande obra, os seres inferiores precisam de ajuda dos espíritos que povoam o espaço. Trata-se, pois, de com eles estabelecer Comunicações. É o que é feito mediante todo um conjunto de práticas teúrgicas.

Os discípulos de Martinez Pasqualis tomaram o nome de martinistas. O mais célebre deles é Saint-Martin, dito o Filósofo desconhecido.

Os arquivos de Willermoz encerram sua correspondência com Pasqualis. O doutor Papus (Gérard Encausse), o último detentor, publicou parte dela. Paul Vulliaud, que também a teve em mãos, dela fornece excertos no seu curioso livro Os rosa-cruzes lioneses no século dezoito.[7]

O negociante de Lião [J.B. Willermoz – ndt] atua como “Réau-Croix”, grau superior dos rosa-cruzes [“Rose-Croix” – ndt]. Mas, como lhe recorda o seu mestre [Martinez Pasqualis – ndt], ele o é “sem ordenação”.


“Cumpre, pois, que eu vos ordene daqui em diante por meio de correspondência simpática. Podeis ainda conservar o vosso aposento em questão, para ali trabalhar nos equinócios de concerto com todos os vossos irmãos,[8] cada qual no seu aposento particular, que serão no mês de setembro próximo. Não sejais impaciente. Aguardai o vosso tempo. Esses tipos de coisas não estão à disposição só do homem, mas antes à do Altíssimo e Potentíssimo Eterno… Não passo de débil instrumento de que Deus se dispõe, indigno como sou, a de mim servir-se para reconduzir os homens, meus semelhantes, ao seu primeiro estado de mação, que quer dizer espiritualmente homem.”

A iniciação e a qualidade de “Réau-Croix” comportam, para começar, um regime alimentar.

“Não mais ingerireis, na duração de vossa vida, sangue de animais. Não comereis, tampouco, pombo-doméstico, nem rim nem óleo animal. Jejuareis meticulosamente nos tempos que vos serão ordenados, a cada equinócio. Começareis vosso jejum na véspera de quando quiserdes trabalhar o vosso quarto de círculo. Não podeis nem deveis trabalhar, em vossa qualidade de aprendiz ‘Réau-Croix’, senão três dias seguidos no começo dos equinócios. Acompanhareis a lua de março e a de setembro, e não os dias que foram fixados para ser equinócio.”

Há também a preparação espiritual.

“Não vos esquecereis jamais, em vossos dias, do ofício do Espírito Santo, se quereis seguir em seguida a operação dos apóstolos. Não omitireis, tampouco, de dizer o Miserere mei no centro do vosso aposento, à noite antes de deitar-vos, com o rosto voltado para o ângulo em face do sol nascente. Em seguida o De Profundis, com os dois joelhos no chão e o rosto prosternado por terra. O Miserere pode ser dito de pé.”


Entretanto, a carta pela qual Martinez enviava as prescrições cerimoniais prometidas não chegara. O que agravava o mal é que ela continha um talismã completo para todos os dias da semana, do mês e do ano. Investigação feita, ela não foi posta no correio. O serviçal desmiolado recebeu sua demissão. Martinez envia um talismã triangular, a ser girado de uma ponta à outra durante o trabalho preliminar de três dias.

Sucede, porém, um incidente misterioso. O mago vê-se obrigado a transferir a sua operação para outro equinócio.


“Nossas rubricas entre nós fazem com que nunca sejamos surpreendidos pelas sagacidades [ou capacidades] regionárias espirituais, que agem nessas duas estações do ano ordinárias. Eu as tinha previsto, assim como a má ação delas. É o que me fez adiar uma operação para esse tempo, estando moralmente seguro de que essa fuga extraordinária passaria” (Carta de 27 de setembro de 1768).


O mestre queria simplesmente ganhar tempo? Ou então alguma má ação de um candidato “Réau-Croix” à próxima iniciação coletiva teria turvado as influências? De fato, um senhor Bonnichon, frater de Guers, era poucos dias depois expulso da Ordem por ter, sem dúvida, traído segredos ou traficado graus.

