Por Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, O.P.
(Traduzido pelo Seminarista Paulo Cavalcante)
Pe. Reginald Marie Garrigou-Lagrange, OP (+1964) foi um teólogo católico francês da Ordem da Verdade (Dominicano), conhecido como um dos principais neotomistas do século XX. Ao comentar a Summa Theologica de Santo Tomás de Aquino, ele expandiu a resposta do Doutor Angélico à pergunta “Se o homem não tivesse pecado, Deus teria se encarnado?” Para acompanhar seu comentário abaixo, seria útil referir-se ao pensamento original de Santo Tomás em sua Summa III, C.3, Q.1, art. 3. [1]
Por estas razões [ele está se referindo às “objeções” listadas por Tomás de Aquino na Summa], Alexandre de Hales, Santo Alberto e mais tarde Scotus consideraram mais provável que o Verbo tivesse se encarnado mesmo que o homem não tivesse pecado.
Esta questão não assume menor importância se for proposta da seguinte forma: Qual é o traço fundamental de Cristo? É para ser o Salvador e vítima, ou preferencialmente para ser o professor, Rei dos reis, Senhor de todos? É apenas de importância secundária que Ele seja o Salvador e a vítima?
A conclusão de Santo Tomás no corpo deste artigo é a seguinte. “É mais apropriado dizer que a obra da Encarnação foi ordenada por Deus como um remédio para o pecado, de modo que, se o pecado não existisse, a Encarnação não teria existido. E ainda assim o poder de Deus não se limita a isso; mesmo que o pecado não existisse, Deus poderia ter encarnado.”
São Tomás, em uma de suas obras anteriores, dá esta opinião como provável, na verdade, como mais provável. Da mesma forma, em outro de seus comentários, ele diz: “Não sabemos o que Deus teria ordenado (por outro decreto) se Ele não tivesse conhecido de antemão o pecado do homem. No entanto, escritores autorizados parecem afirmar expressamente que Deus não teria encarnado se o homem não tivesse pecado. Inclino-me mais a esta visão.”[285]
Prova. Santo Tomás prova sua conclusão com um argumento, pois, como veremos imediatamente, não há distinção entre o argumento “sed contra” e o argumento no corpo deste artigo, mas ele os combina em um argumento, que pode ser apresentado pelo seguinte silogismo.
Aquilo que depende unicamente da vontade de Deus, e para além de tudo o que a criatura tem direito, só nos pode ser dado a conhecer na medida em que está contido na Sagrada Escritura.
Mas em toda a Sagrada Escritura o pecado do primeiro homem é apontado como a razão da Encarnação.
Por isso é mais oportuno dizer, visto que parece estar mais de acordo com o sentido da Sagrada Escritura, que o pecado do primeiro homem é a razão da Encarnação. Esta conclusão é mais e menos que uma conclusão teológica. É mais porque parece ser o sentido da Sagrada Escritura; é menor porque não é absolutamente certo.
O maior é evidente, porque o que depende da mais livre vontade de Deus é conhecido apenas por Ele mesmo, e não há outra maneira pela qual os dons sobrenaturais [286] possam ser conhecidos, exceto através da revelação, que está contida na Sagrada Escritura e também na tradição. Por isso a Escritura diz: “Pois quem dentre os homens é aquele que pode conhecer o conselho de Deus? Ou quem pode pensar qual é a vontade de Deus?»[287]
Prova da menor. O próprio Cristo testifica, dizendo: “Os sãos não precisam de médico, mas sim os enfermos. Não vim chamar à penitência os justos, mas sim os pecadores».[288] E ainda: «Porque o Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido». veio ao mundo para salvar os pecadores».[290] Noutra parte ele escreve: «Deus enviou o Seu Filho nascido de mulher, nascido sob a lei, para redimir os que estavam sob a lei».[291] O amado Apóstolo testifica. : “Deus amou o mundo de tal maneira que enviou o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. [292] São João Batista ao ver Jesus, diz: “Eis o Cordeiro de Deus… que tira o pecado do mundo.”[293] Da mesma forma, o Antigo Testamento atribui a cura do contrito de coração e a abolição da iniqüidade da terra, como as únicas razões para a promessa e expectativa do[ 294] Além disso, o nome Jesus significa Salvador.[295]
Mas a Sagrada Escritura não diz explicitamente que esta razão da Encarnação seja a única possível, e fala com referência a nós, homens, e à nossa salvação. Portanto, o argumento deste ponto de vista não é apodítico.
Mas este argumento extraído da Sagrada Escritura é plenamente confirmado pela tradição. O Concílio de Nicéia, no símbolo que também a Igreja canta, diz: “Quem por nós, homens, e para nossa salvação, desceu do céu. E foi feito carne pelo Espírito Santo e feito homem».[296] Da mesma forma, no Concílio de Sens e por Inocêncio II, foi condenada a proposição de Abelardo, que dizia: «Cristo não assumiu a nossa natureza humana para libertar nos livrar do jugo do diabo”.[297]
Os Padres insistem nas passagens acima citadas quando falam sobre o motivo da Encarnação.
Diz Santo Irineu: «Se nenhuma carne tivesse que ser salva, o Verbo de Deus não se teria tornado carne».
São Cirilo de Alexandria comenta: «Se não tivéssemos pecado, o Filho de Deus não se teria tornado semelhante a nós».[299]
Outros Padres podem ser citados. Assim, Santo Atanásio escreve: “O Verbo de modo algum teria se tornado homem se a necessidade da humanidade não tivesse sido a causa”.
São Gregório Nazianzeno declara: “Mas qual foi a razão para Deus assumir a nossa natureza humana por nossa causa? Certamente para que Ele possa preparar o caminho para o céu para nós; por que outra razão pode haver?”[301]
São João Crisóstomo, o chefe da Igreja Grega, também diz: “Ele assumiu esta nossa natureza humana unicamente por causa da Sua misericórdia, para que pudesse ter misericórdia de nós; não há outra razão senão esta para nos dispensar da nossa obrigação». [302] Isto significa dizer que o motivo imediato do decreto eficaz da Encarnação foi formalmente o motivo da misericórdia.
Finalmente, também Santo Agostinho, chefe da Igreja Latina, é citado no contra-argumento deste artigo, que diz: “Se o homem não tivesse pecado, o Filho do homem não teria vindo”. E em outro lugar ele diz: “Visto que Adão foi feito, a saber, homem justo, não havia necessidade de mediador. Mas quando os pecados separaram a raça humana de Deus, foi necessário que fôssemos reconciliados com Deus através de um mediador.”[303] O testemunho da glosa, citado no contra-argumento, deve ser adicionado às citações acima, a saber. : “Tire as doenças, tire as feridas e não há necessidade de remédios.”[304]
Os escotistas dizem que estes textos da Sagrada Escritura e dos Padres provam apenas que, se Adão não tivesse pecado, Cristo não teria vindo em carne passível, ou como Médico e Salvador.
Os tomistas respondem que, em tal caso, as declarações dos Padres, afirmando de forma absoluta, simples e sem restrições, que Cristo não teria vindo se Adão não tivesse pecado, seriam falsas; ou certamente haveria muitos equívocos ocultos em suas palavras. Assim, a seguinte afirmação seria falsa. Cristo não está no sentido da Eucaristia: Ele não está na Eucaristia em carne passível.
Mas Santo Agostinho diz, como citado acima: “Se o homem não tivesse pecado, o Filho do homem não teria vindo”, ao passo que deveria ter dito: Ele teria vindo de fato, mas não em carne passível, como o Redentor.
Os escotistas também apelam às palavras de São Paulo, que diz de Cristo: “Quem é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criatura, porque Nele foram criadas todas as coisas no céu e na terra…. Todas as coisas foram criadas por Ele e Nele. E Ele é antes de tudo, e por Ele subsistem todas as coisas.”[305]
A respeito deste texto, os tomistas observam que, mesmo que estas palavras se refiram não apenas ao Verbo antes da Encarnação, mas também a Cristo, ainda assim não expressam o motivo imediato da Encarnação, mas que Cristo está acima de toda criatura, por razão de Personalidade dele.
