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Resposta à terceira objeção contrária à Tese de Cassicíaco

Padre Michel Louis GUÉRARD DES LAURIERS, O. P.

Cahiers de Cassiciacum, vol. I, pp. 90-99:





[EXCERTO DA APRESENTAÇÃO PELA REDAÇÃO DA REVISTA SODALITIUM:]

Ultimamente foi feita uma objeção à Tese de Cassicíaco: Na sociedade civil, se numa nação se instala um governo ilegítimo, suas leis são normalmente inválidas; mas, se algumas delas servem ao bem comum, nesse caso são válidas e, portanto, obrigatórias para os súditos; esse governo pode ainda tornar-se legítimo se, no fim das contas, conseguir assegurar o bem comum da sociedade. A objeção imagina, então, que a mesma coisa esteja acontecendo atualmente na Igreja: Bento XVI seria legítimo pastor, porque asseguraria um certo bem comum, por exemplo nomeando bispos às várias dioceses, e impedindo que a parte jurídica da Igreja acabe em anarquia. Essa objeção não leva em conta que, na Igreja, a parte jurídica depende da parte sobrenatural, da qual recebe o vigor e a vida. Por isso, responde-se facilmente: o fim de toda sociedade humana é assegurar o bem comum natural; o fim da Igreja é sobrenatural, assegurar a glória de Deus e a salvação das almas (definido, pelo Pe. Guérard, Fim-Bem da Igreja). Este último só pode ser alcançado pela assistência do Espírito Santo, ou pela comunicação da Autoridade por Jesus Cristo ao seu Vigário ([definido, pelo Pe. Guérard, como o] “estar com” [de Nosso Senhor com o Papa]). Essa comunicação é dada por Jesus, de maneira permanente, àquele que tem o propósito habitual de assegurar a glória de Deus e a salvação das almas. Por isso, a pessoa eleita no conclave deve ter o propósito habitual e objetivo de querer o Fim-Bem da Igreja, propósito visível a partir de seus atos exteriores. Sua intenção subjetiva ou os motivos mais profundos que o animam dizem respeito à sua consciência, de que somente Deus é juiz; não podem e não devem interessar aos fiéis. Se a pessoa eleita não tem esse propósito habitual, não pode receber a comunicação da parte de Cristo. E Jesus Cristo não dá a comunicação de maneira descontínua ou temporária: se assim fosse, na cátedra de Pedro haveria alguém que ora é Papa, ora não, e isso destruiria o princípio mesmo da Autoridade. Se falta essa comunicação, a pessoa eleita não pode alcançar o Fim [Finalidade] da Igreja. Pretender que ele possa obter o Fim [Finalidade] da Igreja sem essa assistência, ou pensar que o bem comum da Igreja consista na manutenção da hierarquia e não na glória de Deus e salvação das almas, significa atribuir à Igreja sobrenatural exatamente aquelas coisas que pertencem formalmente a uma sociedade humana natural, e é, na prática, considerar a Igreja como uma sociedade natural. Pelo contrário, a Igreja é uma sociedade essencialmente sobrenatural… Essa objeção já havia sido dirigida à Tese faz trinta anos, e o Pe. Guérard respondera no primeiro número dos Cahiers de Cassiciacum(1), às páginas 90-99, que republicamos aqui, a seguir. [1. Cahiers de Cassiciacum, Études de Sciences Religieuses, vol. 1, cap. IV: “Le Cardinal J. B. Montini n’est plus pape formaliter. Preuve de cette affirmation” (O Cardeal J. B. Montini não é mais formalmente papa. Prova desta afirmação). Association Saint-Herménégilde, Nice, Maio de 1979, págs. 90-99.] Também no livro do Pe. Bernard Lucien “La situation actuelle de l’Autorité dans l’Eglise. La Thèse de Cassiciacum” [A situação atual da Autoridade na Igreja. A Tese de Cassicíaco] o argumento é tratado nas páginas 41-51.


Resposta à terceira objeção contrária à Tese de Cassicíaco

(1978) Padre Michel Louis GUÉRARD DES LAURIERS, O. P.

Cahiers de Cassiciacum, vol. I, pp. 90-99:

Terceira opinião contrária à Tese: Paulo VI é papa quando é católico. O Cardeal Montini não é “papa”, ou em todo caso não deve ser seguido, quando não é católico. a) Essa terceira opinião supõe que se ignore “a intuição” que fundamenta, ao que parece, a segunda opinião (2).

