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SOBRE A FALTA DE INTENÇÃO DE ACEITAR O PAPADO


Pelo Rev. Pe. Damien Dutertre


Este artigo foi publicado originalmente na língua inglesa em junho de 2022 no site do Seminário da Santíssima Trindade:


Este capítulo articula o argumento da Tese que explica porque os "papas do Vaticano II" não são verdadeiros papas, a saber, porque lhes falta a intenção adequada exigida a um ato válido de aceitação do papado.





1. Introdução.


A primeira edição do Cahiers de Cassiciacum (publicado pela Associação Saint- Herménégilde, Nice, maio de 1979) discute em profundidade o tema da intenção. Em uma seção contando cerca de 52 páginas, o Bispo Guérard des Lauriers, O.P. explica como um homem que, apesar de exteriormente aparentar ser o papa, poderia internamente apresentar um obstáculo para receber de Cristo a forma do papado. Em outras palavras, enquanto que em circunstâncias normais, nada impediria que Nosso Senhor concedesse ao candidato eleito as chaves de São Pedro e a autoridade suprema sobre a Igreja, nas circunstâncias atuais, algo na intenção do candidato eleito impede que ele receba essa autoridade suprema. A seguir faremos uma apresentação deste argumento.


2. Os "papas do Vaticano II" na realidade não são papas verdadeiros.


A Tese concorda com o sedevacantismo total (às vezes chamado "totalismo") ao dizer

que os papas do Vaticano II não são papas verdadeiros. Este é um fato admitido por ambos.


Os papas do Vaticano II, que aparentavam ter autoridade suprema sobre a Igreja, promulgaram universalmente erros de doutrina, liturgia e disciplina; eles o fizeram em circunstâncias em que a indefectibilidade da Igreja em doutrina, culto e disciplina estava engajada. Portanto, ou eles não são papas, ou a Igreja falhou. Como a fé católica nos proíbe de professar a segunda alternativa, a primeira deve ser verdadeira.


3. Explicação dada pelo "sedevacantismo total".


Onde a Tese discorda do totalismo está na explicação de como esses falsos papas não são papas verdadeiros. O totalismo inicia com uma tentativa de estabelecer um fato de heresia pública entre os "papas do Vaticano II". Ele continua afirmando que um herege público não pode ser validamente eleito ao papado, e conclui que os "papas do Vaticano II" foram invalidamente eleitos ao papado.


4. Explicação dada pela Tese.


A Tese apresenta um argumento totalmente diferente, baseado em considerações metafísicas do ato de aceitação do papado e da natureza da autoridade. Estes são dois argumentos completamente distintos. Os aderentes da Tese rejeitam o argumento totalista como falso. A razão para isso é que o Direito Canônico indica claramente que hereges não declarados podem validamente eleger e ser eleitos na Igreja, ao menos enquanto seu delito de heresia não for reconhecido (isto será minuciosamente estudado em seu próprio capítulo).

Por sua vez, o argumento apresentado pelo Bispo des Lauriers pode ser resumido brevemente assim: para se tornar o papa e receber a autoridade de Cristo, o eleito deve aceitar verdadeiramente o papado.

Este argumento é, portanto, próprio à Tese: Os "papas do Vaticano II" não são papas verdadeiros por conta do fato de não terem aceitado adequadamente sua eleição ao papado.


PRIMEIRO ARTIGO

MATÉRIA E FORMA NO PAPADO


5. Elementos envolvidos na criação de um papa.


Consideremos as determinações necessárias que são reunidas na pessoa de um papa. O Código de Direito Canônico de 1917, pode. 219, indica:


“O Romano Pontífice, legitimamente eleito, tão logo quanto ele aceita a eleição, recebe por lei divina, o pleno poder de jurisdição suprema.”


Há, portanto, três elementos que sustentam a afirmação que alguém é o papa:

1.eleição legítima

2.aceitação da eleição pela pessoa eleita

3.o pleno poder da jurisdição suprema, recebido diretamente de Cristo.

Estes três elementos têm causas distintas: a eleição é feita pelos eleitores; a aceitação é dada pela pessoa eleita; e o poder supremo lhe é comunicado por Deus.


Podemos, portanto, distinguir claramente as três etapas da formação de um papa. Primeira, um grupo de homens (o colégio de cardeais) elegem legalmente um candidato. Segunda, este candidato aceita o papado. Terceira, Deus confere ao homem eleito a suprema autoridade sobre a Igreja, tornando-o assim o papa.


6. Matéria e forma no papado.


Os teólogos que descreveram este processo utilizaram os termos análogos de matéria e forma, que no homem, por exemplo, são o corpo e a alma, respectivamente. Estes termos têm sido aplicados analogamente por filósofos e teólogos para fazer distinções na esfera da moralidade humana. A aplicação destes conceitos (matéria, forma) à teologia sacramental, por exemplo, é bastante conhecida.

Na administração do sacramento do batismo, a lavagem com água na testa é a matéria do sacramento: ela poderia se tornar um sacramento, se fosse dita a forma, a fórmula do batismo, para determinar que essa lavagem não é uma mera limpeza, mas o sacramento do batismo.

Assim também, na teologia moral diz-se que algo é um pecado material se for objetivamente errado. Torna-se um pecado formal se foi intencionalmente pretendido. Por exemplo, comer carne na sexta-feira é objetivamente errado, é um pecado material, é a matéria do pecado, e de fato será um pecado, um pecado formal, se foi feito deliberadamente. Mas se alguém comesse carne na sexta-feira por engano, seria apenas um pecado material, o que não é um pecado de maneira alguma e não precisa ser confessado.


No caso do papa, os teólogos também fizeram uma distinção entre o sujeito (a pessoa) recebendo o papado, e a própria autoridade do papado, descrevendo o primeiro como a matéria do papa, enquanto a segunda é a forma do papado. Pelo processo de eleição e aceitação, um sujeito (a matéria) é preparado e disposto a receber de Deus a forma do papado, ou seja, a suprema autoridade sobre a Igreja. A união desta matéria e desta forma produz um papa válido.


São Roberto Bellarmino (De Romano Pontifice, Bk. II, c. XXX) escreve:


“Portanto, quando os Cardeais criam o Pontífice, eles exercem sua autoridade não sobre o Pontífice, porque ele ainda não existe; mas sobre a matéria, ou seja, sobre a pessoa em quem eles dispõem em certa medida através da eleição, para que ele possa receber a forma do pontificado de Deus.”


A mesma distinção é feita por Santo Antonino e pelo Cardeal Caetano. É portanto falso afirmar, como muitos têm feito, que a Tese é uma novidade na aplicação destas distinções ao papado.(1)


(1) E mesmo que, por hipótese, nenhum teólogo o tivesse feito anteriormente, isso não invalidaria a Tese meramente por isso. A ciência da teologia tem sido desenvolvida ao longo dos séculos por teólogos que lentamente têm aprofundado nossa compreensão da fé. Cada passo nesse desenvolvimento, nesse sentido, poderia ser acusado de ser uma "novidade". Esta atitude, encontrada entre alguns, de recusar-se a meditar e analisar teologicamente a crise atual é profundamente alarmante. Ela é contrária à vida da fé, que deve permear toda nossa vida, e particularmente nossa mais alta faculdade, que é nosso intelecto. Muitos católicos querem encontrar uma "citação" de algum teólogo anterior descrevendo inteiramente nossa situação. Não há nenhuma, além dos escritos de Dom Guérard des Lauriers. A situação atual jamais foi imaginada nem mesmo especulativamente por nenhum teólogo antes do Concílio Vaticano II. Portanto, não se deve tentar ler os trabalhos dos teólogos do passado como se eles estivessem comentando a crise atual na Igreja. Fazer tal leitura seria tirá-los do contexto. Ao invés disso, deve-se entender os princípios universais ensinados perenemente pelos teólogos aprovados pela Igreja, a fim de aplicá-los harmoniosamente à crise atual. Como observou Dom Guérard des Lauriers: "A teologia, ao menos às vezes, consiste em pensar, e não meramente em repetir". Nesta apresentação da Tese, no entanto, nós propositalmente apelamos a muitos teólogos aprovados que estudaram casos similares, para mostrar que, se a Tese não pode ser inteiramente encontrada, como um todo, nas especulações de teólogos do passado, seus princípios, no entanto, são comuns na teologia tradicional.


É também claramente falso dizer que ao conceder aos "papas do Vaticano II" um aspecto material do papado, a Tese está na realidade concedendo-lhes poder e autoridade. Da mesma forma que lavar a testa não é batismo, ou que comer carne na sexta-feira por engano não é pecado, um papa material (uma pessoa eleita ao papado) não é papa. Entretanto, assim como não se pode conferir o batismo sem o elemento material da lavagem com água; ou assim como não se pode ter um pecado a menos que haja algo objetivamente, materialmente, pecaminoso (ao menos como percebido pela pessoa), assim também não se pode jamais ter um papa real (formal) a menos que se tenha, primeiro, uma matéria disposta a receber o papado, ou seja, um homem eleito pelo conclave.


7. Matéria e forma do papado na ausência de um papa.


Quando o papa morre, diz-se assim que o papado permanece sob seu aspecto material na capacidade da Igreja de eleger um sucessor, e sob seu aspecto formal em Cristo, pronto para conferir autoridade ao eleito. Tal é o ensinamento de Santo Antonino (1389-1459):


“Tal poder [papal] permanece na Igreja e no Colégio [dos Cardeais] com respeito ao que é material no papado, já que após a morte do papa o Colégio é capaz, através de uma eleição, de determinar uma pessoa para o papado, que seja tal ou qual pessoa. …Portanto, se pelo nome de papado entendemos a eleição e determinação da pessoa (que é a coisa material no papado, como já foi dito anteriormente) então tal poder permanece no Colégio após a morte do papa. Mas se pelo nome de poder papal entendemos sua autoridade e jurisdição (que é a coisa formal), então tal poder nunca morre, porque permanece sempre em Cristo.” (2)


(2) Santo Antonino de Florença, Summa Sacrae Theologiae, Juris Pontificii et Caesarei, Tertia Pars, Tl. 21, Venetiis 1581.


Enquanto estes dois aspectos do papado permanecerem: o aspecto material na Igreja, e o aspecto formal em Cristo, o papado não se perde. Também não é negado o ensinamento do Concílio Vaticano de 1870, que ensina que São Pedro terá sucessores perenes.


Esperar que Cristo providencie não apenas o aspecto formal do papado, que é a autoridade suprema do papa, mas também seu aspecto material, que é a designação de um homem para receber o papado, obrigaria logicamente em admitir a perda de apostolicidade na Sé Romana e na Igreja universal. Pois mesmo se um papa fosse nomeado diretamente do céu, ele não seria o verdadeiro sucessor de São Pedro. Por analogia, um homem criado diretamente de Deus sem ser procriado por pais humanos não poderia ser um descendente de Adão. Portanto, qualquer sistema incapaz de explicar a continuação do aspecto material do papado na Igreja deve ser abandonado.