Por isso, muitos autores dizem que a opinião de Santo Tomás se de São Boaventura tem o seu fundamento mais no testemunho da Escritura e dos Padres.[306]
Portanto, por causa deste argumento fundamental, Santo Tomás diz com razão na sua conclusão: “Portanto, como em toda a Sagrada Escritura o pecado do primeiro homem é atribuído como a razão da Encarnação, é mais de acordo com isto dizer que a obra da Encarnação foi ordenada por Deus como remédio para o pecado; de modo que, se o pecado não existisse, a Encarnação não teria existido”,[307] pelo menos em virtude do presente decreto; mas poderia ter sido independentemente do pecado em virtude de outro decreto. Isto significa que o motivo imediato da Encarnação foi formalmente o motivo da misericórdia, nomeadamente, aliviar a miséria da raça humana.
Confirmação. Os tomistas apresentam um segundo argumento que serve como uma corroboração completa do anterior.
Visto que os decretos eficazes de Deus não são modificados por Ele, mas desde a eternidade incluem também todas as circunstâncias da coisa a ser produzida, o presente decreto eficaz da Encarnação desde a eternidade inclui a passibilidade da carne. Mas, como admitem os escotistas, a encarnação em carne passível supõe a queda. Portanto, em virtude do presente decreto, o Verbo encarnado não existiria se o homem não tivesse pecado.
Explicação do principal. O decreto eficaz de Deus inclui todas as circunstâncias das coisas a serem produzidas, porque é um ato da mais perfeita prudência, que atende a todas as circunstâncias do objeto, na medida em que se preocupa com todos os detalhes que podem e devem ser feitos corretamente no momento. A diferença entre Deus e nós consiste em que pretendemos muitas coisas, mesmo que estas estejam eficazmente ao nosso alcance, embora não prestemos atenção a todas as circunstâncias detalhadas, porque estas não vêm sob a nossa observação simultaneamente, mas sucessivamente, nem podemos prever com certeza as circunstâncias absolutamente fortuitas até mesmo do amanhã. Pelo contrário, Deus conhece todas as coisas futuras desde a eternidade, e nada acontece sem um decreto positivo ou permissivo da Sua vontade, positivo no que diz respeito ao que é real e bom, permissivo no que diz respeito ao mal. Daí o decreto positivo e eficaz de Deus, por ser muito prudente, inclui todas as circunstâncias da coisa a ser produzida. Portanto, Deus, diferente de nós, não modifica Seus decretos eficazes, e conseqüentemente o decreto eficaz da Encarnação em carne passível, para que de fato a Encarnação ocorra, é o único emitido por Deus, e este decreto, como os escotistas admito, supõe a queda da raça humana. Portanto, em virtude do presente decreto eficaz, se o homem não tivesse pecado, o Verbo não teria se encarnado.
Portanto, os escotistas deveriam dizer que o decreto da Encarnação considerado em si mesmo e não na carne passível é um decreto condicional e ineficaz, como a vontade antecedente de Deus de salvar a raça humana, porque é dirigido a algo considerado em si, abstraindo, como fosse, a partir de circunstâncias particulares de tempo e lugar. Mas deve ser acrescentado em virtude do presente decreto ineficaz, nada passa a existir, pois nenhum ser ou qualquer coisa boa é produzida, porque estes só podem ser produzidos de acordo com as condições certas no momento, e no momento nada é realizado,[ 308] pois o decreto condicional e ineficaz não se refere à existência das coisas. Portanto, em virtude deste decreto particular e ineficaz, o Verbo de facto não teria, nas presentes circunstâncias, encarnado nem em carne passível nem em carne impassível.
Instância. Mas talvez este argumento prove apenas que a reparação do pecado foi uma condição indispensável para a vinda de Cristo. Não se segue como consequência imediata que esta condição indispensável tenha sido o motivo imediato da Encarnação, porque nem toda condição indispensável é o motivo da ação de alguém.
Resposta. Dizemos que a Escritura atribui esta condição como motivo, e nenhum outro motivo próximo é atribuído a esta condição, exceto o motivo comum e último em todas as obras de Deus, que é a manifestação de Sua bondade ou Sua glória.
Este argumento é muito contundente. Na verdade, parece ser apodíctico, na medida em que equivale a dizer que Deus, ao contrário de nós, não faz depois uma mudança naquilo que Ele decretou eficazmente trazer à existência. Esses decretos são, desde o momento em que são pronunciados, os mais perfeitos e incluem circunstâncias futuras até nos mínimos detalhes. Assim, da mesma maneira, foi decretado por Deus que Pedro alcançaria a glória eterna apenas por meio de penitência após sua tríplice negação, o que foi permitido por Deus. Este argumento é válido contra a opinião de Suárez.[309]
Objeção. A eleição de Pedro para o céu é um decreto eficaz. Mas este decreto não inclui no seu objecto todas as circunstâncias, por exemplo, se Pedro alcançará o céu por meio do martírio, pois isto pertence a um decreto subsequente. Portanto, nem todo decreto eficaz inclui todas as circunstâncias.
Resposta. Eu distingo o principal. A eleição de Pedro para o céu é um decreto eficaz do fim, isto eu admito; dos meios, isso eu nego.
Eu contra distinguo o menor. Que o decreto não inclua todas as circunstâncias dos meios, admito; do fim, isso eu nego. Embora o decreto relativo ao fim contenha virtualmente o decreto relativo aos meios.
Assim, a eleição de Pedro para o céu inclui um certo grau de glória para esta pessoa individual, juntamente com todas as circunstâncias associadas. Da mesma forma, portanto, o decreto da Encarnação deveria terminar no Cristo individual, agora mesmo para nascer da Virgem Maria, em carne passível, tal como realmente aconteceu.
Os escotistas insistem em dizer: Posso decretar com eficácia que alguém deve pagar uma dívida de cem dólares, sem considerar se essa dívida deve ser paga em ouro ou prata.
Resposta.
1. Nós, mortais, podemos certamente fazê-lo, pois os nossos decretos são desde o início imperfeitos, muitas vezes expressos de forma vaga, especialmente se dizem respeito a algo a ser cumprido no futuro.
2. Além disso, o referido decreto diz respeito ao fim, ou seja, ao preço a pagar, e não ao meio pelo qual deve ser pago.
3. O presente decreto não diz respeito à produção da coisa, mas ao aproveitamento de coisa já produzida, nomeadamente, de uma quantia em ouro ou prata. Pelo contrário, o decreto eficaz da Encarnação diz respeito a algo a ser produzido agora mesmo, portanto em carne passível, tal como realmente aconteceu. Portanto, este argumento repousa em bases muito sólidas, isto é, depois que a Encarnação se tornou um fato consumado.
Confirmação da prova. Santo Tomás confirma sua prova pela solução das objeções que colocou no início deste seu terceiro artigo.
A primeira objeção foi proposta por Santo Agostinho,[310] que diz: “Muitas outras coisas devem ser consideradas na Encarnação de Cristo além da absolvição do pecado”.
Resposta à primeira objeção. “Todas as outras causas atribuídas no artigo anterior têm a ver com o remédio para o pecado”, pois, pela Encarnação, o homem é afastado do mal e recebe o maior dos incentivos para praticar as virtudes da fé, da esperança e da caridade.
Devemos também admitir que Deus, no decreto da Encarnação, além da redenção da raça humana, tinha em mente como fim último e comum de todas as Suas obras, a manifestação da Sua bondade ou da Sua glória; mas agora é uma questão do motivo imediato da Encarnação, ou seja, se ela está ligada ao pecado.
A segunda objeção era: pertence à onipotência de Deus manifestar-se por algum efeito infinito.