Willermoz, não obstante, recebe instruções para orar, no seu círculo iluminado por velas, “pela saúde e tranquilidade de alma e de espírito daquele principal cabeça, que é ignorado por vós assim como por todos os vossos irmãos “Réaux-Croix”, e que devo calar até que ele próprio se dê a conhecer”.

Estamos em 1770, a ordenação aconteceu. Mas “a cousa” prometida, a revelação com que Willermoz contava, não aconteceu. Decepção, explicações pouco satisfatórias. Martinez não compreende que “a coisa” não tenha se manifestado. Finalmente, ele descobre que a ordenação foi irregular. Ele [Martinez – ndt] indica-lhe [a Willermoz – ndt] os ritos a serem realizados para validá-la.


“Vós vos transportareis extraordinariamente para dentro de algum aposento conveniente para a vossa obra tal como vos foi explicado anteriormente por mim. Fareis um círculo com giz branco no meio de vosso aposento. Traçareis também o vosso quarto de círculo na direção do ângulo leste, que estará alumiado ordinariamente. Feito isso, vós vos prosternareis com o rosto contra o chão no círculo que tiverdes feito no centro do vosso aposento… O topo da vossa cabeça estando em prosternação visará o ângulo do Leste, onde estará marcado o quarto de círculo. Vós vos prosternareis no dia 22 do mês próximo, dia do equinócio, para receber a vossa ordenação às dez horas exatas da noite. E permanecereis prosternado cerca de meia-hora com o rosto contra o chão. E eu estarei no meu ângulo, às nove horas exatas da noite, para trabalhar por mim e por vós. Eu permanecerei nessa operação até à uma hora após a meia-noite. Quando tiverdes permanecido pela hora indicada em vossa prosternação, ireis extinguir as vossas luzes ordinárias que estão em vosso quarto de círculo e apagareis tudo o que tiverdes traçado.”


Admitir-se-á que tudo isso carece de simplicidade. Enfim, Willermoz recebeu a ordenação que esperava fazia três anos. Teve ele revelação d’“a cousa” prometida? Recebeu ele alguma comunicação dos “Anjos”, esses Anjos de que teremos de falar mais adiante? Não saberemos jamais.

A carta de Martinez se conclui com uma recordação dos honorários de praxe: 2 moedas de ouro [“louis d’or” – ndt] por grau. “Isso dá 16 moedas, a contar desde o grau de aprendiz, companheiro, mestre particular, mestre grande eleito, aprendiz, companheiro Coën, mestre Coën e Mestre grande arquiteto.”

Ao mesmo tempo, Martinez tinha dificuldades com o Tribunal Soberano dos rosa-cruzes. Em 1772, ele embarcava para São Domingos, a fim de coletar ali uma herança. Dois anos depois, morria em Port-au-Prince.

A morte dele não viria a enfraquecer a fé de Willermoz. O Sr. Vulliaud nos traz parte das Instruções que Saint-Martin ensinava nas lojas maçônicas de Lião em torno de 1785. É um amálgama das teorias da emanação caras a Jacob Bœhme e Swedenborg e da alquimia tal como a professavam Paracelso e sucessores. As notas deixadas por Willermoz —e Willermoz escrevia um bocado— mostram nele um discípulo zeloso de Saint-Martin, assim como tinha sido fervoroso de Martinez. E por aí divisamos qual fosse o estado de espírito da maçonaria nessa época, pois Willermoz era o correspondente que tinha os ouvidos da maioria das lojas de França e do estrangeiro. De resto, escreve Gustave Bord, se bem que a G∴ L∴ da França tenha em 1765 desautorizado Martinez, mais tarde ela retratou seu julgamento, “reconhecendo que o rito dos Eleitos Cohens era o que havia conquistado mais pupilos e conservado com maior cuidado o segredo de seus misteriosos trabalhos” [9]. Mas o Eleito Coen mais atuante, de 1765 a 1824, foi certamente Jean-Baptiste Willermoz.