8. A Tese sustenta que os “papas do Vaticano II" não são papas formalmente, mas apenas materialmente.


Isto será provado posteriormente. Que seja suficiente, por ora, explicar seu significado. A Tese diz que os "papas do Vaticano II" não são formalmente papas, ou seja, não são realmente papas e não têm autoridade. No entanto, a Tese diz que eles são papas materialmente, o que significa que receberam um dos aspectos do papado: a eleição. Uma pessoa eleita para ser papa não é papa, certamente, assim como uma mera lavagem da testa não é batismo. Mas assim como a água derramada na cabeça de uma pessoa poderia ser transformada no sacramento do batismo, se alguém pronunciasse as palavras do batismo, assim também uma pessoa eleita ao papado poderia ser feita em um verdadeiro papa se ele aceitasse o papado e recebesse de Deus a autoridade.


SEGUNDO ARTIGO

A DISPOSIÇÃO FINAL DA MATÉRIA: A ACEITAÇÃO


9. A aceitação da eleição.


Por sua natureza, o intelecto procura conhecer a essência de uma realidade da qual ele capta a existência. Ora, a ausência de autoridade nos papas do Vaticano II é sabida como um fato, como já explicamos, mas ainda não se entende a forma pela qual essa falta de autoridade é trazida à existência.


Sabemos como um fato que os "papas do Vaticano II", apesar das eleições aparentemente válidas, não receberam a autoridade suprema de Cristo. Isso é possível? A resposta está no afirmativo, pois entre uma eleição legítima e a recepção da autoridade de Deus é necessário um ato intermediário, como vimos: a aceitação da eleição por parte da pessoa eleita. Este é um ato da vontade, por parte do eleito, que deve ser manifestado externamente, mas por sua própria natureza também precisa ser interno para ser válido.

Em outras palavras, é necessário que o eleito tenha e expresse com sinceridade sua aceitação da eleição. Por um simples ato da vontade, portanto, o eleito pode optar por receber a autoridade suprema da Igreja, ou recusá-la. Ele também pode aceitá-la por algum tempo, e depois renunciá-la voluntariamente; o Papa São Celestino (que reinou entre julho e dezembro de 1294) é um exemplo bem conhecido disto. Este simples ato da vontade é chamado de aceitação. Diz-se que é a disposição final da matéria, no sentido de que é a última preparação necessária por parte do homem para que alguém possa receber a autoridade pontifical de Deus.


10. A função da aceitação.


De acordo com Bonacina,(3) aceitação não significa que o papa se constitui como um papa, ou que junta o papado a si mesmo, “porque o consentimento à eleição não é a eleição ou criação ou constituição de um papa, mas uma condição necessária para o efeito completo da eleição e da constituição de um papa.”(4)


O Cardeal Caetano (5) ensina similarmente:


“Desde a instituição imediata do primeiro "Pedro" por Cristo Ele mesmo, a união entre o papado e Pedro não vem de Deus, mas do homem. Isto se torna evidente pelo fato de que esta união é produzida por intermédio de uma eleição humana. Dois atos humanos de consentimento contribuem para este efeito, a saber, o dos eleitores e o do eleito. É de fato necessário que os eleitores elejam voluntariamente, e que o eleito aceite a eleição voluntariamente, pois de outra forma nada acontece.“ (6)


(3) Martin Bonacina (1585-1631) foi teólogo, bispo auxiliar de Praga e bispo titular de Utica. Ele é um dos poucos teólogos a ter dedicado todo um tratado à análise completa da eleição do papa.

(4) Bonacina, Tractatus de Legitima Summi Pontificis Electione, Venetiis 1638, Apud Petrum Turrinum, pp. 50-53.

(5) Tommaso de Vio Gaetani Caetano (1469- 1534) foi um cardeal dominicano, filósofo, teólogo e exegeta. Ele é um dos maiores comentadores da obra de São Tomás de Aquino.


Passerini (7) explica:


“O eleito não é papa exceto após seu consentimento, e em virtude do consentimento, que por natureza precede o Pontificado.” (8)


Bonacina diz novamente em termos equivalentes (ibid.):


“A quarta condição é que a pessoa eleita consinta. A razão para isto é, primeiro, que ninguém pode começar a possuir algo de maneira moral sem seu consentimento; portanto, para que alguém comece a possuir o papado ou o poder Pontifical, seu consentimento é necessário. Também, porque pela atribuição do papado a pessoa eleita recebe muitas obrigações, e é obrigada como que por um contrato (quasi ex contractu); mas uma obrigação de um contrato ou quase-contrato não é recebida sem consentimento, como Caetano corretamente diz no capítulo 26 de seu primeiro livro De Comparatione Papae et Concilii.”


(6) Caetano, De Comparatione Auctoritatis Papae et Concilii, capítulo XX. Ênfase acrescentada.

(7) O Rev. Peter Mary Passerini O.P. é um tomista proeminente do século XVII, cujas obras continuaram a ser estudadas nos séculos seguintes. Ele também foi o vigário geral da ordem Dominicana. Ele é um dos poucos teólogos que escreveu um tratado inteiro dedicado à análise completa da eleição do papa. O Pe. Garrigou-Lagrange O.P. o elogia muito e o segue, por exemplo, na questão do que formalmente constitui a perfeição cristã. Em sua obra “Perfeição cristã e Contemplação'', o Pe. Garrigou-Lagrange refere-se a ele como "o grande canonista Passerini, O.P., que foi um profundo teólogo e muito fiel a São Tomás".

(8) Passerini, Tractatus de Electione Papae, Roma, 1670, p. 155.



11. Intervalo entre a eleição e a aceitação.


No intervalo entre a eleição e a aceitação, apenas o eleito tem o aspecto material do papado (ainda precisando ser concluído pela aceitação), mas não ainda o aspecto formal. A duração deste intervalo é passível de ser determinada pelos eleitores, mas em si mesma é indefinida.


Bonacina explica novamente (ibid.):


“Uma dificuldade maior é se o Colégio dos Cardeais tem algum poder sobre a pessoa eleita, que ainda não aceitou a eleição. Parece-me que se deve responder com Sopranus (no local supracitado) que eles têm o poder de mandá-lo que aceite a eleição o mais rápido possível, ou que ele a recuse, se não estiver disposto a aceitá-la. A razão é que durante a vacância da Sé todo o Colégio tem poder sobre cada um dos Cardeais, ao menos quanto às coisas que dizem respeito à eleição, [como pode ser visto] no capítulo supracitado Ubi Periculum: portanto ele (o Colégio dos Cardeais) pode forçar o eleito a aceitar a eleição ou a recusá-la, se ele não estiver disposto a aceitá-la.”


12. Diferentes alternativas são possíveis no intervalo entre a eleição e a aceitação.


Na verdade, o eleito pode ou aceitar a eleição, ou recusar a eleição, ou não fazer nenhuma das duas. Em caso de aceitação, ele se torna um verdadeiro papa. No caso de recusa, ele volta ao estado em que estava antes da eleição, e outra pessoa pode, e deve, ser eleita em seu lugar. No caso de não aceitar nem recusar, o que é mais interessante, ele permanece sendo o eleito do conclave sem ainda ser um verdadeiro papa, dotado de autoridade suprema, enquanto ele não tomar uma decisão.


A situação atual do papado, como explicaremos, está entre alguém que verdadeiramente aceitou e alguém que não aceitou nem recusou: os eleitos de facto aceitaram exteriormente (como é evidente), mas não internamente (como provaremos).


A situação durante este intervalo não é, portanto, de pura vacância da Sé romana. Novamente, Bonacina o diz em termos claros (ibid., ênfase adicionada):


“Em segundo lugar, não se segue que a Sé Apostólica esteja simplesmente (simpliciter) vacante enquanto a eleição houver sido feita pelos Cardeais e a pessoa eleita ainda não houver dado seu consentimento, como quando a pessoa eleita é um Cardeal ausente (como se sucedeu com Adriano VI que estava na Espanha em 1521), pois mesmo que a eleição ainda não tenha alcançado seu pleno efeito e ainda não se diga que a Sé Apostólica tenha sido ocupada, enquanto não se seguir o consentimento da pessoa eleita; mas a Sé Apostólica não está vacante por conta disso, porque *se diz que a Sé está vacante quando não há um Pontífice de nenhuma maneira, mas em nosso caso há um Pontífice de certa maneira, já que um Papa já foi eleito, e mesmo que ele ainda não tenha sido criado, ele foi, no entanto, como que concebido e existe, por assim dizer, no ventre.*”


A última determinação da matéria, preparada para receber a forma do papado, é, portanto, o consentimento interno do eleito. Mesmo no caso de uma eleição legítima, e garantida a promessa de Cristo de conceder autoridade ao legítimo sucessor de São Pedro, a última condição ainda precisa ser cumprida para a validade: uma sincera aceitação interna do papado por parte do eleito.


13. Pode-se dizer que os "papas do Vaticano II" são papas materialmente.


Com isto não se pretende que eles sejam realmente papas, já que, em última análise, a forma do papado é o que faz um homem ser o papa, como já vimos. Mas o eleito de um conclave tem algum elemento material do papado, ou seja, alguma disposição para receber o papado, que nenhum outro homem na terra tem.


Em última análise, a matéria próxima do papado, pronta para receber de Deus a forma do papado, requer o consentimento do eleito. Mas o eleito é remotamente a matéria do papado, assim como a água é a matéria remota do batismo. O que será feito com esta matéria determinará se um papa é criado, ou se um batismo é conferido.


As distinções são assim resumidas pelo beneditino Charles Bachofen:


“A eleição é, poderíamos dizer, o elemento material remoto, enquanto o consentimento do eleito é matéria próxima, à qual se acrescenta a forma divina da primazia incorporada no bispo Romano.”(9)


Seguindo esta distinção, fica claro que é legítimo falar de um papa eleito como tendo algum aspecto material do papado, ou seja, o elemento material remoto, a eleição. Por isso a Tese diz que embora os "papas do Vaticano II" não sejam formalmente papas (eles não têm o papado que vem de Deus), ainda assim eles podem ser considerados papas materiais (eles foram eleitos pelos homens).


(9) Charles Augustine Bachofen, A Commentary on the New Code of Canon Law, Vol. II, Londres, 1918, p. 210.


TERCEIRO ARTIGO

PODERIA UM CONSENTIMENTO EXTERNO SER INVALIDADO POR UM OBSTÁCULO INTERNO?



14. O ato de aceitação é um ato humano.


Até aqui, enfatizamos a necessidade de que a aceitação do papado não seja apenas manifestada externamente, mas também seja internamente sincera para ser válida. Chegou a hora de provarmos isso.