Resposta à segunda objeção. “A infinidade do poder divino se manifesta no modo de produção das coisas a partir do nada. Novamente, é suficiente para a perfeição do universo que a criatura seja ordenada de maneira natural a Deus como um fim (isto é, no estado puramente natural). Mas o fato de uma criatura estar unida a Deus em pessoa excede os limites da perfeição da natureza.” Portanto, isto constitui o objeto de um decreto muitíssimo livre, cujo motivo só se manifesta por revelação.
A terceira objeção foi: a natureza humana não se tornou mais capaz da graça da união hipostática pelo pecado. Portanto, se o homem não tivesse pecado, Deus teria desejado a Encarnação.
Resposta à terceira objeção. Santo Tomás admite o antecedente. Ele distingue o consequente e admite que, se o homem não tivesse pecado, a natureza humana seria capaz obedientemente da Encarnação; que de fato teria sido elevado à dignidade da união hipostática em virtude do presente decreto, isso ele nega.
Toda esta bela resposta à terceira objeção deve ser lida, porque é de grande importância.
Há duas coisas a serem observadas nesta resposta.
1) O poder obediente diz respeito a um agente sobrenatural, a saber, Deus a quem obedece; mas Deus, que é absolutamente livre, nem sempre completa esse poder obediente, embora às vezes o faça, e gratuitamente.
2) “Mas não há razão”, diz Santo Tomás, “pela qual a natureza humana não deveria ter sido elevada a algo maior (de facto) depois do pecado. Deus permite que os males aconteçam para trazer deles um bem maior. Por isso está escrito (Romanos 5:20): 'Onde abundou o pecado, a graça superabundou.' Por isso também, na bênção do círio pascal, dizemos: 'Ó feliz culpa, que mereceste tal e tão grande Redentor. ”
Assim se confirma que o motivo da Encarnação foi formalmente o motivo da misericórdia e, além disso, é evidente que Deus permitiu o pecado original para um bem maior, que é a Encarnação redentora. Assim, as causas são causas entre si, embora em ordem diferente.
Na ordem da causa material a ser aperfeiçoada, a elevação misericordiosa da raça humana caída precede a Encarnação redentora; mas esta última precede a queda na ordem da causa final ou do bem maior, razão pela qual o pecado do primeiro homem é permitido.
Assim, o corpo deste embrião particular, na ordem da causa material a ser aperfeiçoada, precede a criação e infusão desta alma particular, e ainda assim esta última precede o embrião na ordem da causa final, pois esta alma não seria criada a menos que o embrião estavam dispostos a recebê-lo.
Vários tomistas insistem neste ponto, como veremos, como Godoi, Gonet, Salmanticenses, cuja interpretação já está contida nesta resposta à terceira objeção, que não foi suficientemente considerada por João de Santo Tomás e Billuart.
A quarta objeção era: Cristo, como homem, foi eternamente predestinado para ser o Filho natural de Deus.[311] Mas a predestinação sempre se cumpre. Portanto, mesmo antes do pecado, era necessário que o Filho de Deus encarnasse.
Santo Tomás responde: “A predestinação pressupõe a presciência das coisas futuras; e portanto, assim como Deus predestina a salvação de qualquer pessoa (por exemplo, de Agostinho, a ser realizada pelas orações de outros, por exemplo, de Santa Mônica), assim também Ele predestinou a obra da Encarnação para ser o remédio de pecado humano.”
Esta resposta de Santo Tomás à quarta objeção requer uma breve explicação. “A predestinação”, diz São Tomás, “pressupõe a presciência das coisas futuras”, e não de todas as coisas futuras. Certamente Santo Tomás não quer dizer que isso pressupõe a presciência dos méritos, pois então ele se contradiria; [312] mas a predestinação pressupõe a presciência de certas coisas futuras. Assim, quando Deus predestina Pedro, Ele primeiro lhe quer a vida eterna na ordem da causa final, mas previamente na ordem da causa material Ele lhe quer a individuação por meio da matéria pela qual ele é constituído como Pedro. Da mesma forma, quando se trata de toda a raça humana e da predestinação de Cristo como o Redentor da raça humana, esta predestinação pressupõe a previsão do pecado de Adão apenas na ordem da causa material. Da mesma forma, uma perseguição prevista é a ocasião para alguém ser predestinado à graça do martírio. Os tomistas consideram a pessoa do predestinado, os talentos nativos e outros dons naturais, o temperamento, como efeitos postulados pela predestinação, que a seguem na ordem da causa final. E como Agostinho não teria alcançado a vida eterna se Santa Mônica não tivesse orado por ele, também se o homem não tivesse pecado, o Verbo não teria se encarnado.
Esta resposta deve ser corretamente compreendida, para que não seja interpretada como contrária a uma conclusão anterior,[313]. que afirmava que a presciência dos méritos não é a causa da predestinação, porque os méritos dos eleitos são, pelo contrário, os efeitos da sua predestinação.
Caetano explica bem esse ponto. Ele observa que, quando Santo Tomás diz em sua resposta à quarta objeção que “a predestinação pressupõe a presciência das coisas futuras”, ele não quer dizer “de todas as coisas futuras”, pois a predestinação de Pedro não pressupõe a presciência do futuro eterno de Pedro. felicidade, mas, pelo contrário, a presciência da futura felicidade eterna de Pedro pressupõe a predestinação de Pedro à felicidade eterna, na medida em que Deus prevê coisas futuras nos decretos da Sua vontade. Mas Santo Tomás quer dizer neste caso que “a predestinação pressupõe a presciência de algumas coisas futuras que são pressupostas pela predestinação”.
Assim, Santo Tomás considera que a predestinação de Cristo à filiação divina natural pressupõe a presciência do pecado, pois foi para reparar esta ofensa que Cristo foi predestinado; pois, como observa Caetano, a ordenação do medicamento pressupõe o conhecimento da doença.[315]
Mas a dificuldade não está resolvida, pois Scotus argumentará que esta dependência da Encarnação do pecado é válida na ordem da execução, mas não na ordem da intenção da predestinação de Cristo.[316] Pois a maneira ordenada de querer para qualquer um é querer o fim e essas coisas mais próximas do fim, do que outras coisas inferiores. Assim, Deus deseja que qualquer pessoa, como Adão, antes de ver Seus méritos ou, a fortiori, Seus deméritos. Portanto, a fortiori, Deus deseja a filiação natural divina a Cristo antes de ter previsto o demérito de Adão.
Em resposta a esta objeção, pode-se dizer, de acordo com a resposta à terceira objeção, o que Santo Tomás quer dizer é que, mesmo na ordem da intenção, a predestinação de Cristo depende da previsão do pecado de Adão, e não de fato que ela depende desta última como causa final, mas como causa material a ser aperfeiçoada.[317]
Assim, quando Deus predestina Pedro, Ele primeiro lhe deseja a felicidade eterna na ordem da causa final, e primeiro lhe deseja a individuação da matéria já qualificada no embrião, na ordem da causa material; e “para aqueles que amam a Deus, todas as coisas contribuem juntamente para o bem”. [318] Ele também lhes deseja seu temperamento físico.
Da mesma forma, quando se trata de toda a raça humana e da predestinação de Cristo como o Redentor da raça humana, esta predestinação pressupõe a previsão do pecado de Adão apenas na ordem da causa material.
Esta distinção é feita por Caetano neste ponto,[319] e, embora nem tudo o que ele diz aqui sobre a ordenação dos decretos divinos relativos às três ordens da natureza, da graça e da união hipostática talvez seja verdadeiro, no entanto esta distinção deve foi e é defendido pelos tomistas subsequentes.[320]
Pois Caetano responde distinguindo o antecedente da seguinte forma: na ordem da causa final, quem quer metodicamente, quer o fim antes das outras coisas, isto eu admito; que alguém o faça na ordem de dispor da causa, que se reduz à causa material, isso eu nego
Assim faremos primeiro e de preferência a saúde para a purificação na ordem da causa final; ao contrário disso, porém, na ordem da causa material ou eliminadora, faremos a purificação como meio para a saúde.