Dentre os seus correspondentes, Willermoz contava Joseph de Maistre. O caso deste não carece de interesse.

Em 1749, Joseph de Bellegarde, marquês de Marches, fundava em Chambéry a loja Três Morteiros, que estava ligada à grande Loja da Inglaterra. Joseph de Maistre faz parte dela desde antes de 1774. Ele éGrande Orador. Ele a abandona em 1778, julgando-a, ao que parece, sonolenta e mundana demais, e passa com quinze Irmãos à loja reformada escocesa da Sinceridade. Essa loja está em relações com o Diretório escocês da IIª província de Auvergne, sediada em Lião e cuja alma é Willermoz. Com o nome maçônico de Josephus a Floribus, Joseph de Maistre faz parte de um grupo de iniciados superiores, os Cavaleiros Grandes Professos. “Essa classe —diz Willermoz— é o último grau em França do regime retificado, difundida em pequeno número, por toda parte desconhecida. Sua existência é mesmo cuidadosamente ocultada, desde a sua origem, de todos os cavaleiros que ainda não foram reconhecidos como dignos e capazes de ser admitidos a ela com fruto.” O colégio de Chambéry contava apenas quatro Grandes Professos, Cavaleiros Maçons da Ordem Beneficente da Cidade Santa.

A correspondência e diversos papéis que o Sr. Émile Dermenghem pôde consultar nos arquivos da família De Maistre mostram que o conde Joseph foi maçom atuante. Ele fez parte da maçonaria escocesa por ao menos dezessete anos.

Como ele concebia a maçonaria e o que viera procurar nela?

Abramos a Memória ao Duque de Brunsvique-Luneburgo, grão-mestre da franco-maçonaria escocesa de estrita observância, escrita em 1782 por ocasião do congresso de Wilhelmsbad.

Primeiro, se ele ousa tomar a palavra, é por ser impossível que a resposta enviada pela Prefeitura de Chambéry às questões apresentadas “responda às perspectivas de alguns irmãos, mais afortunados que outros, que parecem chamados a contemplar verdades de ordem superior”. Nossas origens? Descartemos os templários. Além de que essa fonte não teria nada de muito honroso, sobretudo, a iniciação maçônica é anterior aos templários. “Os irmãos mais doutos do nosso Regime estimam haver fortes razões para crer que a verdadeira Maçonaria nada mais é que a Ciência do homem por excelência, ou seja, de sua origem e destino. Alguns ajuntam que essa ciência não difere essencialmente da antiga iniciação grega ou egípcia.” Nada prova, ou antes muitas razões põem em dúvida, a existência dessa ciência secreta grega ou egípcia. Mas, se parece conveniente reservar ao primeiro grau a beneficência; ao segundo, a reunião das seitas cristãs; o terceiro grau terá por objetivo a revelação da revelação, o estudo docristianismo transcendente. “Tudo é mistério nos dois Testamentos, e os eleitos de uma e outra lei nada mais eram que verdadeiros iniciados. Cumpre, pois, interrogar essa venerável antiguidade e perguntar a ela como entendia as alegorias sagradas. Quem pode duvidar de que esses tipos de investigações venham a fornecer-nos armas vitoriosas contra os escritores modernos que se obstinam em não enxergar na Escritura nada além do sentido literal?” Os primeiros cristãos eram todos favoráveis ao sentido alegórico. E, sobre esse artigo, a Sinagoga não pensava diferente da Igreja. “Que vasto campo aberto ao zelo e à perseverança dos G.P.[= Grão-Professos – ndt]…! Que uns mergulhem corajosamente em estudos de erudição, que podem multiplicar as nossas razões e esclarecer aquelas que possuímos. Que outros, cujo gênio convida às contemplações metafísicas, investiguem na própria natureza das coisas as provas da nossa doutrina. Que outros enfim (e praza a Deus existam muitos destes!) nos digam o que aprenderam daquele Espírito que sopra onde quer, como quer e quando quer.”