A aceitação do papado (como a eleição, ou qualquer ato eclesiástico legítimo) é o que se chama um ato humano. Em teologia, os atos humanos se distinguem dos atos do homem na medida em que não são meros atos feitos por um sujeito independentemente de seu controle, mas que implicam conhecimento e consentimento do sujeito. Trabalhar, falar e pintar são atos humanos,por exemplo. Digerir, crescer e combater uma doença com seu sistema imunológico são atos do homem, sobre os quais não temos controle e, portanto, não temos responsabilidade moral.


De fato, qualquer ato moral é um ato humano. Assim, um pecado, para ser tal, não só deve ser cometido objetivamente, mas deve sê-lo através de conhecimento e de consentimento. Se você deliberada e voluntariamente come carne na sexta-feira, você consente, e portanto peca. Mas se você se enganou, e estava convencido de que era quinta-feira, e comeu carne, você não pecou, porque sua decisão não foi de comer carne na sexta-feira, mas no dia que você pensou ser uma quinta-feira.


O conhecimento e o consentimento são os elementos próprios de um ato humano, são intrínsecos a ele e pertencem à sua própria natureza. Os atos eclesiásticos legítimos,

como a eleição, são atos humanos. De fato, o cânon 167 do Código de Direito Canônico de 1917 nega claramente qualquer direito de eleição a alguém incapaz de produzir um ato humano, como por exemplo, uma pessoa que caísse em demência. Da mesma forma, uma eleição obtida através de graves ameaças impostas aos eleitores é inválida, porque lhes teria faltado a liberdade para dar o consentimento adequado que deveria ser dado a tal ação, apesar do voto externo.


Que os atos jurídicos (ou mais precisamente, as transações legais) exigem uma intenção própria para serem feitos é universalmente reconhecido pelos moralistas e canonistas. Sendo assim, num dicionário de teologia moral lê-se o seguinte:


“Por transação legal é normalmente entendido um ato jurídico consistindo numa manifestação direta de intenção ou vontade de produzir um efeito jurídico. *Portanto, os requisitos essenciais de toda transação legal são: (a) vontade ou intenção do sujeito* ou sujeitos; (b) sua competência (natural ou legal), pois o fator da vontade sozinho não tem efeito perante a lei, a menos que emane de um sujeito competente; (c) manifestação externa, sem a qual a vontade interna não tem força ou valor jurídico.”(10)


Como consequência, assim como se você comesse carne na sexta-feira pensando que era uma quinta-feira, você não teria cometido um pecado porque não pretendia realmente comer carne na sexta-feira, assim também, sempre que a intenção interna não corresponder à transação legal realizada externamente, esta última seria inválida. Assim, o mesmo dicionário continua:


(10) Dr. Pio Ciprotti, article Act, Juridical, in the Dictionary of Moral Theology of Roberti and Palazzini, Westminster MD, 1962. Ênfase acrescentada.


Quando a manifestação externa não coincide com a vontade interna, ou quando a manifestação externa é executada de uma maneira ou forma diferente daquela prescrita pela lei, o ato ou transação é considerado nulo e sem efeito.


15. Conhecimento e consentimento são necessários para uma aceitação válida.


A aceitação da eleição é um ato humano, que, portanto, deve ser feito com conhecimento e consentimento adequados; caso contrário, seria inválida. Assim, uma pessoa privada do uso da razão não pode verdadeiramente aceitar o papado (mesmo que se obtenha dela uma expressão externa de aceitação), porque tal pessoa é incapaz de um ato humano e, portanto, também é incapaz de compreender e aceitar as implicações de sua aceitação. Quando o eleito do conclave aceita sua eleição ao Soberano Pontificado, por seu próprio ato de aceitar a eleição, ele também aceita e assume o papel e as funções do Soberano Pontificado. O papel e as funções do Pontificado são independentes de sua vontade; eles se encontram na própria natureza das coisas, conforme estabelecido por Cristo. Aquele que aceita o papado concorda em ser papa, em cumprir as funções do papado, e em abraçar as propriedades essenciais deste papel. E como a finalidade do papado é determinada por Deus, o eleito não está autorizado a inventá-lo. Ele não poderia aceitar validamente a eleição com a intenção de exercer o papado como algo diferente do que foi estabelecido por Cristo.


16. O ensino de João de São Tomás indica que a intenção é uma exigência da lei natural.


Esta condição necessária para uma aceitação válida não é uma condição nova, implementada por alguma lei humana. Pelo contrário, ela pertence à própria natureza de um ato humano e é, portanto, uma condição necessária pertencente à lei natural. Tais "condições" da lei natural não precisaram ser estabelecidas positivamente por nenhuma autoridade, nem foram rejeitadas pelos teólogos. O dominicano João de São Tomás, por exemplo, enumera como uma eleição (e por este termo ele aqui inclui tanto o voto dos eleitores quanto a aceitação pelo eleito) poderia ser inválida, e explica:


“Da mesma forma, outras exceções da lei natural podem ser admitidas: se o eleito não for um homem, se for privado de razão, etc.”(11)


Mais tarde, ao discutir a questão da aceitação universal de um papa pela Igreja universal,(12) este grande teólogo menciona que isso seria um sinal de que o papa “foi eleito por verdadeiros eleitores, e com uma intenção real, e todos os demais requerimentos.”(13)


(11) João de São Tomás, Cursus Theologicus, Vol. VII, Disp. II, art. II, DISPOSIÇÃO II.

(12) A aceitação universal de um papa pela Igreja pode ser apresentada contra a Tese como uma objeção interessante. Será respondida minuciosamente em outro capítulo.

(13) Ibid.: "quod a veris electoribus, et per veram intentionem sit electus, et caetera alia requisita".


Aqui, e novamente um pouco mais tarde no mesmo artigo, ele indica claramente a intenção correta dos eleitores ("intentio eligentium") como um requisito óbvio para uma eleição válida, o que também se aplica, para “uma razão ainda maior, para o ato de aceitação, por parte do eleito.”


17. O consentimento dos eleitores poderia ser deficiente, e poderia ser remediado sem uma nova eleição.


Vimos como João de São Tomás explica que os eleitores têm que realmente consentir com a eleição, assim como o eleito também tem que consentir verdadeiramente com a aceitação de sua eleição. Enquanto a Tese aplica princípios comuns de teologia ao problema do consentimento por parte do papa eleito, a questão do consentimento por parte dos eleitores já foi explicitamente estudada. Enquanto algumas pessoas afirmavam que a eleição do Papa Urbano VI (1378-1389) havia sido inválida por conta de um consentimento inválido dos cardeais a uma eleição forçada, o mais influente jurista do século XIV, o italiano Baldus de Perugia (1327-1400) escreveu, a pedido da Santa Sé, toda uma defesa da validade da eleição do Papa Urbano VI. Em sua obra,(14) o sábio canonista, que na época era apelidado de "rei do direito civil e canônico" ("monarcha utriusque juris"), aborda a objeção de que a eleição, embora realizada externamente de acordo com as regras do Direito Canônico, seria, no entanto, inválida por causa da ausência de consentimento interno dos cardeais, que teriam sido forçados, assim diz a objeção, a eleger Urbano VI. Baldus de Perugia refuta esta falsa reivindicação histórica. Mas ele também aborda uma questão interessante: E se, por hipótese, os cardeais tivessem de fato sido forçados? Seria então necessário que a eleição fosse refeita? O canonista, indicando várias referências para apoiar sua resposta, diz sem hesitar:


“Eu o comprovo, em segundo lugar, pela teoria magistral, pois onde há um defeito em razão do consentimento, enquanto o poder da causa eficiente permanecer, se o consentimento for dado mais tarde ele reforça o ato contra a nulidade.” (15)


(14) Esta obra, escrita em 1380, e intitulada Allegationes secundae pro Urbano, é reproduzida pelo Cardeal Barônio em seus Annales Ecclesiastici (Tomus VII, Lucca, 1752, pp. 613-631).


Em outras palavras, enquanto a eleição não tiver sido revogada e declarada nula, um mero consentimento interno é suficiente para ratificar a eleição que foi realizada externamente. O mesmo canonista continua:


“Eu o comprovo, em terceiro lugar, porque um ato que depende de um consentimento, embora de outra forma seja nulo, pode ser validado se for retido.” (16)


Ele clarifica mais adiante:


“Também não é uma objeção válida, se se diz que o que é nulo não pode ser ratificado... porque isso é verdade quando é necessária uma certa solenidade que não foi cumprida, mas não o é quando é necessário um simples consentimento, seja porque é pelo menos confirmado, como no nosso caso, pela natureza de uma repetição tácita de ato... ou porque a causa impedidora cessa, e uma causa confirmadora vem…(17)


(15) "Secundo probo per theoricam magistralem, quia ubi est defectus ratione consensus, ibi stante potestate causae efficientis consensus superveniens firmat actum contra nullitatem". (Baldus de Perugia, op. cit., n. 20, citado em

Baronius, op. cit., p. 592).


(16) "Tertio probo, quia actus qui dependet a consensu, licet alias sit nullus, si retineatur potest valere, et valet".


Em outras palavras, já que a solenidade externa da eleição papal já se deu, e não foi anulada, se apenas falta um consentimento interno, é suficiente que o obstáculo a este consentimento desapareça, para que o consentimento à eleição seja validado.


Que o leitor note que, embora o consentimento à eleição seja aqui discutido por parte dos eleitores, é evidente que os mesmos princípios comuns referidos por Baldus de Perugia (18) também se aplicariam ao consentimento da pessoa eleita, e isto é o que a Tese afirma.


(17) "Non obstat si dicatur quod id, quod est nullum, non potest ratificari, ut notatur ext. de elec. auditis, quia id est verum ubi requiritur certa solemnitas, et illa non intervenit, secus ubi requiritur simplex consensus quia saltem confirmatur, ut ex nunc ex natura tacitae repetitionis actus, ut de le. 1 legata inutiliter, et ff. de mili. te. tribunus § ult., vel quia cessat causa impediens, et supervenit causa confirmans, ut ext. qui talit. vel notatur c. insinuante, et notatur per glo. et Cy. c. de nup. si contra."

(18) Um interessante estudo sobre este evento foi escrito por Marc Dykmans S.J., onde o contexto histórico é apresentado, e onde a sentença de Baldus de Perugia sobre a questão da convalidação de uma eleição papal é confirmeda como sendo o ensinamento comum. Cf. Marc Dykmans, La troisième élection du Pape Urbain VI, in Archivum Historiae Pontificiae, 1977, Vol. 15, pp. 217-264.


18. A hipótese de uma eleição que foi primeiro recusada, e mais tarde aceita.


Acabamos de ver que uma falta de consentimento interno para a eleição papal poderia invalidar sua aceitação, apesar de ser celebrada externamente. Mas, o leitor poderia ainda perguntar, o que aconteceria se um papa eleito recusasse explicitamente a eleição?