Esta distinção tem o seu fundamento no princípio de que as causas interagem entre si, e a aplicação deste princípio é posteriormente desenvolvida pelos Salmanticenses e Gonet, cuja interpretação difere um pouco da de Caetano, como será afirmado mais adiante.
Caetano conclui: “É evidente que a Encarnação pode ser desejada por Deus, sem tal ocasião (isto é, o pecado de Adão), mas não é evidente que seja de facto desejada por Deus independentemente de tal ocasião…. Devemos recorrer às Escrituras se quisermos saber que de fato Deus ordenou que a Encarnação aconteceria, quer Adão tenha pecado ou não. Mas porque a partir das Escrituras temos conhecimento apenas de uma Encarnação redentora, dizemos, embora Deus pudesse ter desejado a Encarnação mesmo sem uma redenção futura, de fato Ele a desejou apenas na redenção; porque por revelação, Ele não nos revelou coisas de outra forma, e é somente por revelação que podemos conhecer Sua vontade…. A conclusão é que Deus quis o bem maior apenas em conjunto com o bem menor». [321] Assim, embora Deus pudesse ter desejado eficazmente a salvação de toda a raça humana (o que nos parece melhor), é certo que Ele quis. eficazmente que muitos sejam salvos, mas não todos.[322]
Da mesma forma, como diz Caetano: “Não é depreciativo à sabedoria de Deus ter disposto as coisas de modo que Ele realize um bem tão sublime como aquele (da Encarnação), sendo o pecado apenas a ocasião que O instou a ter misericórdia…. Portanto, não devemos, por esse motivo, regozijar-nos com a queda de outro (isto é, de Adão), mas com a misericórdia de Deus, que faz com que a queda prevista de um redunda no bem de outro”. A encarnação era formalmente o motivo da misericórdia, uma vez que a nossa salvação era o motivo, como afirma o Credo Niceno.
Quinta objeção. Santo Tomás afirma que o mistério da Encarnação foi revelado ao homem em estado de inocência, sem qualquer referência ao pecado futuro. Portanto, não tem ligação com este pecado.
Resposta à quinta objeção. Santo Tomás diz: “Nada impede que um efeito seja revelado a alguém a quem a causa não é revelada”.
Qual é precisamente a visão de Scotus? [324]
A questão de saber se Cristo foi predestinado a ser o Filho de Deus oferece a Scotus a oportunidade de discutir o problema do motivo da Encarnação. Depois de responder afirmativamente à primeira pergunta, ele prossegue mostrando que Cristo foi predestinado como homem à graça da união hipostática e à glória independentemente da previsão do pecado de Adão. Scotus prova seu ponto de vista com sete argumentos que foram esplendidamente reproduzidos por Caetano.[325] Daremos aqui os principais argumentos com as respostas de Caetano.
Primeiro argumento. A predestinação de qualquer pessoa para a glória precede naturalmente, por parte do objeto, a presciência do pecado ou da condenação de qualquer homem. Portanto, com muito mais razão, isto é verdade no que diz respeito à predestinação da alma de Cristo para a glória suprema.
Caetano responde.[326] Ele nega o antecedente, porque sustenta que a previsão do pecado pertence à ordem da providência geral, pressuposta pela ordem da predestinação. Mas esta resposta suscita muitas dificuldades, pois a permissão do pecado na vida dos predestinados, por exemplo, e portanto na vida do próprio Adão, é efeito não só da providência geral, mas também da predestinação destes eleitos, o que pressupõe a predestinação de Cristo.[327] Consequentemente, os teólogos em geral, e mesmo os tomistas subsequentes, não apoiam Caetano nesta resposta.
Mas muitos tomistas respondem da seguinte forma. Eles admitem que a predestinação de Cristo precede por natureza a previsão do pecado de Adão na ordem da causa final; eles negam que ela preceda na ordem da causa material ou determinante.
Assim, admitem que a predestinação de Pedro à glória precede por natureza a previsão da sua individuação, na ordem da causa final; eles negam esta precedência na ordem da causa material. Da mesma forma, está-se predestinado à graça do martírio, por ocasião de uma perseguição prevista.
Segundo argumento. A maneira ordenada de querer é querer primeiro o fim e depois as coisas mais imediatas até o fim. Assim, Deus primeiro deseja dar glória celestial a alguém antes da graça, e Ele primeiro deseja isso a Cristo, e depois aos predestinados como subordinados a Cristo. Além disso, Deus primeiro deseja que a glória e a graça celestiais que Ele possa prever estejam em oposição por causa do pecado e de suas consequências. Portanto, Deus primeiro deseja a glória celestial para Cristo antes de prever a queda de Adão.
Caetano responde ,[328] e esta resposta é confirmada pelos tomistas subsequentes. Ele distingue o principal: que a maneira ordenada de querer é primeiro querer o fim na ordem da causa final, isso ele admite; na ordem da causa material e eliminadora, isso ele nega.
A título de exemplo: alguém pode querer construir o Collegio Angelico em Roma, mas ainda não encontrou um local adequado e, tendo encontrado tal local, o seu desejo de construir este colégio é realizado, ou a oportunidade se oferece, porque ele recebeu o dinheiro necessário. Da mesma forma, Deus deseja primeiro a alma na ordem da causa final, e primeiro o corpo na ordem da causa material, e esta alma particular não seria criada neste exato momento, se este corpo embrionário não estivesse disposto a recebê-la. Da mesma forma, o Verbo não teria se encarnado, em virtude do presente decreto, a menos que o homem tivesse pecado ou a raça humana tivesse que ser redimida.
Mas se insiste. As causas não interagem mutuamente na mesma ordem. Contudo, este seria o caso aqui na mesma ordem de causa final, se o pecado for permitido por causa deste bem maior da Encarnação, e se a Encarnação for desejada para a nossa redenção.
Resposta. As causas não são da mesma ordem, pois o pecado é permitido por causa deste bem maior da Encarnação considerado como o fim para o qual foi decretado; ao passo que, pelo contrário, a raça humana a ser redimida está em relação com a Encarnação na ordem da causa material a ser aperfeiçoada, ou é o sujeito a quem a Encarnação redentora é benéfica. Portanto, a raça humana não é chamada o fim para quem a Encarnação é decretada, mas o fim para quem ela é benéfica. Portanto as causas não são mutuamente interativas na mesma ordem. E esta nossa própria redenção, como querida por Deus, pressupõe como requisito prévio na ordem da causa material que a raça humana seja redimida.
Tomemos então também como exemplo aquele que salva a vida de um menino que, por sua imprudência, cai no rio. O salvador primeiro deseja salvar a vida do menino na ordem da causa final, mas ele não salvaria a vida do menino a menos que o menino tivesse caído no rio e, assim, tivesse proporcionado ao outro a oportunidade de vir em seu socorro. Da mesma forma, as definições dogmáticas mais solenes da Igreja são sempre dadas por ocasião de algum erro que deve ser rejeitado, porque põe em perigo a liberdade das almas.
Terceiro argumento. A redenção ou a glória celestial de uma alma a ser redimida não é um bem tão grande quanto a glória da alma de Cristo. Portanto, a Redenção não parece ser a única razão pela qual Deus predestinou a alma de Cristo para tão grande glória.
Caetano responde:[329] Deus poderia ter desejado realmente este grande bem (da glória de Cristo) sem que ele estivesse ligado a um bem menor; mas pelas Sagradas Escrituras é evidente que Ele quis este bem maior apenas quando ligado a um bem menor. Não se trata, portanto, de uma possibilidade, mas de um fato. Deus poderia ter querido salvar eficazmente todo o género humano, por exemplo, mas da Sagrada Escritura resulta que nem todos são salvos,[330] embora, com a ajuda de Deus, o cumprimento dos seus mandamentos seja sempre possível. Nisto reside um mistério que deve ser acreditado segundo o testemunho da Sagrada Escritura e não determinado à maneira humana por raciocínios a priori.