[2. Nota da Redação (da revista Sodalitium): dessa “intuição”, o Pe. Guérard havia falado nas páginas 88-89, respondendo à segunda objeção, que reproduzimos a seguir:

« Segunda opinião contrária à “tese”: Paulo VI é papa; logo, tem direito à obediência incondicional. Essa opinião repousa numa intuição que em si mesma é justa, embora repouse concretamente num argumento falso.

Se o Papa é verdadeiramente Papa, é ele o juiz da relação que uma determinação eventual tem com o Bem-Fim que está confiado à Igreja.Se, pois, o Papa é verdadeiramente Papa, é necessário obedecer-lhe; é ao próprio Cristo que se obedece na pessoa de seu Vigário: “quem vos ouve, ouve a Mim” (Lc 10, 16).

Se o Papa é verdadeiramente Papa, é vão, para refutar um de seus mandamentos, aduzir que esse mandamento vá contra o Bem divino que é o Fim [Finalidade] da Igreja. Isso é vão, porque, sempre, pertence à Autoridade o julgar qual seja a relação de uma coisa com o fim comum; e porque, se o Papa é verdadeiramente Papa, ele tem a Autoridade.

Aqueles que sustentam essa opinião se fundam, pois, numa intuição justa, a saber: que na Igreja a Autoridade implica sempre uma absolutez própria: formaliter, ela procede “do Alto”; a referência ao Bem-Fim é sua condição sine qua non e, por isso, o [seu] fundamento na ordem criada; ela não é o seu constitutivo instituído por Deus ».]

Admitir que o “papa” possa ser católico, mas só ocasionalmente, significa admitir que a Autoridade seja, na Igreja, exatamente aquilo que ela é em toda e qualquer coletividade humana. A autoridade que não assegure mais a responsabilidade que ela deveria assumir, pode todavia dar normas que objetivamente sejam válidas, e que de fato obriguem, pois são justificadas pelo bem comum; e porque, na ordem natural, a autoridade “que vem de Deus” (Rom. 13, 1) não tem outro fundamento próximo que não seja a realização do bem comum. Na Igreja, porém, não pode ser assim. O Papa não pode ser “católico” só ocasionalmente. Ou o Papa é “católico”, e é Papa em todos os atos que realiza; deve ser seguido em cada um de seus mandamentos, isto é: habitualmente. Ou então, o papa não é “católico”; e não tem o direito de ser seguido, pois não é Papa formalmente. Ou um, ou outro. Um exclui o outro. A razão disso é, repitamo-lo (§ 2, b 2), que “realizar o Bem-Fim” é somente, na Igreja, condição sine qua non, e por isso sinal da Autoridade. O “constitutivo formal” (3) da Autoridade é a Comunicação do “estar com” praticado por Cristo com a pessoa (física e) moral que é capaz de recebê-la.

[3. Chamamos de “constitutivo formal” da autoridade “aquilo que constitui formalmente a Autoridade”, ou “a realidade determinante quepropriamente [in proprio] lhe confere o ser”.]

Essa Comunicação é permanente da parte de Cristo, assim como o propósito de cumprir o Bem-Fim tem de ser habitual na Autoridade. Não se trata de uma Comunicação per modum actus, que seria dada para certos atos e não para outros, a qual tornaria o Papa “católico” em certas ocasiões, e não em outras ocasiões. (…) Estender esse regime ao exercício do Magistério ordinário seria arruinar o princípio de autoridade tal como foi instituído na Igreja. Isso levaria a dissociar uma da outra a duas entidades: de um lado, o papa como pessoa física, entidade permanente; de outro lado, o papa enquanto papa, entidade esporádica existente apenas nos atos em que o Papa é “católico”. Essa terceira opinião é, portanto, inaceitável. Ela é gravemente ferida de naturalismo, pois assimila a Autoridade tal como ela foi, na Igreja, instituída divinamente, àquilo que a autoridade é numa coletividade humana que pertence somente à ordem natural. Essa terceira opinião quer conciliar o “dever de desobedecer” e o reconhecimento da Autoridade. Ela se aniquila na incoerência. Porque, se há Autoridade, há o dever de obedecer; e, se não há Autoridade, o “dever de desobedecer” é tão absurdo quanto o de obedecer. b) Essa terceira opinião é resultado da tese: “Paulo VI é liberal; tudo se explica porque Paulo VI deságua no liberalismo”. Que o liberalismo explique o comportamento adotado pelo Cardeal Montini, é possível. Mas não se deve confundir a causa formal com a causa eficiente, confundir “aquilo que uma coisa é em si mesma” com aquilo que diz respeito somente à sua gênese. Embora seja verdade “que se conhece bem somente aquilo que se vê nascer”, é o erro do historicismo e da psicanálise identificar toda a realidade, particularmente a pessoa humana, com aquilo que dela é apenas o processo a partir da origem. Que o Cardeal Montini seja “conaturalmente” um liberal, e de que modo e em que grau, Deus o sabe, Deus só; o Cardeal Montini o ignora, visceralmente. Que o Cardeal Montini seja divinamente inspirado revelando-lhe qual é, em verdade, a subversão de que é vítima a Igreja, com manifestações espetaculares de fornicação mental com os inimigos da Igreja, isso Deus o sabe, Deus só; o próprio Cardeal Montini o ignora muito provavelmente; não tem de sabê-lo, enquanto executor. Que o Cardeal Montini “sofra perseguição pela justiça”, que seja violentado, humilhado, desprezado, e que seja o mais santo dos Papas que já o foram, isso Deus o sabe, absolutamente Deus só. Pois, certamente, o Cardeal Montini não o sabe senão “talvez”, pois ele próprio o afirmou:

“Em algumas de nossas notas privadas, encontramos a esse respeito (da eleição pontifícia):

‘Talvez o Senhor tenha me chamado a este serviço (do Sumo Pontificado) não para que eu nele tome alguma atitude, não para que eu governe a Igreja e salve-a de suas dificuldades presentes, mas a fim de que eu sofra algo pela Igreja, e a fim de que se manifeste claramente que é Ele, e não um outro, que a guia e salva.’

Nós vos confiamos esse sentimento, certamente que não para fazer um ato público – e portanto vaidoso – de humildade, mas a fim de que também a vós seja dado rejubilar-se com a tranquilidade que experimentamos nós mesmo ao pensar que não é a nossa mão fraca e imperita que está posta sobre a barca de Pedro, mas sim a mão invisível do Senhor Jesus, a sua mão forte e amante”.

Mas essas coisas que somos inclinados, definitivamente, a ignorar, precisamente não temos necessidade de conhecê-las, porque primordialmente não temos o dever de conhecê-las. Não é nem indispensável nem sequer útil para os fiéis escrutar quais possam ser, no foro interno, as disposições do Cardeal Montini, procurar determinar se é “liberal” e em que grau, se ele não seria a réplica neo-testamentária do profeta Oseias (4), ou então um mártir imolado à Verdade.

[4. Nota da Redação: Oseias, que viveu no séc. VIII a.C., profetizou com pesar as desgraças que viriam a acontecer com Israel por sua infidelidade ao Senhor.]

Essas disposições, segundo sua natureza e consideradas em si mesmas, pertencem à relação que o Cardeal Montini mantém com Deus. Ninguém pode nem deve julgar: “Não julgueis” (Mt 7, 1); “Da disposição de ânimo ou intenção, que por natureza é interior, a Igreja não julga; mas a Igreja deve julgá-la na medida em que ela for manifestada” [5. “De mente vel intentione, utpote quæ per se quidam est interius, Ecclesia non iudicat; at quatenus extra proditur, judicare de ea debet” (Leão XIII, Litt. Enc. Apostolicæ Curæ, 13-9-1898, DS 3318).]. Aquilo que os fiéis têm necessidade de saber não é qual pode ser o liberalismo, o profetismo, ou a santidade do Cardeal Montini. Aquilo que têm o dever de procurar conhecer, a partir daquilo que observam do Cardeal Montini, é isto: Formaliter é Papa ou não é? SI, NO, tertium non datur. Se é Papa formaliter, cumpre obedecer-lhe. Se não é papa formaliter, não é preciso levá-lo em consideração: e nem tampouco, sobretudo, cumpre pedir-lhe nada; ou então nomeá-lo “una cum Ecclesia sancta catholica”, no Cânon que ele buscou em vão obrogar… É essa segunda posição que nos parece ser a verdadeira, pois é a única coerente com os fatos.

Domingo de Pentecostes, 14 de maio de 1978. M. L. Guérard des Lauriers, o.p.

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Pe. M. L. GUÉRARD DES LAURIERS, O. P., Resposta à terceira objeção à Tese de Cassicíaco, 1978; “Un’obiezione alla Tesi di Cassiciacum. La risposta di P. Guérard des Lauriers”, in: Sodalitium, n.º 62, Ano XXIV, n.º 4, de jun. 2008, pp. 28-31.


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