Normalmente os cardeais prosseguiriam para uma nova eleição, evidentemente. Mas, pode-se perguntar, o que acontece se eles não prosseguirem para outra eleição, e ainda aguardarem até que o papa eleito a aceite?


A realidade às vezes precede as especulações: de fato, este caso já ocorreu. O Papa Victor III foi eleito em 1086, mas se recusou fortemente a aceitar a eleição. Os cardeais e a população romana tentaram forçá-lo a aceitar o papado, e na verdade o fizeram pontífice à força, até que ele conseguiu fugir de Roma, depois de ter deposto sua insígnia pontifical. Ele retornou apenas um ano depois, em 1087, convencido finalmente a aceitar o papado, à vista de tantas orações e lágrimas. Este fato é apresentado por Passerini (19) ao discutir a necessidade do consentimento da pessoa eleita. Na página seguinte de seu trato, Passerini dá o princípio já dado acima:


O eleito não é papa, exceto após seu consentimento, e em virtude do consentimento, que por natureza precede o Pontificado.


19. A aceitação do papado é comparada a um contrato matrimonial.


A aceitação do papado é, portanto, um quase-contrato com Cristo e com a Igreja e, portanto, não deveria surpreender ninguém que os detentores da Tese, seguindo os passos de teólogos do passado como Caetano, Passerini e Bonacina, o tenham comparado a um contrato de casamento,(20) usando esta analogia para mostrar claramente como um consentimento, apesar de ter sido dado externamente, poderia, de fato, ser falso e, portanto, inválido.


Bonacina explica assim:


“Assim como o casamento não pode ser validamente celebrado com uma criança, ou com uma pessoa louca durante o tempo de loucura ou insanidade, também não pode ser validamente eleito papa, que não tem o uso da razão, uma vez que o papado é como uma espécie de matrimônio entre o papa e a Igreja, como os Doutores ensinam por uma comparação relativa a ele a quem é conferido um benefício.” (21)


Bonacina testifica que esta analogia é comumente usada em teologia. O Cardeal Caetano compara assim o consentimento dos eleitores e da pessoa eleita ("Pedro") ao consentimento dado pelos cônjuges em matrimônio:


“Como dois atos de consentimento concorrem para o vínculo matrimonial, a saber, o do marido e o da esposa, e a causa total deste vínculo consiste neste duplo consentimento, um cônjuge não pode causar este vínculo sem o consentimento do outro cônjuge. Em nosso caso, dois atos de consentimento também coincidem no estabelecimento do vínculo entre Pedro e o Papado, a saber, o dos eleitores e o de Pedro eleito; e ambos os consentimentos, tomados em conjunto, são a causa total desta união.” (22)


20. Um consentimento matrimonial dado externamente poderia ser inválido internamente.


É sabido que o consentimento dado externamente durante uma cerimônia de casamento pode ser viciado por uma falta interna de intenção, se um dos cônjuges não pretende verdadeiramente o que o casamento é objetivamente, ou o que ele requer. Os teólogos morais explicam que este é claramente o caso (1) quando a intenção não corresponde à essência objetiva do casamento (se um recusasse ao outro o direito de procriar filhos, por exemplo), ou mesmo em alguns casos (2) quando certas propriedades essenciais (como a indissolubilidade) são positivamente excluídas, apesar de uma aparente aceitação da natureza do casamento. (23)


(19) Op. cit., p. 154. Passerini indica diferentes historiadores para referências sobre este evento.

(20) O próprio São Paulo é o primeiro a ter comparado a união entre Cristo e a Igreja ao contrato de casamento: "Porque o marido é a cabeça da esposa, como Cristo é a cabeça da igreja". (Ef. V, 23).

(21) Bonacina, Tractatus de Legitima Summi Pontificis Electione, Venetiis 1638, Apud Petrum Turrinum, pp. 48-49. Ênfase acrescentada.

(22) Caetano, De Comparatione Auctoritatis Papae et Concilii, capítulo XXI.

(23) Veja, por exemplo: Merkelbach, Summa Theologiae Moralis, T. III, n. 804, DDB, 1956.


Assim, se um dos cônjuges apresentasse internamente um defeito de consentimento em relação ao fim primário do casamento, o casamento, embora juridicamente reconhecido pela Igreja, não seria válido aos olhos de Deus. Não haveria realmente nenhum contrato, nenhum sacramento, e os cônjuges não seriam verdadeiramente casados. Isto seria um pecado muito grave por parte dos cônjuges que assim simularam o consentimento matrimonial e consequentemente tornaram o casamento inválido. Entretanto, do ponto de vista do direito humano, o casamento aconteceu, e presume-se que seja válido até que seja estabelecido de outra forma. Ao mesmo tempo, segundo a lei, os cônjuges não são livres para se casar novamente, mas são legalmente casados. Se estiverem cientes desta invalidez, não podem, em boa consciência, pedir um ao outro que quite a dívida conjugal, pois sabem que não estão casados diante de Deus. Mas como eles gozam da presunção externa da lei, qualquer filho nascido deles é reconhecido como legítimo pela lei. A situação poderia ser remediada solicitando à Igreja uma declaração jurídica de nulidade do vínculo matrimonial, chamada de anulação. Melhor ainda, o cônjuge culpado poderia internamente emendar e corrigir sua intenção, aceitando então a indissolubilidade do casamento, tornando assim o matrimônio verdadeiramente válido. Isto poderia ocorrer mesmo sem o conhecimento do outro cônjuge, supondo que o outro cônjuge mantivesse a intenção primeira de se casar. (24)


21. Aplicação ao nosso caso.


A analogia com a aceitação do papado deveria ser evidente ao leitor. Que o Pe. Ricossa deixe claro para nós:


“Da mesma forma, o eleito do conclave que apenas externamente e não verdadeiramente deu seu consentimento à eleição não está na mesma situação que estava antes do conclave (antes de haver sido eleito) e antes da aceitação (quando era apenas o eleito, antes de haver dado sua aceitação externa). Ele é um Pontífice 'putativo' [ou seja, parece ser o papa] ou materialmente 'papa' #[ou seja, tendo sido eleito, mas sem ter realmente aceitado]. A Sé é ocupada por ele, e não pode ser ocupada por outra pessoa enquanto a eleição não tiver sido declarada nula pela Igreja. Certos atos jurídicos que são indispensáveis para a vida da Igreja podem ter efeito jurídico (seja em si mesmos, ou por obediência a Cristo, Cabeça da Igreja). E finalmente, a aceitação da eleição pode ser validada, por meio da remoção do obstáculo que foi colocado anteriormente e trouxe o defeito no consentimento…” (25)



(24) Merkelbach, op. cit., n. 931.


22. Princípios tradicionais da convalidação.


A analogia com o matrimônio nos leva a brevemente apresentar os princípios morais da convalidação. Estes são estudados regularmente em teologia moral quando se discute o sacramento do matrimônio, mas na realidade são princípios da lei natural, como dizem os próprios moralistas.


Convalidação é uma forma de tornar válido um casamento que sofre de invalidez.

Sendo assim, Merkelbach apresenta os princípios de uma simples convalidação de um casamento:


“Uma simples convalidação é uma convalidação pela qual é fornecido o que estava faltando no início, e torna o casamento válido. Um casamento pode ser inválido por três razões:

1) por causa da incapacidade de uma pessoa através de um impedimento de direcionamento;

2) por causa de um defeito ou vício do consentimento;

3) a partir de um defeito de forma. Existem, portanto, três maneiras diferentes de revalidar um casamento.” (26)


Assim, um casamento pode ser inválido 1) por causa de um impedimento, o que significa que, seja por lei divina ou eclesiástica, a pessoa não é capaz de se casar. 2) pode ser inválido por causa de um consentimento defeituoso, como já explicamos. 3) por último, pode ser inválido devido a um defeito de forma, ou seja, o casamento não foi celebrado de acordo com as prescrições do Direito Canônico.


A analogia com as eleições papais é evidente. Uma eleição papal poderia ser inválida, 1) Primeiramente, porque a pessoa não pode ser eleita, através de um obstáculo seja da lei divina seja da eclesiástica. 2) Em segundo lugar, a eleição poderia ser inválida por causa de um defeito de consentimento. 3) Uma eleição papal poderia ser inválida porque as regras apropriadas de eleição não foram seguidas.


É interessante notar que em todos estes três casos, o matrimônio às vezes pode ser convalidado. Da mesma forma, uma eleição papal inválida pode, muitas vezes, ser remediada.


Se considerarmos o terceiro caso, por exemplo, que é o defeito de forma. É consenso entre os teólogos que a aceitação universal da Igreja sempre corrigiria qualquer defeito no processo de eleição. Em outras palavras, supondo que os cardeais não tenham seguido as regras do conclave às quais eram obrigados por decretos anteriores dos pontífices Romanos, ainda assim a eleição seria ratificada ou convalidada, caso toda a Igreja reconhecesse passivamente o novo papa como legítimo sucessor de São Pedro.


Se considerarmos o primeiro caso, o de um impedimento que tornaria uma pessoa incapaz de ser eleita, o princípio geral é que, se o impedimento cessar, o casamento (ou a eleição papal) poderia então tornar-se válido. Assim, teólogos como Passerini (27) deduziram que, se um herege fosse eleito papa, ele ainda poderia aceitar a eleição validamente se removesse esse impedimento abraçando a verdadeira fé.(28)


Por fim, se considerarmos a segunda possibilidade, que é um defeito de consentimento, nós já demonstramos como isto foi aplicado por Baldus de Perugia por parte dos eleitores, e como pode ser aplicado da mesma forma por parte da pessoa eleita.


Para concluir, portanto, é evidente que a analogia com o matrimônio é uma ferramenta didática valiosa para apresentar e aplicar princípios gerais de teologia moral sobre questões de invalidade de contrato, impedimentos, vícios de forma, defeito de consentimento, etc.


(26) Merkelbach, op. cit., n. 929.

(27) Passerini, op. cit., p. 148.

(28) Assim, embora o totalismo difira da Tese em que atribuir a causa da invalidez do papado dos "papas do Vaticano II", ambos os sistemas deveriam, na verdade, concordar sobre o fato de que a convalidação da eleição ainda é possível. A Tese sustenta que o problema é principalmente um defeito de intenção; o totalismo argumenta que a pessoa eleita era, por lei divina, incapaz de ser eleita. Em ambos os casos, entretanto, como

já demonstramos, o problema poderia ser remediado, e a eleição convalidada.


QUARTO ARTIGO

QUAL INTENÇÃO É REQUERIDA PARA RECEBER A AUTORIDADE?


22. Aceitar o papado é aceitar o que o papa é objetivamente destinado a fazer.


Para aceitar o papado validamente, o candidato eleito deve aceitá-lo assim como ele o é objetivamente, ou seja, como estabelecido por Cristo. Isso significa que a aceitação do papado deve ser um ato humano: feito com conhecimento e consentimento adequados. A pessoa eleita ao papado deve possuir a intenção de fazer o que os papas fazem para que ela seja papa.