Quarto argumento. Não é muito provável que um bem menor seja a única razão para a existência de um bem tão supremo.
Resposta. Os tomistas dizem que a Encarnação não é um bem incidental no sentido estrito, mas é apenas impropriamente chamada assim. Pois aquilo que o agente não pretende e que acontece por acaso é denominado estritamente incidental; tal é o caso quando alguém cava uma cova e encontra um tesouro, ou quando alguém resgata acidentalmente um menino que cai no rio. Diz-se indevidamente que isso foi ocasionado e depende de algum incidente, embora seja pretendido pelo agente, como o resgate de um menino que caiu no rio. Assim, a Encarnação é um bem incidental, e é apropriado que o mal seja a ocasião de extrair de Deus um bem tão grande, a saber, um bem que resulta da Sua liberalidade e misericórdia, porque a miséria é a razão da comiseração.
Scotus ignora o fato de que muitas das coisas boas da vida são indevidamente incidentais, especialmente muitos atos heróicos, como salvar a vida de outra pessoa com perigo para a própria, como no caso de um naufrágio ou de um incêndio. Tais são atos heróicos praticados em defesa do próprio país, por ocasião de um agressor injusto; portanto, a glória adquirida por muitos soldados é incidental. Também incidentais são os atos heróicos em defesa da fé, como o martírio por ocasião de uma perseguição. Pertencem a esta classe as mais belas definições dogmáticas proferidas pela Igreja por ocasião da refutação de um erro que ameaça escravizar as almas. Foi então por ocasião da ascensão do Pelagianismo e do Semi-pelagianismo que Santo Agostinho escreveu seus livros Sobre a Graça.
Mas a diferença entre Deus e o homem é que o homem não poderia prever infalivelmente a ocasião que motivou esses atos heróicos e, portanto, ele os pratica de forma imprevista. Outros argumentos de Scotus apresentados em diferentes aspectos repetem a mesma objeção.
Os escotista insistem. Dizem, com São João Crisóstomo,[331] que a causa material não é o fim (da Encarnação), nem o elemento material na Encarnação é o seu motivo. Portanto a dificuldade permanece.
Resposta. O elemento material que entra na Encarnação redentora é a razão da Encarnação, pois “o alívio da miséria é a razão da comiseração”. [332] Assim, neste terceiro artigo, Santo Tomás pode dizer: “A redenção é a razão da Encarnação»[333], embora a Encarnação não esteja subordinada à redenção.
Todas essas objeções podem ser reduzidas ao seguinte argumento silogístico: Deus não pode querer que a ordem superior seja submetida à inferior, pois isso seria a inversão da ordem, ou perversão.
Mas a nossa redenção é inferior à Encarnação.
Portanto, Deus não pode desejar que a Encarnação seja para nossa redenção.
Resposta. Eu distingo o principal. Que Deus não pode desejar que a ordem superior seja submetida à inferior, como sendo o fim perfeito e último, isto eu admito; que Deus não pode desejar o superior para o inferior, como sendo o fim que deve ser aperfeiçoado ou reparado por um motivo de misericórdia, isso eu nego. Pois o alívio da miséria é o motivo da comiseração. Eu admito a menor.
Eu distingo a conclusão. Que Deus não pode desejar que a ordem superior seja submetida à inferior por esta última ser o fim perfeito e especialmente o fim último, isto eu admito; como sendo o fim que deve ser aperfeiçoado ou reparado por um motivo de misericórdia, isso eu nego.
Assim, os tomistas dizem que a redenção da raça humana não é o fim pelo qual a Encarnação é decretada, mas é o elemento material que entra no motivo da Encarnação redentora, ou o fim para o qual a Encarnação é benéfica. Assim, um médico visita um doente, ou um padre celebra missa pela restauração da saúde de alguém, para o bem comum e para a glória de Deus.
Portanto, todo o ensinamento de São Tomás, de São Boaventura e de outros se resume nestas palavras: o motivo da Encarnação foi formalmente o motivo da misericórdia. Como diz o salmista: «Tem misericórdia de mim, Senhor, porque sou fraco».[334] «Tem misericórdia de mim, porque sou pobre».[335] «Tem misericórdia de mim, Senhor, porque sou pobre». afligido.”[336]
Caetano responde muito apropriadamente: “Não é inconveniente à sabedoria de Deus que Ele estivesse disposto a realizar um bem tão grande, apenas porque o pecado foi a ocasião que O impeliu a ser misericordioso.”[337] “É porque o alívio da miséria é o motivo de comiseração»,[338] e a misericórdia divina, aliviando a miséria do género humano, é a maior manifestação da bondade e da onipotência divinas. Se a onipotência de Deus já se manifesta na criação de um grão de areia do nada, por maioria de razão ela se manifesta quando Ele tira o bem do mal, e um bem tão grande como a vida eterna dos justificados.
Diz São Tomás: “Em si a misericórdia é a maior das virtudes (e assim é em Deus, mas não em nós, porque temos alguém acima de nós, que deve ser honrado pela prática das virtudes); pois pertence à misericórdia ser generoso com os outros e, o que é mais, socorrer os outros em suas necessidades. E isto diz respeito especialmente àquele que está acima dos outros; portanto, a misericórdia é considerada própria de Deus, e nela se declara que a sua onipotência se manifesta principalmente”. [339] Santo Agostinho também diz: “A justificação do pecador é maior do que a criação do céu e da terra; porque o céu e a terra passarão, mas a justificação dos ímpios permanecerá.” [340] Mas como a miséria é a razão para ter misericórdia, o alívio da miséria é mais a questão com a qual a misericórdia está preocupada; é o motivo da misericórdia, não como constituindo o fim perfectivo, mas como sendo o fim na ordem da redenção.
Nisto não há inversão de ordens. Haveria de facto uma perversão das ordens se o superior fosse ordenado para o inferior, como se este último fosse o fim último e perfectivo; mas não, se por misericórdia, o superior for ordenado ao inferior para sua perfeição ou reparação.
É assim que o Filho de Deus, através da Sua encarnação, certamente se inclina sobre nós com sublime misericórdia, de modo que os santos chegam às lágrimas ao pensar nisso. Mas ao rebaixar-se assim, Ele de forma alguma se subordina a nós; pelo contrário, ao aliviar a nossa miséria, Ele restaura a subordinação original, tornando-nos novamente subordinados a Ele e a Deus Pai. Assim, Deus, ao rebaixar-se misericordiosamente, manifestou esplendidamente a sua bondade e onipotência, pois “ter misericórdia pertence especialmente àquele que está acima dos outros” (341).
Em Deus, na medida em que Ele não tem ninguém acima Dele a quem deva lealdade, a maior de todas as virtudes é a misericórdia, e a miséria é a razão de ser misericordioso. Assim, o início de uma certa coleção diz: “Ó Deus, que, mais do que em todas as outras coisas, mostras o Teu poder onipotente, poupando e tendo misericórdia.”[343] Portanto, Scotus não destruiu o termo intermediário demonstrativo deste artigo.[344]
A doutrina anterior é certamente a que Santo Tomás ensinou. Sobre este ponto, escreveu: “Deus, portanto, não assumiu a natureza humana porque amou o homem, absolutamente falando, mais do que os anjos; mas porque as necessidades do homem eram maiores; assim como o dono de uma casa pode dar a um servo doente alguma iguaria cara que ele não dá ao seu próprio filho em boa saúde”. [345] Ele também diz: “Nem nada da excelência de Cristo diminuiu quando Deus O entregou até a morte pela salvação da raça humana; antes, Ele se tornou assim um glorioso conquistador”[346] Do pecado, do diabo e da morte.