Ao mesmo tempo, Joseph de Maistre pleiteia a favor do aparato das cerimônias, inclusive velas, sujeitas a tornar o ritual “cada vez mais sapiente e por vezes augusto”. Ele pleiteia também em prol do segredo e da iniciação progressiva. “Não dá para expressar o quanto esses suspenses, essas esperanças vagas que são mostradas de longe e à meia-luz aos jovens maçons, contribuem para a Ordem, mantendo-os na expectativa.”


No momento em que redigia os Serões de São Petersburgo (1809), Joseph de Maistre tinha abandonado fazia tempo a franco-maçonaria. Por quê? Não teria ela correspondido às suas expectativas de revelações, às suas expectativas também para a renovação da humanidade?

Acaso a Revolução e seus acessos teriam aberto os olhos dele, teriam ao menos despertado suas suspeitas quanto ao contragolpe social de certas doutrinas?

O que importa ao nosso tema é o juízo dele sobre as relações entre franco-maçonaria e ocultismo. O juízo é claro:


“Não digo que todo iluminado seja um franco-maçom: digo somente que todos os que conheci, na França principalmente, eram-no; o dogma fundamental deles é que o cristianismo, tal como o conhecemos hoje, não passa de uma verdadeira loja azul, feita para o vulgo; mas que depende do homem de desejo elevar-se, de grau em grau, até aos conhecimentos sublimes tais como os possuíam os primeiros cristãos, que eram verdadeiros iniciados. É isso que alguns alemães chamam de Cristianismo transcendental. Essa doutrina é uma mistura de platonismo, de origenismo e de filosofia hermética. Os conhecimentos sobrenaturais são o grande objetivo dos trabalhos deles e das esperanças deles; eles não têm dúvida de que seja possível pôr-se em comunicação com o mundo espiritual, ter comércio com espíritos e descobrir assim os mais raros mistérios.” (IIº Colóquio.)

Recordamo-nos de ter acabado de ler isso na Memória ao Duque de Brunsvique, mas com uma entoação um tantinho diferente. De Maistre adiciona:

“Não me acusareis de falar dos iluminados sem os conhecer. Encontrei-os muitas vezes; copiei os escritos deles de meu próprio punho. Esses homens, em meio aos quais tive amigos, muitas vezes me edificaram; muitas vezes me divertiram [nem tanto, ao que parece], e muitas vezes também… mas não quero me lembrar de certas coisas [recuo enigmático: promessas vãs? fraude? avareza? escândalos?]. Procuro, pelo contrário, ver somente os aspectos favoráveis.”

Seja qual for o resto de favor que De Maistre foi capaz de conservar ainda por um certo esoterismo, ele atesta por experiência que em todo franco-maçom há um iluminado. As coisas mudaram, desde então?

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Em carta de Martinez Pasqualis a Willermoz, falou-se de comunicações recebidas dos anjos. De Maistre acaba de fazer menção a comércio com espíritos. O Diário dos primeiros Sonhos escritos da Srta. Joana-Gilberta-Rosália Rochette, de 29 de março a 4 de maio de 1785, realizado por Willermoz com a sua minúcia habitual e publicado por E. Dermenghem,[11]ajuda-nos a compreender, junto de algumas outras publicações do gênero, o que é que se deve entender por essas comunicações e por esse comércio.

Enquanto estava em tratamento em Mont-Doré, a Srta. Rochette enamora-se do jovem De Pizay, que estava morrendo de tuberculose. Ora uma tarde, tendo ido lhe fazer visita, ela o encontra estirado morto em seu aposento. Donde crises convulsivas. Ela chega a Lião, por recomendação do Sr. De Monspey, para ser ali submetida ao tratamento magnético da Sociedade da Concórdia. O conde de Castellas, decano do Capítulo, tendo-a reconhecido como uma compatriota, encarrega-se do tratamento dela. Willermoz se oferece para ajudá-lo e para substituí-lo em caso de ausência. Notemos que esses diversos personagens, a exemplo de Willermoz, são Grandes Professos no rito escocês retificado.