De maneira similar, o presidente dos Estados Unidos é eleito em Novembro, mas ele apenas recebe autoridade legítima em Janeiro, ao pronunciar o juramento do ofício. Nesse meio tempo, portanto, ele é um presidente-eleito, mas não possui autoridade, até ele jurar defender a constituição dos Estados Unidos:


“Eu solenemente juro que irei fielmente realizar o Ofício de Presidente dos Estados Unidos, e irei com o melhor de minhas habilidades, preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos.”


Algo similar ocorria quando o juramento de coroação era imposto ao papa-eleito, como será explicado mais adiante.


24. O que importa portanto é a intenção objetiva, manifestada externamente, que necessariamente está inclusa na intenção subjetiva, que é interna.


Nós aqui não estamos lidando com a intenção pessoal e subjetiva que move alguém a fazer algo, que responderia as questões: Por que você faz isso? Por que você quer fazer esta coisa? É suficiente observar que, quaisquer que sejam seus motivos pessoais, a pessoa de fato manifesta claramente a intenção de fazer algo. Alguém poderia aceitar se casar por um bom ou mau motivo, por exemplo, e ainda casar-se validamente (seja por causa de luxúria, por causa de dinheiro, ou para dar glória a Deus, etc.)


A motivação subjetiva poderia ser má ou virtuosa. Estritamente falando, nós nem estamos interessados na moralidade da intenção. Em todo caso, é ainda possível para a pessoa aceitar o matrimônio como ele o é objetivamente.

O mesmo vale para o papado: alguém poderia aceitar se tornar o papa por causa de vaidade, orgulho, ambição, avareza, etc. Isso é irrelevante para o problema em questão: esse alguém ainda aceitaria se tornar o papa. A intenção da qual estamos falando não é, portanto, o “finis cujus gratia opus fit”, o fim pelo qual alguém faz alguma coisa, que é extrínseco a ela, mas o próprio “finis operis”, o fim intrínseco do ato em si. Motivações pessoais (a intenção subjetiva) podem ser muito difíceis de determinar, e são frequentemente uma combinação de muitas razões diferentes. Mas o fato permanece óbvio que, por qualquer razão pessoal, a pessoa quer fazer algo (em nosso exemplo anterior, se casar).


Essas distinções são comumente explicadas em filosofia e teologia. Por exemplo, num manual de filosofia em uso no século XX lê-se o seguinte:


“A intenção é principalmente ordenada ao fim, mas ela não pode abstrair-se dos meios dos quais se utiliza: esses meios são portanto também desejados, embora de maneira secundária.”


Portanto, se alguém faz uma doação a um pobre por causa de vaidade, sua intenção é primeiramente ordenada à vaidade, mas ela não pode excluir o fim do ato (ajudar o pobre) do qual esse alguém escolhe se utilizar para alcançar o fim primário (vaidade). Seja o ato de oferecer esmola feito por vaidade ou por amor a Deus, será sempre um fato que ele está objetivamente ordenado ao auxílio do pobre.


25. A intenção objetiva é passível de ser conhecida.


Ainda que a motivação pessoal possa ser às vezes muito difícil de julgar e determinar, a própria intenção objetiva pode facilmente se tornar evidente. É às vezes difícil de determinar porque alguém realiza tal ou qual ação. Mas o fim intrínseco dessas ações é geralmente evidente em si mesmo. Por exemplo, pode não ser claro o porquê de alguém estar cultivando a terra, enquanto é evidente que o fim intrínseco de sua ação é o cultivo da terra. Pode não ser claro o porquê de alguém querer entrar para um convento, enquanto é bastante claro que esse alguém quer entrar para um convento, etc. Portanto, o argumento da Tese não é baseado na intenção subjetiva da pessoa, mas na objetiva intenção intrínseca às ações realizadas pela pessoa.


Alguns teólogos, portanto, pensaram na hipótese de um papa que, por exemplo, não quisesse exercer os deveres do papado em seu poder espiritual, mas meramente se comportar como o governante secular das posses da Igreja. Esta é a questão teológica do papa cismático, que nós iremos agora brevemente apresentar.


26. Pode um papa se tornar um cismático?


A questão do papa cismático não foi estudada tão extensivamente como a hipótese do papa herético. No entanto, a hipótese posterior pressupõe a anterior, dado que a heresia naturalmente será seguida de cisma:


“Toda heresia implica cisma: logo a possibilidade de um papa cismático foi por esse próprio fato admitida.” (29)


Poucos teólogos, no entanto, consideraram a possibilidade de cisma puro, ou seja um cisma que não seria a consequência de heresia.


O Cardeal Caetano explicitamente atestou essa possibilidade:


“Isso de fato ocorreria na mente do papa, caso ele recusasse comunhão com a Igreja e seus membros, como sua cabeça em coisas espirituais, mas apenas se comportasse como seu governante secular. Isso de fato ocorreria, se ele fizesse isso, ou se ele presumisse excomungar a Igreja. Pois é evidente que a pessoa do papa poderia cair num mal deste tipo, e neste caso ele seria verdadeiramente cismático.” (30)


O instruído teólogo explica (ibid.):


“A pessoa do papa poderia se recusar a corresponder ao ofício do papa, que é temporariamente achado nele como um acidente. E se ele tivesse essa mente pertinaz, ele seria cismático por se separar da união com a cabeça.” (31)


Caetano quer dizer por essas últimas palavras que a pessoa do papa separaria-se a si mesma da união com Cristo, Cabeça da Igreja. Em outras palavras, tal pessoa perderia o papado. A conclusão é então evidente (ibid.):


“A Igreja está no Papa quando ele se comporta como um Papa, como Cabeça da Igreja. Mas quando ele se recusa a se comportar como Cabeça da Igreja, nem a Igreja estaria nele, nem ele estaria na Igreja.” (32)


(29) “Toute hérésie impliquant schisme, on admettait par le fait même la possibilité, pour le pape, de devenir schismatique.” (Article Schisme in the Dictionnaire de Théologie Catholique).


(30) “Contingeret autem hoc in animo quidem Papae, si nollet communicare cum Ecclesia ut pars illius, ut caput illius in spiritualibus; sed habere se tantum ut dominus temporalis. In opere vero, si facto hoc faceret; vel si excommunicare praesumeret Ecclesiam. Constat namque quod in hujusmodi mala posset persona Papae incidere: ac per hoc vere schismaticus esset.” (Cajetan, In Sum. Theol., IIa-IIae, q. XXXIX, a. 1, n. 6).


(31) “Persona Papae potest renuere subesse officio Papae, quod per accidens est pro tunc in ipso. Et si hoc in animo pertinaciter gereret, esset schismaticus per separationem sui ab unitate capitis.”


(32) “Ecclesia est in Papa quando ipse se habet ut Papa, ut caput Ecclesiae. Quando autem ipse nollet se habere ut caput ejus, neque Ecclesia in ipso, neque ipse in Ecclesia esset.”


Outros teólogos fizeram uma análise similar desta questão. Assim, Suárez diz o seguinte:


“E o Papa poderia se tornar cismático se ele recusasse união e comunhão com todo o corpo da Igreja, como ele deveria, se ele tentasse excomungar toda a Igreja, ou se ele quisesse abolir todas as cerimônias eclesiásticas que foram confirmadas pela tradição apostólica.” (33)


Antes deles, a questão do papa cismático foi estudada em profundidade pelo Cardeal Torquemada. Um dos meios pelos quais o papa poderia se tornar cismático, diz o famoso eclesiologista, é se o papa se separasse de Cristo, Cabeça da Igreja:


“O Papa pode se retirar de Cristo que é a cabeça principal da Igreja… por desobediência, por não obedecer sua Lei ou por prescrever coisas que são contrárias à Lei natural ou divina; e consequentemente o papa pode separar a si próprio do corpo da Igreja de Cristo.” (34)


Logo, quando apresentando a Tese, o Bispo Guérard des Lauriers O.P. referiu-se a situação dos “papas do Vaticano II” como cisma capital, (35) ou seja, o tipo de cisma, próprio ao papa, que é se separar de Cristo, Cabeça da Igreja, por um defeito de intenção. Como Caetano diz, a Igreja está no Papa quando ele se comporta como papa, como cabeça da Igreja. Mas quando ele se recusa a se comportar como Papa, nem a Igreja estaria nele, nem ele estaria na Igreja. (27)


(33) “Et hoc secundo modo posset Papa esse schismaticus, si nollet tenere cum toto Ecclesiae corpore unionem et conjunctionem quam debet, ut si tentaret totam Ecclesiam excommunicare, aut si vellet omnes ecclesiasticas caeremonias apostolica traditione firmatas evertere.” (Suarez, T. XII, Disp. XII De Schismate).


(34) “Papa potest a Christo qui est principale caput ecclesiae, et respectu cujus maxime unitas ecclesiae attenditur per inobedientiam recedere non obediendo legi ejus aut praecipiendo ea quae naturali aut divino juri contraria sunt, et per consequens separare se a corpore ecclesiae Christo…” (Torquemada, Summa de Ecclesia, p. I, L. IV, c. XI).


(35) Cf. Cahiers de Cassiciacum, 3-4, Nice, 1980,p. 63. Bp. Guérard des Lauriers O.P. cuidadosamente faz a distinção entre cisma pessoal e cisma capital. Ele não afirma que os “papas do Vaticano II” são necessariamente cismáticos como pessoas privadas.


27. O Papa Leão XIII na questão da intenção no caso das ordens Anglicanas.


O Papa Leão XIII declarou a invalidez das ordens Anglicanas pela Bula Apostolicae curae, de 1896, por conta de um defeito tanto de forma quanto de intenção. A respeito da intenção do ministro, o Papa Leão XIII explica:


“A Igreja não julga sobre a mente e a intenção, na medida em que são por natureza atos interiores; mas enquanto elas são manifestadas exteriormente ela está obrigada a julgá-las.”


O Papa Leão XIII deixa claro que a intenção é algo por sua natureza interno, e que é manifestada exteriormente. Ele além disso confirma que esta intenção é passível de ser julgada não na medida em que ela é interna, mas na medida em que ela é manifesta externamente, que é o mesmo princípio usado pela Tese no presente argumento.


Um outro comentário pode ser feito aqui nas seguintes palavras de Leão XIII na mesma Bula:


“Se o rito for alterado, com a manifesta intenção de introduzir um outro rito não aprovado pela Igreja e de rejeitar o que a Igreja faz, e o que, pela instituição de Cristo, pertence à natureza do Sacramento, então é claro que não apenas a intenção necessária está ausente no Sacramento, mas que a intenção é adversa e destrutiva ao Sacramento.”