A tese de São Tomás, tal como proposta por ele, é muito convincente na medida em que declara que a misericórdia é o motivo da Encarnação; portanto, Cristo foi o primeiro dos predestinados, mas foi predestinado como Salvador e vítima, como vencedor do pecado, do diabo e da morte. Este título de Salvador pertence principalmente a Cristo, conforme expresso no nome Jesus, que significa Salvador. Este título pertence mais fundamentalmente a Ele do que títulos como Doutor, ou Rei dos reis, Senhor dos senhores.
A própria fé cristã parece ensinar esta doutrina, embora a Escritura não diga que a misericórdia foi o motivo indispensável da Encarnação. Esta doutrina também é muito benéfica na ordem espiritual, exortando-nos a imitar a Cristo e a mostrar zelo pelas almas.
Caetano observa[347] que, assim como no ato de esperança desejo Deus para mim, porque Deus é meu fim último (já que Deus é o fim último deste ato de esperança), assim Cristo nos é dado (por nossa causa ou como nosso fim), para a glorificação de Deus (que é o fim último para o qual Deus realiza todas as Suas obras). Assim, a Encarnação não está subordinada à nossa redenção,[348] mas é a sua causa eminente. Assim, a contemplação não está subordinada à ação apostólica, que deve resultar da plenitude da contemplação, sendo esta a sua fonte superior, como assinala São Tomás.[349] Portanto, não importa o que digam os escotistas, as palavras de São Paulo ainda se aplicam, que diz: “Pois todos são vossos. E você é de Cristo. E Cristo é de Deus”[350] Nesta tese tomista, Cristo não está subordinado a nós, mas nós estamos subordinados a Ele.
Acordo e desacordo entre tomistas.
Todos concordam com a conclusão principal formulada explicitamente por São Tomás, que é: se Adão não tivesse pecado, o Verbo não teria encarnado.
Mas eles não estão totalmente de acordo no que diz respeito a uma questão secundária.
Vários tomistas, adotando os pontos de vista de Caetano, como João de Santo Tomás e Billuart, recusam-se a responder à pergunta: "Por que Deus permitiu o pecado de Adão e o pecado original?". Além disso, eles multiplicam os decretos condicionais divinos. De acordo com os seus pontos de vista: (1) Deus quis a ordem natural; (2) a elevação da raça humana à ordem sobrenatural; (3) Ele permitiu o pecado do primeiro homem; (4) Ele decretou a Encarnação redentora em carne passível.
Outros tomistas, como os salmanticenses, Godoy, Gonet e muitos dos tempos mais recentes, insistindo no que Santo Tomás observa neste artigo e em outros lugares, dizem:[351] Certamente Deus permite o mal apenas por causa de um bem maior. Esta doutrina é certa e de fide, caso contrário a permissão do pecado por Deus não seria um ato santo. Na verdade, não se pode dizer a priori que Deus permitiu o pecado original por causa de algum bem maior, mas, após o fato da Encarnação, parece que Deus permitiu o pecado original por causa da Encarnação redentora, de modo que a redenção da raça humana caída é anterior na ordem da causa material a ser aperfeiçoada, e a Encarnação redentora é anterior na ordem da causa final. Esta distinção é feita por Caetano no seu comentário a este artigo, mas grande parte da sua força perde-se na medida em que ele multiplica excessivamente os decretos divinos, tão diferentes do que escreveu anteriormente no seu comentário.[352]
Além disso, estes tomistas dizem que os decretos condicionais divinos não devem ser multiplicados, pois esta multiplicação resulta da fraqueza do nosso intelecto, e devemos fazer o nosso melhor para superar este defeito. Portanto, Deus, antes de qualquer decreto, viu por Seu conhecimento de inteligência simples todos os mundos possíveis com todos os seus conteúdos, assim como o arquiteto tem em mente várias casas possíveis e todas as suas partes componentes. Assim, Deus tinha em mente um mundo sem pecado, sem necessidade de redenção, mas levado à perfeição pelo exemplo do Verbo encarnado; também outro mundo possível, no qual o homem pecou e que foi aperfeiçoado pela Encarnação redentora. Deus escolheu de facto, por um único decreto, este último, no qual, portanto, a Encarnação redentora é anterior na ordem da causalidade final (como a alma é anterior ao corpo), e a reparação da raça humana caída é anterior na ordem da causalidade material a ser aperfeiçoada, pois o corpo é anterior à alma.[353]
Esta segunda interpretação está inteiramente em conformidade com a resposta dada por Santo Tomás à terceira objeção deste artigo, e também com uma declaração anterior na sua Summa, na qual diz: “Deus ama a Cristo não apenas mais do que ama o todo. raça humana, mas mais do que Ele ama todo o universo criado, porque Ele quis para Ele o bem maior em dar-lhe um nome que está acima de todos os nomes, na medida em que Ele era verdadeiro Deus. Nem nada de Sua excelência diminuiu quando Deus O entregou à morte para a salvação da raça humana; antes, Ele se tornou assim um glorioso conquistador, a saber, do pecado, do diabo e da morte.”
Esta resposta destes tomistas é também precisamente o que diz Santo Tomás na sua resposta à terceira objeção deste artigo, na qual cita as palavras de São Paulo: «Onde abundou o pecado, superabundou a graça»,[355] e da liturgia: “Ó feliz culpa, que mereceste tal e tão grande Redentor!”[356]
E Santo Agostinho diz em seu comentário ao Salmo quadragésimo sétimo: “Portanto Adão caiu pela nossa ressurreição”,[357] o que significa que Deus permitiu o pecado de Adão para este bem maior da Encarnação redentora.
Além disso, os decretos divinos não devem ser multiplicados sem necessidade; pois esta frequência de recurso aos decretos divinos tem o seu fundamento na imperfeição da nossa maneira de compreender os decretos divinos. Com efeito, é evidente que vários acontecimentos de ordem natural, como a morte de uma pessoa boa por alguma doença, que à primeira vista parece depender unicamente de causas naturais e das disposições gerais da Providência, devem ser atribuídos ao operação sobrenatural da predestinação.[358] Portanto, é evidente que Deus, por um único decreto, quis este mundo presente com suas três ordens de natureza, graça e união hipostática.
A liberdade do decreto sobre a encarnação: uma comparação entre a doutrina de Santo Tomás e a de Scotus
À primeira vista, é surpreendente que Santo Tomás, que é um intelectualista, diga: Visto que a Encarnação é um dom mui livre e absolutamente gratuito de Deus, seu motivo só pode ser conhecido por revelação; enquanto Scotus, que é um voluntarista inclinado ao liberalismo, deseja estabelecer este motivo da Encarnação por argumentos ou raciocínios quase a priori, como fazem os intelectualistas extremos, como Leibniz e Malebranche, que dizem que a Encarnação é moralmente necessária para que o mundo possa ser o melhor de todos os mundos possíveis.
A razão desta diferença de opinião entre Santo Tomás e Scotus parece consistir nisto: Santo Tomás, por causa de seu intelectualismo moderado, distinguiu exatamente entre a ordem da natureza e a ordem da graça, estabelecendo o objeto próprio do intelecto criado, seja humano ou angélico.[359] Consequentemente, Santo Tomás reconhece plenamente a liberdade perfeita de Deus em elevar a natureza humana (ou angélica) à ordem da graça e, a fortiori, à união hipostática. Assim, o seu intelectualismo moderado reconhece mais corretamente os direitos da liberdade divina.
Pelo contrário, Scotus, em virtude do seu voluntarismo, não consegue distinguir tão exactamente entre as ordens da natureza e da graça; ele diz que existe em nossa natureza um apetite inato e não apenas um que é suscitado pela visão beatífica, e acrescenta que, se Deus assim quisesse, a visão beatífica seria natural para nós.
Consequentemente, ele está inclinado a considerar a ordem sobrenatural como o complemento da ordem natural, e a ordem hipostática como o complemento e a consumação quase normal da ordem sobrenatural. Assim, ele não reconhece suficientemente os direitos da liberdade divina no que diz respeito a esta dupla elevação; e ele fala finalmente, quase como os intelectualistas absolutos do tipo Leibnitz, que pensam que a Encarnação é moralmente necessária para que o mundo seja o melhor de todos os mundos possíveis. Assim os extremos se encontram.