Em 30 de março, às sete horas da noite, a Srta. Rochette, adormecida por meio de passes, e terminadas as orações, vê os santos patronos do Sr. Decano, os seus próprios e os bons anjos dos dois.

Ela continua enxergando De Pizay estirado diante dela, “vergado”, o rosto coberto de estrelas, tendo à direita o tio Castellas e à esquerda sua irmã Marguerite, ambos ajoelhados. Uma entidade bendita se mantém de pé, perto da cabeça de De Pizay. Deve ser parente de Willermoz: contempla-o com muito interesse.

Um anjinho vem presentear De Pizay com um rolinho de papel da grossura de um dedo. Todos os seres bem-aventurados presentes, cercados de luz, erguem os olhos para o céu.

Eis que o rolinho se desdobra. Nele, ela lê: “Consola um ser cuja alma se eleva a Deus e diz a ele que o ente que tu vês ali e que te era desconhecido é o pai dele.” (Claude-Catherin Willermoz.)

O rolinho está preso com filetezinhos de ouro, que De Pizay desfaz toda vez que ele quer ler alguma coisa para ela.

“Ah! —exclama ela—, o pai do Sr. Willermoz vai beijar com grande alegria os pés de De Pizay.”

Ela lê no rolinho que De Pizay aguarda Willermoz junto de muitos de sua família. O anjinho apaga essa palavra e escreve alguns.

Ela vê a Virgem Santíssima, São João Batista e São João Evangelista.

Depois das preces de ação de graças, o Sr. Decano abre os olhos dela, passando três ou quatro vezes os polegares pelas pálpebras dela. São nove horas.

2 de abril, 8 horas da noite. Ela vê chegar pelo seu lado esquerdo uma sombra negra, que se esforça para se aproximar do pai do Sr. Willermoz. A vidente está muito comovida; ela se cala, depois exclama: “Ah!, senhor Willermoz, essa sombra escura é a sua mãe. Ah!, como ela sofre, e faz tanto tempo; ela foi mesmo esquecida, a pobre mulher! Ela me dá pena.”

5 de abril. A vidente repreende fortemente Willermoz por não ter vindo em 3 de abril, como ele prometera. A ausência dele fez gorar a sessão. Ela vê dois dos personagens se jogarem em seus braços. Exclamações, preces ardentes, torrente de lágrimas. O bom Willermoz se sente incapaz de narrar a cena.

8 de abril. Há muitos anjinhos; são mesmo dezoito. Carregam um pulpitozinho. Ali entra um sacerdote, tio de Willermoz. Tira do bolso um rolinho, parece que vai pregar, mas tem a casula branca e preta, como se fosse dizer missa… Ele se põe de joelhos… Ele se levanta.

Ela sente a mãe de Willermoz, as três irmãs dele e o irmão do Sr. Decano no estômago dela. Eles apertam-na com força. Ela parece totalmente sufocada. (Digamos que a vidente está grávida.) Em seguida, são sete que a apertam.

Um personagem aparece todo em chamas. É mais um tio de Willermoz. Uma labareda alcança a sua mão: grito de espanto, de dor. Depois, ela faz durante vinte e oito minutos [admiremos a precisão do relator], sem interrupção alguma, um sermão cheio de energia e de unção, primeiro sobre os sofrimentos do inferno e dos outros lugares de dores, depois sobre o céu. “O sermão foi feito com tanta violência, calor e fuga, que não foi possível reter por escrito uma única frase sua.”