O Papa Leão XIII claramente explica que deliberadamente rejeitar um rito da Igreja, substituindo-o com outro que não mais reflete “o que, pela instituição de Cristo, pertence à natureza do Sacramento”, equivale a não possuir a intenção necessária. Nós veremos posteriormente como salvaguardar os sacramentos da Igreja e em particular salvaguardar o Santo Sacrifício da Missa deve ser intencionado pela pessoa que aceita a eleição ao papado. Torna-se então bem claro como consequência que ter a intenção de deliberadamente rejeitar o rito Romano tradicional e substituí-lo por outro que não mais reflete “o que, pela instituição de Cristo, pertence a sua natureza” também seria, por analogia, um claro defeito de intenção na aceitação do papado.


28. A autoridade tem uma ordem essencial ao bem comum.


Portanto qual é a intenção objetiva necessária para aceitar o papado? É o fim objetivo para o qual ele foi estabelecido por Cristo. Ora, o fim de qualquer autoridade é o bem comum da sociedade sobre a qual ela governa. Isso é verdade até para as autoridades civis. A autoridade possui uma ordem natural ao bem comum, tanto que uma lei promulgada contra o bem comum não é lei de maneira alguma. (36)


(36) São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 90, art. 2 e 3. Este tópico foi extensivamente explicado pelo Bispo Donald Sanborn, “On Being a Pope Materially, Second Section.”


29. Comparação e diferenças entre o papado e uma autoridade natural.


Como havemos dito, uma lei promulgada contra o bem comum não é lei de forma alguma. Em poderes civis, uma lei ilegítima não necessariamente tornaria seu promulgador ilegítimo, se o último preservar uma ordem habitual ao bem comum. Teria-se que ignorar a lei ilegítima e cumprir as demais.


Há, no entanto, esta importante diferença com a suprema autoridade da Igreja. No caso do papado, como vimos anteriormente, a suprema autoridade é constituída por uma imediata comunicação de Cristo. Ora, a assistência do Espírito Santo foi divinamente prometida juntamente com essa habitual comunicação de Cristo. O Pontífice Romano é portanto infalivelmente assistido por Cristo, e jamais poderia promulgar uma lei universal que pudesse ser danosa à Igreja (como se explica no capítulo da indefectibilidade da Igreja).


Portanto, apesar de que é às vezes justificado “reconhecer” um governo civil e "resistir" às suas leis injustas, esta política jamais pode ser justificada em relação ao supremo governo da Santa Igreja Católica e suas leis universais.


Como consequência, o Romano Pontífice ou possui autoridade suprema, ou ele não possui autoridade suprema. Não há meio-termo possível. No entanto, a intenção habitual de buscar o bem comum da Igreja ainda é necessária, para poder receber a autoridade de Cristo, já que ele é o fim essencial pelo qual o papado foi instituído.


QUINTO ARTIGO

O QUE É O BEM COMUM DA IGREJA, QUE O ELEITO DEVE OBJETIVAMENTE QUERER?


30. A Suprema lei da Igreja indica seu bem comum.


Dado que uma lei é ordenada ao bem comum, a suprema lei da Igreja é uma indicação exata do seu bem supremo. Esta suprema lei da Igreja é a glória de Deus e a salvação das almas, salus animarum suprema lex.


Esta salvação das almas pode ser mais profundamente explicada ao considerar a tríplice missão da Igreja: ensinar, governar, e santificar os fiéis, para guiá-los ao céu. É portanto claro que o fim da Igreja inclui a pregação da fé (o que demanda a condenação da heresia como consequência), a manutenção de santas leis disciplinares, e a santificação dos fiéis pela administração dos sacramentos.


31. O Papa Pio XII nos fornece um exemplo de uma coisa que deve ser pretendida para aceitar o papado.


As Constituições Apostólicas sobre eleições papais não especificam o que é necessário para a aceitação da eleição. Todavia o próprio Papa Pio XII indicou ao menos uma intenção que o eleito deve possuir: se ele for um leigo, deve pretender ser sagrado bispo para estar apto a receber a eleição:


“Ainda que um leigo fosse eleito papa, ele apenas poderia aceitar a eleição se fosse apto a ser ordenado e estivesse disposto a ser ordenado.” (37)


De fato o Papa é o bispo de Roma, e como havemos dito, o eleito deve aceitar o papado como ele foi estabelecido por Cristo. De acordo com o Papa Pio XII, portanto, Cristo estabeleceu o papado de tal forma que o candidato eleito deve ser um bispo, ou ao menos deve concordar em ser sagrado bispo. O Papa Pio XII não exige do leigo eleito ao papado ser sagrado bispo para só então se tornar papa; ele meramente indica que um não-bispo deve ter a intenção de ser sagrado bispo para que haja uma aceitação válida do papado. O leigo, se ele a tivesse, seria papa imediatamente, mesmo antes de ser ordenado padre e sagrado bispo. Estar privado do poder das ordens, portanto, não o priva do pontificado, mas de uma intenção contrária ao pontificado. Uma falta de intenção de ser sagrado bispo introduz um defeito no consentimento, e portanto previne o eleito de aceitar apropriadamente a eleição. Isso iria, por uma razão maior, ser verdadeiro de alguém que, de maneira mais geral, não possui a intenção habitual de buscar o bem da Igreja. Seria portanto possível para o eleito pronunciar sua aceitação invalidamente, porque lhe falta a necessária intenção.


(37) Pope Pius XII, Address to the Second World Congress of the Lay Apostolate, October 5th, 1957.


32. Outro exemplo extraído da história da Igreja.


Durante a terrível crise do grande Cisma Ocidental, havia simultaneamente até 3 pessoas reivindicando seu direito ao papado, três “papas” ao mesmo tempo, cada um alegando ser o único verdadeiro. Um deles residia em Roma (Gregório XII), outro em Avignon (Bento XIII), e o último em Pisa (João XXIII). Por fim, dois deles (João XXIII e Bento XIII) foram depostos pelo Concílio de Constança, e o outro (Gregório XII) renunciou ao papado. Era muito difícil para os católicos neste período saber qual era o verdadeiro papa, e isso permaneceu sendo discutido por historiadores, apesar de que agora parece haver um consenso de que Gregório XII era o verdadeiro papa. Isso toca na questão de um papa dúbio.

Papa dubius, papa nullus, diz o axioma, um papa duvidoso não é papa. Mas poderia ser (e assim era o caso de Gregório XII) que um verdadeiro papa, validamente eleito, e portanto verdadeiramente possuindo a suprema autoridade sobre a Igreja universal se tornasse duvidoso, não perante Deus e em realidade (coram Deo), mas na estimativa comum dos homens e aos olhos da Igreja (coram Ecclesia).


Por conta da suprema necessidade da Igreja de saber a identidade de seu pastor supremo, a Igreja neste caso está intitulada a avaliar a situação e requerer de papas duvidosos que eles renunciem o cargo, seguindo-se um processo similar àquele reservado ao papa herético. Após o Concílio geral pedir ao papa duvidoso renunciar ao cargo, ainda que ele se recusasse, ele teria provado-se culpado de uma atitude cismática ao não atender a essa necessidade extrema da Igreja, e portanto claramente privado da autoridade de Cristo, se de fato ele anteriormente a havia possuído. Em outros palavras, mesmo se, hipoteticamente, um verdadeiro papa perante Deus e em realidade, mas duvidoso perante a Igreja, se recusasse a renunciar sua reivindicação ao papado, ele iria por essa recusa na verdade perder o papado de qualquer forma, já que se recusar a cooperar em matéria tão grave é equivalente a cisma. Isso é o ensinamento explícito de grandes teólogos como Azor, Caetano, Suárez, João de São Tomás, Zapelena, etc. E esses foram os princípios aplicados pelo Concílio de Constança para resolver o grande Cisma Ocidental.


Incidentalmente, um falso concílio em Pisa tentou fazer algo similar, e pretendeu depôr os outros dois reivindicantes ao papado, em favor do reivindicante de Pisa, chamado João XXIII. Esse concílio foi ilegítimo, no entanto, e não seguiu o devido processo, como explica Muzzarelli em seu trabalho onde ele também explica os princípios apresentados acima. (38)


Fica bastante claro neste exemplo que querer o bem comum da Igreja é um requisito para o papado, e que não ter a intenção deste bem da Igreja faria um papa perder o papado. Neste caso particular, o bem da Igreja era cooperar voluntariamente em pôr fim no cisma ao renunciar qualquer reivindicação ao papado, para proceder a uma única eleição que poderia unificar a todos.


(38) Alphonse Muzzarelli S.J., De Auctoritate Romani Pontificis in Conciliis Generalibus, T. II, Gandavi, 1815, p. 364.


SEXTO ARTIGO

UMA CONFIRMAÇÃO DA HISTÓRIA DO JURAMENTO DE COROAÇÃO PAPAL


33. Existe algo como um juramento papal?


A existência de um juramento que o papa-eleito haveria de realizar é uma dessas coisas sobre as quais muito se fala sem nunca saber ao certo se é verdade, ou exatamente o que ela implica. Existe de fato tal coisa como um juramento papal, e ele esteve em uso durante muitos séculos. Os “papas do Vaticano II” foram às vezes acusados de perjúrio por terem quebrado o juramento papal, mas não há nenhuma prova de que eles fizeram o juramento em primeiro lugar. Em todo caso, esse juramento dá uma apresentação adequada sobre o que é o ofício do papado, e, neste aspecto, certamente os “papas do Vaticano II” não preencheram os requisitos ao papado como são postos neste juramento tradicional. E sob este último aspecto, um resumo da história do juramento papal faz-se relevante.


34. O Liber Diurnus.


O que é comumente referido como o “o juramento papal” refere-se a uma fórmula contida no Liber Diurnus, do qual faremos uma breve apresentação.


Após a rápida propagação da fé no Império Romano e a conversão de Constantino, o prestígio do supremo ofício do papado cresceu constantemente. O Romano Pontífice era capaz de governar a Igreja de uma forma cada dia mais estável, e, como consequência, mais regular e padronizada. Logo surgiram livros nos quais os atos dos Romanos Pontífices eram descritos e regularizados.


Esses atos podiam ser de dois tipos: o sacerdócio e o governo (ou ordem e jurisdição), já que o Romano Pontífice pertence ao supremo grau desses dois aspectos da hierarquia Católica. As funções litúrgicas exercidas pelo Romano Pontífice eram codificadas num livro chamado Ordo Romanus; enquanto as regras de governo e administração eram reunidas num outro livro chamado Liber Diurnus. (39)


Este livro, cujo nome latino poderia ser traduzido em sentido amplo como “o livro diário”, contém todas as fórmulas que o Romano Pontífice, auxiliado por sua chancelaria, necessitaria para governar a Igreja: fórmulas para instituir bispos, #fórmulas a serem enviadas para as autoridades civis com diferentes propósitos, fórmulas para a concessão de relíquias, fórmulas para todo tipo de privilégio.