O intelectualismo absoluto reduz a um direito ideal o fato consumado. O libertismo absoluto reduz o próprio direito a um fato consumado.
Esses dois sistemas estão na ordem inversa, mas na prática se encontram, porque ambos admitem que o fato consumado é igual ao direito ideal, e o sucesso é idêntico à moralidade; no entanto, os seguidores do primeiro sistema insistem no direito, enquanto os seguidores do último sistema insistem no facto consumado. Mas o intelectualismo moderado situa-se entre estes dois extremos, porque salvaguarda tanto a validade dos primeiros princípios da razão como a verdadeira liberdade, esta última negada pelo intelectualismo absoluto.
Assim, no Tomismo, a Encarnação é vista como o facto supremo de todo o universo, mas é um facto contingente no qual o amor mais livre e gratuito de Deus por nós se manifesta através da misericórdia. “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito.”[360]
Assim, esta tese de Santo Tomás, se a compararmos com as suas outras teses sobre o intelectualismo moderado e a liberdade, tem um significado profundo, pois significa que, na ordem sobrenatural, na medida em que esta ordem é gratuita, a liberdade divina reina suprema e a sua a predileção é muito livre, cujo motivo só pode ser conhecido por revelação. Mas o descarte deste princípio resulta na compreensão incompleta de várias declarações fundamentais na ordem sobrenatural, como as seguintes palavras de São Paulo: “Mas Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios; coisas que não são, para que Ele reduza a nada as que são.”[361]
Mas estas questões são muito profundas e a sua solução fez com que grandes intelectos adotassem opiniões opostas.
Corolários espirituais. Estes corolários são desenvolvidos num outro livro,[362] no qual a doutrina de Santo Tomás sobre o motivo da Encarnação é explicada não tanto escolasticamente como espiritualmente. Esses corolários são os seguintes:
1) Resulta desta doutrina que não é acidental que Cristo seja o Salvador, tanto sacerdote como vítima. Este é o traço dominante de Jesus, como o nome indica. Jesus não é especialmente o Rei dos reis e o Doutor sublime que se tornou o Salvador da humanidade e vítima da queda da raça humana. Não, mas em virtude do presente decreto Ele veio principal e principalmente como o Salvador dos homens. Toda a sua vida foi orientada para este fim último, ou seja, o sacrifício na cruz.
2) Cristo parece assim mais nobre, e a unidade da sua vida se manifesta melhor, pois é a unidade da vida do Salvador, que é misericordioso e também vitorioso sobre o pecado, o diabo e a morte.[363]
3) Por isso Cristo chama a hora da Paixão de “Minha hora” como se fosse preeminentemente esta.
4) Portanto, na atual economia da salvação, não é algo acidental na santificação das almas que elas devam carregar diariamente a sua cruz em união com o nosso Salvador, como Ele mesmo diz.[364]
5) Portanto, para a santidade, mesmo para a grande santidade, não é necessário o aprendizado, nem a realização de muitas obras externas; basta que a pessoa se conforme à imagem de Cristo crucificado, como no caso de São Bento José Labre, do século XVII, que se mostrou imagem viva de Cristo na sua pobreza e no amor à cruz.[365]
6) Por fim, segue-se, como explica Santo Tomás no seu tratado sobre os efeitos do batismo,[366] que a graça santificante nos redimindo é estritamente a graça de Cristo, pois não é apenas uma participação da natureza divina como em Adão e os anjos antes da Queda, mas nos torna conformes a Cristo, o Redentor, e por meio d'Ele somos feitos membros vivos de Seu Corpo Místico. Portanto esta graça, enquanto graça de Cristo, nos dispõe a viver em Cristo Redentor pelo amor da cruz, pois nos dispõe a reparar os nossos próprios pecados e os pecados dos outros, na medida em que os membros vivos de Cristo devem ajudar-se mutuamente na obtenção da salvação.
Portanto, é somente após um período de dolorosa provação que qualquer ideal cristão e qualquer sociedade cristã produz verdadeiros frutos de salvação, pois nosso Senhor diz: “Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto».[367]
Assim, os cristãos tornam-se conformes a Cristo, que disse de si mesmo aos discípulos no caminho de Emaús: “Não deveria Cristo ter sofrido estas coisas, e assim entrar na sua glória?”[368] Por isso São Paulo diz: “ Somos realmente herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; todavia, se sofrermos com Ele, também com Ele seremos glorificados.”[369]
Esses corolários espirituais são deduzidos deste ensinamento.
Uma certa opinião especial. Tem sido sustentado por alguns em tempos recentes[370] que até agora a questão é sempre apresentada desfavoravelmente, uma vez que aparece sempre numa forma hipotética, nomeadamente: “Se o homem não tivesse pecado, Deus teria encarnado”. “Pois”, como dizem, “se o homem não tivesse pecado (ou nesta suposição), haveria outra ordem absolutamente diferente da ordem atual, e o que teria acontecido em tal ordem só Deus pode saber”. A maneira adequada de colocar a questão, de acordo com estes teólogos, deve ser apresentando-a na forma de uma proposição positiva e universal, isto é, “Qual é a razão universal adequada para a Encarnação na ordem atual?” O Padre Roschini[371] responde a esta pergunta da seguinte forma: “A razão primeira da Encarnação é a livre eleição de Deus desde toda a eternidade da ordem atual com tudo o que nela está incluído; na medida em que apenas a presente ordem corresponde exatamente à medida e ao modo também livremente pré-arranjado por Deus, pelo qual Ele quis conceder Sua bondade ad extra e, portanto, obter glória extrínseca.”
Uma resposta à opinião do Padre Roschini apareceu no Angelicum;[372] a sua essência é a seguinte: A questão colocada pelos Escolásticos diz respeito à ordem actual, e uma nova forma de apresentar a questão está fora do âmbito do presente problema, e traz apenas para a verdade comum que é admitida por todas as escolas de pensamento. É mais certo para todos os teólogos que a Encarnação depende da livre escolha de Deus da ordem atual e do que Ele ordenou para a manifestação de Sua bondade. Esta é a razão suprema de Deus, mas agora a questão é: qual é a Sua razão imediata?
Evidentemente, a questão hipotética colocada pelos grandes escolásticos diz respeito à ordem atual; a saber, em virtude do presente decreto, se fizermos abstração do pecado do primeiro homem, o Verbo teria se encarnado? Esta abstração não é mentira, nem altera a ordem da coisa considerada. É o mesmo que perguntar: Teria a alma deste homem em particular sido criada se o seu corpo no ventre da sua mãe não estivesse suficientemente desenvolvido para ser informado por ela? Ou poderíamos perguntar: Será que este templo permanecerá intacto se esta coluna específica for removida? A verdade de uma proposição condicional, como ensina a lógica, depende unicamente da conexão entre a condição e o condicionado.
Portanto, ao responder à objeção, dizemos: Se o homem não tivesse pecado, a presente ordem das coisas teria mudado, eu distingo: se isso significasse que haveria uma mudança em virtude de outro decreto, isto eu admito; em virtude do presente decreto, isso eu nego.
Como afirma a resposta acima mencionada ao Padre Roschini: “O raciocínio dos Escolásticos não é, e não pode ser, outro senão este, caso contrário, como podemos explicar o fato de que esses médicos estão tão ansiosos em sua busca fútil, a respeito de que nada pode ser conhecido com certeza?… Sem dizer, então, o que atribuir a esses teólogos ponderados e tão circunspectos, com Santo Tomás como seu líder, uma visão geral do caso nos justificaria considerá-los pelo menos como estudiosos. ”
Santo Tomás teria formulado indevidamente a questão, ou não teria corrigido a questão formulada indevidamente, uma questão que é até inútil e, claro, bastante irrelevante.