Nas sessões seguintes, o tio sacerdote de Willermoz aparece diversas vezes. O rolinho que ele traz está todo coberto de chamazinhas. A ele se pede que celebre, pela mãe e as três irmãs falecidas de Willermoz, doze missas, com prescrições detalhadas quanto ao modo e os dias, assim como um rol de pedidos ao comércio de sedas lionês do sieur Jean-Baptiste Willermoz. O rolinho acrescenta:


“Toda pessoa da minha família, ou seja: os meus irmãos, etc., de idade conveniente, e os próximos de meu tio falecido, caso se possa informar-lhes sem imprudência, devem dizer três vezes ao dia o salmoDe profundis durante doze dias de sua escolha dentre os vinte e quatro dias prescritos; e, já que alguns deles, por esquecimento ou falta de confiança, poderiam faltar a isso, cumpre suprir a tal, escolhendo tantos pobres quantas forem as pessoas que possamos suspeitar de ter faltado: pagaremos a eles, encarregando-os de fazer as sobreditas preces.”


Pensamos invencivelmente nas correntes de rogos e outras práticas supersticiosas de nossos “iluminados” contemporâneos. O literalismo ocultista varia pouco.

A Srta. Rochette dá a conhecer também que há entre o Sr. Decano e ela própria “uma aliança espiritual de natureza essencial, determinada na Ordem primitiva e que não pode ser destruída, e que aí está a verdadeira causa da amizade e confiança particular que é, e deve subsistir, entre os dois”. — Outra vez as afinidades espirituais predestinadas.

Alguns erros embaraçosos. A vidente anunciara que teria um menino: ela dá à luz uma filha.

No decurso das sessões, faz-se menção a uma certa Srta. Bergé, “enferma do trato social”, que tinha, também ela, sonhos e visões extraordinários. A rogo de Willermoz, assistia ela a uma missa cantada que ele mandava rezar pela mãe dele. Depois da consagração, ela viu, em cima do sacerdote que celebrava missa, outro padre, de hábito sacerdotal. Ora, a Srta. Rochette anunciara a Willermoz que um seu tio sacerdote assistiria invisivelmente a esta missa. Por mais que Willermoz advirta que a Srta. Rochette não tinha comunicação com ninguém, como esquecer-se de sua candura? E esses “transes” artificiais dentro da igreja, em meio aos santos mistérios, têm para os verdadeiros fiéis ar de profanação.


Se formos nos lembrar de que todos os personagens de que aqui se trata pertenciam aos altos graus, e que Willermoz tinha posição de oráculo entre os maçons, resta que a franco-maçonaria de então se entregava, com a religiosidade que era do tempo, às práticas do espiritismo moderno.


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Franco-maçonaria e ocultismo viriam a manter sua aliança.

Procurando entender a razão da expansão fulminante do espiritismo nos Estados Unidos entre 1851 e 1853, René Guénon julga poder descobrir aí obra de uma sociedade secreta. O que está comprovado é que Allan Kardec, grão-profeta do espiritismo a partir de 1854, pertencia à franco-maçonaria, e foi nos círculos franco-maçons que ele recrutou seus primeiros adeptos. Léon Denis, que se fez durante quarenta e cinco anos, de 1882 a 1927, comissário viajante das doutrinas espíritas em França e no estrangeiro, fizera-se inscrever na maçonaria e guardou o espírito dela a vida inteira.

Madame Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica, que pretende inspirar-se das doutrinas herméticas da Índia, exercera de 1871 a 1878 a profissão de médium no Cairo. Ela abrira ali um “círculo de fenômenos”. O círculo, aliás, teve de ser fechado por causa de fraude. Ela associou-se, como se sabe, ao coronel Henry Steele Olcott, que dividia os lazeres dele entre lojas maçônicas e sociedades de espiritismo. O intermediário dos dois foi um misterioso John King, que o coronel Olcott diz ser membro de uma loja maçônica, assim como era o seu correspondente Rev. Stainton Moses, e também Victor Michal, o primeiro magnetizador de Madame Blavatsky. Um dos membros importantes da “Sociedade de Investigações Espiritualistas” que logo viria a tornar-se a “Sociedade Teosófica”, Charles Sotheran era alto dignitário da maçonaria americana.