(39) Mais recentemente, foi especulado que os manuscritos que temos na verdade não seriam cópias do Liber Diurnus propriamente, que era usado pela Santa Sé, mas que esses manuscritos seriam um livro escolar, portando o mesmo nome, e contendo cópias das fórmulas oficiais, para o treinamento de jovens notários. Nós deixamos essas controvérsias aos historiadores. Na ordem prática, está claro que estas fórmulas estiveram sob uso, e particularmente a fórmula do juramento papal, fórmula LXXXIII, que é o objeto de nossa atenção. Sobre aquela teoria mais recente, ver L. Santifaller, Die Verwendung des Liber Diurnus in den Privilegien der Päpste von den Anfängen bis zum Ende des 11 Jahrhunderts, (Mitteilungen des Instit. f. Öster. Geschichtsf., vol. xlix, 1935, pp. 224-366).


Apesar de que, como havemos explicado, o Ordo Romanus era o livro dedicado às funções litúrgicas, enquanto o Liber Diurnus era uma coletânea de funções administrativas, certos atos do Romano Pontífice poderiam conter às vezes tanto um exercício de poder de ordens quanto do supremo poder de jurisdição, e nesse caso qualquer que fosse o caráter predominante do ato determinaria se ele era posto no Ordo Romanus ou no Liber Diurnus. Assim, o Ordo Romanus contém a fórmula do decreto de eleição de um bispo no mesmo local onde é descrito o rito de sagração episcopal. Por outro lado, a coroação do papa, que certamente é um magnificente rito litúrgico, é registrada no Liber Diurnus, já que ela faz parte da eleição do sucessor de São Pedro. E assim é que as cerimônias de sagração e coroação do recém eleito papa, cujas cerimônias incluem a profissão do famoso juramento papal, estão contidas no Liber Diurnus, e não no Ordo Romanus, como poderia se imaginar.

A história deste Liber Diurnus foi o objeto de muita pesquisa e controvérsia, tanto concernente à sua exata origem e contexto, quanto sua recuperação, séculos mais tarde. (40)


(40) Cf. E. de Rozière, Liber diurnus, ou recueil des formules usitées par la chancellerie pontificale du Ve siècle au XIe siècle, Paris, 1869; H. Leclercq, Liber diurnus Romanorum pontificum, em Dictionnaire d’Archéologie Chrétienne et de Liturgie, Paris, 1930; L. Santifaller, Die Verwendung des Liber Diurnus in den Privilegien der Päpste von den Anfängen bis zum Ende des 11 Jahrhunderts, in Mitteilungen des Instit. f. Öster. Geschichtsf., vol. xlix, 1935, pp. 224-366.


Visto que este livro esteve em uso durante vários séculos, não é uma surpresa que diferentes edições apresentariam pequenas correções ou mudanças nas fórmulas contidas. Desta forma, as edições que Ivo de Chartres e Graciano puderam estudar nos séculos XI e XII continham algumas adições ausentes em edições anteriores.


O autor do Liber Diurnus é desconhecido, mas ele certamente trabalhava na chancelaria papal, como é evidentemente mostrado pelo estilo, o conhecimento das fórmulas e privilégios Romanos, assim como por seu absoluto domínio das leis eclesiásticas e costumes.


O Liber Diurnus é estimado por E. de Rozière ter sido escrito entre o fim do sétimo século e o início do oitavo século. (41)

Segundo Leclercq, no entanto, (loc. cit.) as diversas fórmulas foram gradualmente escritas em diferentes períodos da história, do início do sétimo século ao nono século.


Certas fórmulas do Liber Diurnus de fato apresentam similaridades com atos prévios dos Romanos Pontífices. Em muitos casos, um novo decreto promulgado por um papa era essencialmente uma cópia de um ato de seus predecessores, sendo trocado apenas os nomes, datas e lugares. Desta forma foi observado que tão logo quanto sob o papa Gelásio (492 - 496), certos atos diplomáticos foram transformados em fórmulas padronizadas ao apagar os nomes próprios e os lugares. E muitas fórmulas usadas sob o Papa Gelásio e o Paga Gregório Magno (590 - 604) possuem notáveis similaridades com as fórmulas contidas no Liber Diurnus.


O Liber Diurnus lentamente caiu em desuso em favor de fórmulas mais adaptadas às novas condições da sociedade Cristã na Idade-Média. Ele ainda era listado por canonistas dos séculos XI e XII como uma fonte de lei eclesiástica; no entanto, documentos históricos mostram que suas fórmulas não estavam mais em uso.


35. A fórmula LXXXIII, ou o juramento papal.


Nós não debateremos aqui o conteúdo exato desta fórmula, já que esta é uma questão disputada, devido ao fato de que os manuscritos existentes apresentam pequenas variações. Nós não precisamos realizar um trabalho tão acadêmico, já que todas as diferentes versões contém essencialmente as mesmas ideias, e particularmente o que mais importa na nossa presente discussão: o novo papa professa manter as tradicionais doutrinas, disciplinas, e liturgias da Igreja, nos mais solenes termos.


Nós aqui providenciamos a profissão atribuída ao recém eleito Papa Conon, que reinou por menos de um ano (de Outubro de 681 até sua morte em Setembro de 682). Esta profissão dataria, portanto, do ano 681. É encontrada, dentre outros lugares, na famosa Patrologia Latina publicada por J.-P. Migne em Paris em 1864. (42)


Aqui está uma tradução [em português] (43) deste texto:


Em nome do Senhor e Deus, Nosso Salvador Jesus Cristo, etc. Declaração …, mês … Eu, … pela misericórdia de Deus sacerdote e eleito, e prestes a tornar-me o humilde bispo da Sé Apostólica pela graça de Deus, Eu professo a vós, bem-aventurado Pedro príncipe dos Apóstolos, (a quem o Criador e Redentor de todos, o Senhor Jesus Cristo, deu as chaves do reino dos céus para ligar e desligar no céu e na terra, dizendo: O que ligares na terra, será ligado no céu: e o que desligares na terra, será desligado no céu), e Eu professo também à vossa santa Igreja, que hei recebido hoje para governar por vossa assistência.

Eu professo salvaguardar com todos os meus esforços, até com a minha vida e meu sangue, esta retidão da verdadeira fé que, tendo sido dada por seu autor, Cristo, há sido transmitida por seus sucessores e discípulos até minha baixeza, e é encontrada em vossa santa Igreja, e Eu sofrerei pacientemente, com vossa ajuda, as dificuldades dos tempos.

Eu professo salvaguardar a fé do mistério da santa e indivisível Trindade, que é um Deus. Eu professo salvaguardar a fé do mistério da dispensação, cumprida de acordo com a carne, do Filho unigênito de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu professo salvaguardar a fé de todos os outros dogmas da Igreja, como eles nos foram legados pelos concílios universais, e nos decretos dos ilustríssimos e apostólicos pontífices, e nos escritos dos doutores da Igreja. Similarmente eu professo salvaguardar tudo que foi dado por vós para a preservação da sua e da nossa fé ortodoxa.

Eu professo manter integralmente, ao iota, os santos e universais concílios, nomeadamente, o concílio de Nicéia, o concílio de Constantinopla, o primeiro concílio de Éfeso, o concílio de Calcedônia, e o segundo concílio de Constantinopla, que foi celebrado durante o reino do Imperador Justiniano, de piedosa memória. E eu professo salvaguardar, profundamente e totalmente, juntamente com os outros concílios, com a mesma honra e veneração, o sexto concílio, que foi recentemente reunido debaixo de meu apostólico predecessor Agatho, e o Imperador Constantino [IV] de piedosa memória. Eu professo pregar o que eles pregaram, e condenar, por boca e coração, o que eles condenaram.

Eu ainda professo confirmar e manter intactos, e salvaguardar na estabilidade do seu vigor, como foram estabelecidos, com grande diligência e tenacidade, todos os decretos de nossos predecessores, os pontífices apostólicos, o que quer que seja que eles tenham estabelecido e aprovado em sínodos. Eu professo condenar por sentença de igual autoridade qualquer ou quem quer que eles tenham condenado ou repudiado.*

Eu professo manter inviolada a disciplina e o rito da Igreja como eu os encontrei, e como eles foram transmitidos a mim pelos meus predecessores.

E eu professo trabalhar para manter integralmente as coisas da Igreja, e para garantir que elas sejam integralmente mantidas.

Eu professo não mudar nem diminuir nada da tradição que foi mantida pelos meus ilustres predecessores, nem admitir qualquer novidade. Pelo contrário eu professo que irei fervorosamente salvaguardar e venerar com toda as minhas forças e esforços o que eles transmitiram, como verdadeiro discípulo e seguidor deles.

Eu professo corrigir qualquer coisa contrária à disciplina canônica; e eu professo salvaguardar os sagrados cânones e constituições dos nossos pontífices como se fossem mandamentos divinos e celestiais, estando ciente que farei uma estrita prestação de contas a vós de todas as coisas que eu professo, no juízo divino, como ocupando vosso lugar, pelo desígnio de Deus, e cumprindo esta função, ajudado por sua intercessão.

Eu professo que se eu presumir fazer ou permitir qualquer coisa contrária a essas, vocês serão desfavoráveis a mim no dia do juízo divino.

Eu também vos suplico que me dêem ajuda para ser cauteloso em manter essas coisas diligentemente e cuidadosamente nesta vida corruptível, para que eu possa aparecer sem culpa na frente do juíz de todos nós, Nosso Senhor Jesus Cristo, quando ele vier para julgar estritamente as coisas nas quais Ele confiou, para que Ele possa me fazer participar no lote dos justos, e colocar entre os seus fiéis discípulos e sucessores.

Eu escrevi essa profissão com a minha própria mão, como ela está contida acima e foi indicada por mim pelo notário e arquivista. E com uma mente pura e consciência devota, eu sinceramente apresentei por um juramento físico esta profissão a vós, bem-aventurado Pedro, apóstolo e príncipe de todos os apóstolos.

(43) Para que o texto faça mais sentido, tomamos a liberdade de repetir a expressão “Eu professo” que em Latim é dita no início e é implicitamente entendida ao longo da profissão. Nós também tomamos a liberdade de dividir longas sentenças, para facilitar a leitura. O leitor desconfiado é convidado a verificar o Latim original na Patrologia.

36 . A história da fórmula LXXXIII.


Como dito acima, a fórmula LXXXIII apareceu pela primeira vez no Liber Diurnus no máximo no oitavo ou nono século, mas provavelmente já esteve em uso desde antes, em uma forma ou outra.

Um eminente canonista do século XI, Ivo de Chartres (1040-1115), reproduziu em seus trabalhos dois fragmentos da fórmula LXXXIII, que é a profissão de fé do recém eleito pontífice (44).