Mas é verdade dizer, com o santo Doutor, que ao falar de outra ordem de coisas: “Não sabemos o que (Deus) teria ordenado, se não tivesse conhecimento prévio do pecado”. Tomé diz o mesmo no presente artigo, pois escreve: “E, no entanto, o poder de Deus não se limita a isto; mesmo que o pecado não existisse, Deus poderia ter encarnado, ou seja, em outra ordem de coisas.”
Conclusão Final: O Motivo da Encarnação
Aqueles que admitem, como fazem os tomistas, um decreto eficaz relativo à Encarnação redentora em carne passível, por este mesmo fato devem dizer com Santo Tomás que, em virtude do presente decreto, “se Adão não tivesse pecado, o Verbo não teria encarnado”, ou, dito afirmativamente, deve-se dizer que, no presente decreto, a Encarnação redentora supõe que a queda da raça humana seja redimida, embora esta queda tenha sido permitida para um bem maior, que é a Encarnação redentora. Assim, a criação da alma pressupõe que o corpo embrionário esteja suficientemente disposto, e esta predisposição suficiente foi desejada e produzida por Deus para a alma. As causas interagem mutuamente, embora em ordem diferente, sem implicar um círculo vicioso. Seria um círculo vicioso se disséssemos que a permissão do pecado de Adão foi por causa da Encarnação, e que a Encarnação ocorreu por causa da permissão do pecado de Adão. A verdade é que a Encarnação ocorreu não para permitir o pecado, mas para a sua reparação.
Da mesma forma, seria um círculo vicioso dizer que os homens existem por causa de Cristo, e da mesma forma, Cristo é por causa dos homens. Mas é verdade dizer que Cristo é o fim destinado aos homens, e os homens são o fim para quem a Encarnação redentora é benéfica.
Portanto, é estabelecida a verdade da afirmação de que Deus quis a Encarnação como uma manifestação da Sua bondade, mostrando a Sua misericórdia para com os homens para a sua redenção, ou “para a nossa salvação”, como afirma o Credo.[374]
Notas:
[1] Art. 3 — Se, mesmo que o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
O terceiro discute-se assim. — Parece que mesmo que o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
1 — Pois, permanecendo a causa, permanece o efeito. Ora, como diz Agostinho, muitas outras causas devemos levar em conta, na Encarnação de Cristo, além do resgate do pecado, do qual já se tratou (a. 2). Logo, mesmo que o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
2. Demais. — É próprio da onipotência do poder divino levar as suas obras à perfeição, e manifestar-se por algum efeito infinito. Ora, nenhuma pura criatura pode ser considerada um efeito infinito pois, toda criatura é finita por essência. Ora, só na obra da Encarnação, se manifesta por excelência um efeito infinito do poder divino, pois nela se acham unidos seres infinitamente distantes, por ter-se o homem feito Deus. Em cuja obra também em sumo grau se aperfeiçoou o universo, por ter-se a última criatura — o homem, unido ao primeiro principio — Deus. Logo, mesmo se o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
3. Demais. — A natureza humana não se tornou, pelo pecado, mais capaz da graça. Ora, depois do pecado, é capaz da graça da união, que é a graça máxima. Logo, se o homem não tivesse pecado, a natureza humana teria sido capaz dessa graça; nem Deus subtrairia à natureza humana um bem de que ela era capaz. Logo, se o homem não tivesse pecado Deus ter-se-ia encarnado.
4. Demais. — A predestinação de Deus é eterna. Ora o Apóstolo diz, de Cristo (Rom 1, 4): Que foi predestinado Filho de Deus com poder. Logo, mesmo antes do pecado, foi necessário o Filho de Deus encarnar-se para cumprir-se a predestinação de Deus.
5. Demais. — O mistério da Encarnação foi o primeiro revelado ao homem, como se conclui do dito da Escritura (Gn 2, 23): Eis aqui agora o osso de meus ossos, etc., o qual o Apóstolo diz que é um sacramento grande em Cristo e na Igreja (Ef 5, 22). Ora, pela mesma razão porque não o podia o anjo, também o homem não podia ter presciência da sua queda, como o prova Agostinho. Logo, mesmo que o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
Mas, em contrário, Agostinho diz expondo aquilo do Evangelho (Lc 19, 10) — O Filho do homem veio buscar e salvar o que tinha perecido: Logo, se o homem não tivesse pecado, o Filho do homem não teria vindo. E àquilo do Apóstolo (1Tm 1, 15) — Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, diz a Glosa: Nenhuma outra causa houve da vinda de Cristo a este mundo senão salvar os pecadores. Elimina as doenças, elimina as chagas: já nenhuma razão há de remédio.
SOLUÇÃO. — São diversas as opiniões sobre esta matéria — Uns dizem que, mesmo sem o pecado do homem, o Filho de Deus ter-se-ia encarnado. Outros afirmam o contrário. E a esta afirmação devemos dar assentimento. Pois, as obras puramente voluntárias de Deus, sem haver nenhum débito para com a criatura, nós não as podemos conhecer, senão enquanto manifestadas pela Sagrada Escritura, que nos torna conhecida a vontade divina. Ora, como a Sagrada Escritura, sempre dá como razão à Encarnação o pecado do primeiro homem, mais convenientemente se diz que a obra da Encarnação foi ordenada por Deus como remédio do pecado, de modo que, se o pecado não existisse, a Encarnação não teria lugar. Embora por aí não fique limitado o poder de Deus; pois, Deus teria podido encarnar-se mesmo sem ter existido o pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Todas as outras causas assinaladas respeitam o remédio do pecado. Pois, se o homem não tivesse pecado, teria infuso em si o lume da sabedoria divina e teria, de Deus, a perfeita retidão da justiça, para conhecer e, praticar todo o necessário. Mas, tendo o homem, pelo abandono de Deus, caído ao nível das coisas corpóreas, foi conveniente que Deus, tendo assumido a carne, também lhe desse o remédio da salvação por meio de coisas corpóreas. Por isso àquilo do Evangelho (Jo 1, 14) — O Verbo se fez carne — Diz Agostinho: A carne te cegou, a carne te cura; pois, Cristo veio para, com a carne, extirpar os vícios da carne.
RESPOSTA À SEGUNDA. — No modo mesmo da produção das coisas, do nada, se manifesta o infinito poder divino. E também à perfeição do universo basta que a criatura se ordene para Deus, de um modo natural, como para o fim. Mas, excede os limites da perfeição da natureza o unir-se criatura pessoalmente a Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Podemos considerar em a natureza humana uma dupla capacidade — Uma, conforme à ordem da potência natural. E esse Deus sempre a satisfaz, pois dá a cada coisa conforme à sua capacidade natural — Outra conforme à ordem do poder divino, a cujo nuto toda criatura obedece. E a esta pertence a capacidade em questão. Pois, Deus não satisfaz toda essa capacidade da natureza, do contrário não poderia fazer na criatura senão o que faz. O que é falso, como já demonstramos na Primeira Parte (q. 25, a. 5; q. 105, a. 6). Pois nada impede que a natureza humana, depois pecado não seja susceptível de maior elevação. Porque Deus permite se faça o mal para dele tirar um bem melhor. Donde o dizer o Apóstolo (Rom 5, 20): Onde abundou o pecado superabundou a graça. E o dizer-se na benção do Círio Pascal: Ó culpa feliz, que mereceu ter um tal e tão grande Redentor.
RESPOSTA À QUARTA. — À predestinação pressupõe a presciência dos futuros. Por onde, assim como Deus predestina que a salvação de um homem deve se cumprir pela oração de outros; assim também predestinou a obra da Encarnação como médio do pecado.
RESPOSTA À QUINTA. — Nada impede que seja revelado um efeito a quem não o é a causa. Por onde, ao primeiro homem podia ser revelado mistério da Encarnação sem que tivesse a presciência da sua queda; pois, quem quer que conheça um efeito não há de por isso conhecer a causa.
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