Se o general Albert Pike, Grão-Mestre do Rito Escocês para a jurisdição meridional dos Estados Unidos, frequentou por um tempo Madame Blavatsky, o que parece, nota conscienciosamente o Sr. René Guénon, é que essas relações não tiveram prosseguimento. Igualmente, é pura gabarolice da parte de Madame Blavatsky badalar seu título de Arqui-Auditora no Arya Samâj, que seria “a principal loja maçônica da Índia, a mais antiga das lojas maçônicas, anterior a Jesus Cristo”. Não houve lojas maçônicas nas Índias antes dos ingleses.[12]

Em torno de 1889, a Sociedade Teosófica concluíra uma espécie de aliança com uma Societas Rosicruciana, diferente dos rosa-cruzes de origem alemã de que falamos. Essa Societas Rosicruciana tinha por objetivo o estudo das tradições ocidentais; ela mantinha os seus conhecimentos secretos; os irmãos estavam obrigados ao segredo quanto ao seu grau. Ela não admitia senão maçons que possuíssem grau de Mestre entre seus membros, cujo número está limitado a cento e quarenta e quatro.[13]

Mais recentemente, no dizer do Sr. Guénon, o teosofismo fez aliança, não abertamente com a franco-maçonaria oficial, mas com lojas que podem ser chamadas de “irregulares”, decerto que empreendedoras e atrevidas. De resto, existe afinidade profunda entre o pensamento maçônico e o pensamento teosófico: todos dois tendem a uma espécie de internacionalismo filosófico acima de todas as religiões.[14]


Assim, franco-maçonaria e ocultismo, em suas formas diversas, se reunem num mesmo pensamento: o estabelecimento de uma Igreja universal sem Deus ou na qual o homem seria o deus.

Resumamos o que precede.

Descartemos, como puramente fantasiosas, aquelas origens que datam a franco-maçonaria desde Christian Rosenkreutz, os templários, os obreiros do Templo de Salomão, os mistérios antigos, Noé ou o Paraíso terrestre. Ela nasce na Inglaterra, entre os anos de 1717 e 1723. De início, antes de tudo política e, como tal, mesclada na luta entre os Stuart e a casa de Orange ou a de Hanovre, ela adquire pouco a pouco caráter especulativo ou filosófico. Recrutando seus primeiros membros em meio a artesãos e personalidades protetoras das confrarias de construtores, ela toma de empréstimo deles as insígnias, os ritos e a lei do segredo quanto aos procedimentos de ofício. O sentido alegórico que ela a estes atribui, o reforço cada vez maior da lei do segredo, de que ela faz para si uma força e um atrativo, mais até do que uma defesa, dão a ela seu caráter de sociedade de iniciados. A invasão das doutrinas rosacrucianas, lá por 1720 e 1723, desencadeia nela o gosto por crenças e práticas ocultistas. Daí em diante, tudo nela se revestirá de um aparato e de formas herméticas.

Não parece que um grande desígnio nem uma doutrina acabada tenham presidido ao seu nascimento. Ela adota, conforme o espírito do tempo, a religião natural com crença no Ser Supremo e na imortalidade da alma. Se ela conserva, por um instante, a crença na divindade de Jesus Cristo, é como por resquício de hábito: não se vê influência dessa fé na ação dela. Desde o início, constata-se um distanciamento, uma desconfiança e, dentro em pouco, uma hostilidade para com a Igreja e toda autoridade religiosa.

O espírito rosacruciano é um espírito luterano, nitidamente antipapal: com os rosa-cruzes, esse espírito domina pouco a pouco a maçonaria. Joseph de Maistre nota “a aversão deles por toda autoridade e hierarquia sacerdotais. Essa característica é generalizada entre eles: nunca encontrei ali exceção perfeita, dentre os numerosos adeptos que conheci… O iluminismo (aquele dos rosa-cruzes maçons) aniquila fundamentalmente a autoridade, que é, contudo, a base do nosso sistema.” (IIº Colóquio.) E foi isso, ao que tudo indica, o que levou à ruptura do autor de Du Pape com a maçonaria.

Sem desígnio formado de antemão, ela entra em todos os movimentos que vê erguerem-se contra a Igreja: jansenismo, filosofismo, igualitarismo, martinismo, espiritismo, teosofismo. Ela segue, mais do que cria; mas segue para conduzir e dominar.

Ela fez a Revolução Francesa? Ela entrou no movimento revolucionário, como entra em todo movimento anticatólico e anticristão. Os seus membros mais exaltados inspiraram os Clubes de onde, no juízo de Augustin Cochin, brotou a Revolução, mais que das Lojas. Em meio à nobreza que acabou na guilhotina eram numerosos os franco-maçons: não previam, em sua leviandade e inconsciência, o resultado daquilo que favoreciam.

Não parece, tampouco, que a maçonaria tenha sido um organismo especificamente judaico. A maçonaria serviu-se dos judeus; e os judeus, da maçonaria; cada qual para seus fins, e os fins puderam frequentemente coincidir. Mas não se vê no mundo judeu aquela unidade e continuidade que alguns escritores supõem.

Tudo isso torna a maçonaria menos maléfica? De maneira nenhuma. Sua maleficência e força consiste em apoiar-se nos maus elementos da opinião e explorá-los. Tática essencialmente astuta e destrutiva. Foi assim que, durante longo tempo aburguesada enquanto se contentava com ser voltairiana, ela tornou-se, como documentos recentes demonstram, permanecendo fiel ao seu espírito anticristão, comunista, bolchevista, sem abandonar seus ares de oculta e ocultista.


Notas

1. La Franc-Maçonnerie en France. Des Origines à 1815 [A Franco-Maçonaria na França. Das Origens a 1815]. Volume I. Les Ouvriers de l’Idée révolutionnaire [Os Obreiros da Ideia Revolucionária, 1688-1771]. Paris, 1908. O primeiro volume foi publicado, apenas. Não há como lastimar o bastante que dificuldades de ordem principalmente material, ao que parece, tenham detido o autor na publicação de seus trabalhos.

2. Maio de 1915, p. 162-165.

3. A primeira tradução francesa foi publicada por Chacornac, em 1928.

4. R. Le Forestier, L’Occultisme et la Franco-Maçonnerie écossaise [O Ocultismo e a Franco-Maçonaria Escocesa]. Capítulo IV. Paris, Perrin, 1938.

5. Ver Gustave Bord, obra citada, p. 165.

6. Gustave Bord, obra citada, p. 246-247.

7. Les Roses-Croix Lyonnais au XVIIIe siècle. Paris, Émile Nourry, 1939.

8. Com sua ortografia pitoresca, Pasqualis escreve: Correspondance sain patique… equinosses, de conssert… A exemplo do Sr. P. Vulliaud, nós reconstituímos a ortografia quase normal, para evitar ao leitor uma chateação inútil.

9. Obra citada, p. 246.

10. La Franc-Maçonnerie. Mémoire au duc de Brunswick, por Joseph de Maistre. Introdução por Émile Dermenghem. Paris, Rieder, 1925; p. 14. — Ver ainda:Joseph de Maistre mystique, por Émile Dermenghem. Paris, la Connaissance, 1925, e Joseph de Maistre franc-maçon, por Paul Vulliaud. Paris, Nourry, 1916.

11. Les Sommeils. Estudo de Émile Dermenghem, Paris, la Connaissance, 1926.

12. René Guénon, Le Théosophisme. Histoire d’une Pseudo-Religion [O Teosofismo. História de uma Pseudo-Religião]. Paris, 1921, p. 17-30.

13. Obra citada, p. 33.

14. Obra citada, p. 241-250.

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Rev. Pe. Lucien ROURE, S. J., Ocultismo e Franco-Maçonaria, jun. 1930; “L’Occultisme et la Franc-Maçonnerie”, rev. Études, ano 67, tomo 203, fasc. de 5 jun. 1930, p. 556-577.


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