Outro proeminente canonista desse período, Cardeal Deusdedit (Século Décimo-primeiro), reproduziu em seus trabalhos não apenas a fórmula da profissão de fé do recém eleito papa, mas também as fórmulas de sua eleição e consagração. (45)

O Bispo Anselmo de Lucca (1036 - 1086) e o grande canonista Graciano (séculos XI - XII) reproduziram em seus trabalhos alguns fragmentos da fórmula LXXXIII, que é a profissão de fé feita pelo recém-eleito papa.

Esta fórmula LXXXIII, que é o objeto de nossa atenção, é dito por E. de Rozière ser a fórmula que sobreviveu melhor à passagem do tempo. Assim, além das referências dadas acima, é provado que esta fórmula ainda era conhecida no século XVI, quando até mesmo o nome do livro Liber Diurnus, que a continha (a fórmula), havia sido há muito esquecido.

Assim, Antonio Agustín y Albanell (1516–1586), arcebispo de Tarragona e um pioneiro na pesquisa histórica de Direito Canônico, reproduziu a fórmula em seu trabalho sobre leis pontifícias. (46) Mas ao comentar o Decreto de Graciano, que continha uma passagem da mesma fórmula, indicando sua origem como sendo do Liber Diurnus, o estudado arcebispo candidamente confessou ser ignorante de qualquer livro portando o nome de Liber Diurnus.(47)


(44) Ivo of Chartres, Panormia, L. II, c. 103; Decretum, part. IV, c. 132 and c. 197. Ele também cita uma passagem desta mesma fórmula numa carta endereçada ao arcebispo de Lyons (Epist. LX).

(45) Cf. de Rozière, op. cit., p. XXXIV.

(46) Antonius Augustinus, Epitome juris pontifici, L. V, tit. X, c. 54, Tarragona, 1587.

(47) “Is liber non extat, quod sciam, hoc titulo.” (Antonius Augustinus, De emendatione Gratiani, L. I, d. 20, ed. Baluz., p. 233).

Barônio (48) também reproduziu a fórmula em seu famoso trabalho de história, os Annales, quando discutindo o ano 869 (n. 59), para mostrar que o oitavo concílio ecumênico, celebrado em Constantinopla (49) sob o Papa Adriano II, foi recebido por toda a Igreja, e aquela profissão de aderência a esse concílio foi incluída nas profissões de fé, incluindo a profissão de fé feita pelo recém eleito papa (isto é, o “juramento papal”, ou fórmula LXXXIII do Liber Diurnus).

É difícil dizer se a fórmula continuou a ser usada após o século XI, quando o próprio Liber Diurnus lentamente passou a ser esquecido.

Alguns historiadores têm debatido que a fórmula do juramento papal (a fórmula LXXXIII do Liber Diurnus) foi usada pelo Papa Bonifácio VIII (1230-1303). (50)

Outros historiadores contestaram a autenticidade da profissão feita por Bonifácio VIII, mas está claro que a fórmula era conhecida a William de Nogaret e seus juristas, que, contestando a legitimidade de Bonifácio VIII, argumentaram que o Papa Celestino V não era capaz de renunciar ao papado, como ele o fez em 1294. Nogaret aduziu um número de razões (51) para apoiar seu argumento, e a razão vigésima-quarta é baseada na fórmula do juramento papal contida no Liber Diurnus. Embora reconhecendo que essa fórmula não está mais em uso, Nogaret corretamente argumenta que o conteúdo da antiga fórmula é ainda relevante à medida que ela mostra a extensão da aceitação do papado. Ele erroneamente argumenta, no entanto, que ela implicitamente contém uma promessa de nunca renunciar ao papado. Nós aqui providenciamos uma tradução de seu argumento:

A vigésima-quarta razão é que ao estado do papado está atrelado uma profissão e um voto, como aparece no conteúdo da profissão do Romano Pontífice que é encontrada no Liber Diurnus, do qual uma parte é também encontrada no Cânon. E nesta profissão é explicitamente dito que o Romano Pontífice faz uma profissão e promete a Deus e a Pedro o Príncipe dos Apóstolos, que enquanto ele viver ele tomará conta do rebanho que o Senhor confiou a ele, e ele governará a Igreja de acordo com os decretos e os canons dos sacros concílios, e dos Padres, e pelo conselho dos Cardeais da santa Igreja Romana. Ele é portanto obrigado por um voto e por uma profissão, e é obrigado a cumprir seus deveres enquanto viva. Mas é notório e evidente que um não pode renunciar seus votos e profissões e aquilo a que ele é obrigado por voto e por profissão. Todos concordam nisso, e ninguém diz o contrário. Logo o papa não é capaz de renunciar, já que ele é obrigado enquanto ele vive, já que ele é obrigado por um voto e por uma profissão. *E se um fosse objetar que no passado os Romanos pontífices costumavam fazer essa profissão, mas que hoje eles não mais a professam verbalmente, a resposta é obviamente evidente, que aqueles que recebem o papado tacitamente juram e professam todas essas coisas.* De fato a profissão é atrelada ao ofício, e todos concordam que um voto interpretativo obriga tanto quanto um voto explicitamente emitido. Isso pode ser visto nas ordens sagradas do subdiaconato, do diaconato e do sacerdócio, na recepção das quais na Igreja Ocidental, os ordinandos são entendidos a serem obrigados à castidade tanto quanto se eles houvessem feito profissão aberta dela. O mesmo deve ser dito aqui sobre o voto e profissão do supremo pontificado. E é portanto evidente, muito claramente, que o papa não pode renunciar. [*Ênfase adicionada] (52)


(52) 52 “Vigesimo quarto, quia annexa est statui Papatus professio et votum, sicut apparet ex tenore professionis Romani Pontificis, quae habetur in libro Diurno, cuius etiam professionis pars habetur in Canone, et in illa professione habetur expresse quod profitetur et promittit Deo et Principi Apostolorum Petro, quod quamdiu vivet curam gerit gregis Dominici sibi commissi, et gubernabit Ecclesiam secundum decreta et canones sanctorum Conciliorum, et Patrum, et de consilio Cardinalium sanctae Romanae Ecclesiae: Ergo obligatus est ad curam gerendam quamdiu vivit ex voto et professione astrictus. Illud autem notorie constat, quod votis et professionibus, et iis ad quae quis voto et obligatione obligatur, secundum omnes, nemine contradicente renuntiari non potest, et sic nec Papa renuntiare potest, obligatus quamdiu vivit ex voto et professione astrictus. Et si dicatur quod ita profitebantur antiquitus Romani Pontifices, sed hodie non profitentur de facto verbaliter: responsio manifestissime patet, quia recipientes nunc Papatum tacite vovent et profitentur haec omnia : nam statui professio est annexa, et secundum omnes votum interpretativum ita obligat, sicut expresse emissum: quod est videre in sacris ordinibus, Subdiaconatu, Diaconatu, et Sacerdotio, ex quorum susceptione perinde interpretative in Occidentali Ecclesia obligantur, sicut si profitentur expresse castitatem : sic dicendum est hic in voto et professione summi pontificatus. Et sic patet manifestissime quod renuntiare non possit.” (in P. Dupuy, Histoire du Différend., p. 459).

Fica claro por esta argumentação de Nogaret que a fórmula do Liber Diurnus não era mais usada no tempo de Bonifácio VIII. Ele está correto em argumentar que o que é declarado nesta fórmula representa a extensão da aceitação do papado pelo papa-eleito, ainda que a fórmula não esteja mais em uso. Ele está errado em tentar interpretar essa fórmula como sendo equivalente a algum tipo de voto de nunca renunciar ao papado.

37. A profissão imposta pelo Concílio de Constança.


Ainda que a fórmula do Liber Diurnus tenha sido abandonada, a ideia mesma de impor algum tipo de profissão do recém-eleito papa irá ocasionalmente reaparecer na história da Igreja. O Concílio de Constança, em 1417, teve que tratar e resolver a horrenda crise do Cisma Ocidental, durante o qual houveram simultaneamente dois ou três reivindicantes ao papado. O Concílio de Constança urgiu-os a renunciarem suas reivindicações, pelo bem comum da Igreja, que exigia que um novo papa fosse universalmente aceito. O Concílio de Constança portanto se tornou muito atento à necessidade de qualquer Romano Pontífice de buscar a glória de Deus e a salvação das almas, e não sua própria ambição e glória.

O Concílio de Constança portanto impôs ao papa-eleito uma profissão de fé que inclui uma promessa de manter a Fé Católica e os ritos tradicionais da Igreja:

“Em nome da Santa e indivisível Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Amém. No ano da natividade de Nosso Senhor mil e etc., Eu, Nome, eleito papa, com coração e mente confesso e professo ao todo poderoso Deus, cuja igreja eu assumo com sua assistência governar, e ao bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, que enquanto eu estiver nesta frágil vida eu irei firmemente crer e manter a fé católica, de acordo com as tradições dos apóstolos, dos concílios gerais e dos santos padres, especialmente dos oito santos universais concílios, nomeadamente o primeiro em Nicéia, o segundo em Constantinopla, o terceiro em Éfeso, o quarto em Calcedônia, o quinto e sexto em Constantinopla, o sétimo em Nicéia e o oitavo em Constantinopla, assim como os concílios gerais em Latrão, Lyons e Vienne, e eu preservarei esta fé inalterada até o último ponto e irei confirmar, defender e pregá-la até a morte e o derramamento de meu sangue, e irei do mesmo modo seguir e cumprir em todos os sentidos o rito dos sacramentos eclesiásticos da Igreja Católica transmitido. Esta é minha profissão e confissão, escrita por ordem minha por um notário da santa Igreja Romana, eu assinei embaixo com minha própria mão. Eu sinceramente ofereço isso neste altar N. a vós, todo-poderoso Deus, com uma mente pura e uma consciência devota, na presença dos seguintes. Feito etc.” (53)


(53) Concílio de Constança, Sessão 39, 9 de Outubro de 1417. Ênfase adicionada.

Esta profissão apresenta algumas diferenças da fórmula LXXXIII do Liber Diurnus, mas foi claramente feita com o propósito de ser sua continuação e reintrodução, e essencialmente contém as mesmas promessas: salvaguardar o depósito da Revelação Divina confiado por Cristo à Igreja e, para esse propósito, proteger e salvaguardar fielmente as tradições da Igreja.

Nós não fomos capazes de determinar até quando esta nova fórmula permaneceu em uso.

38. Os “papas do Vaticano II” proferiram o juramento papal?


Não, eles não proferiram. Nós estamos certos deste fato, graças a um número de razões.

Primeiramente, é certo que o juramento não fazia mais parte da cerimônia de coroação papal já desde antes do Vaticano II. Alguns autores, como Charles Pichon (54), descrevem nos mais mínimos detalhes cada um dos passos cerimoniais ocorrendo desde a última agonia de um papa morrendo (que é em si acompanhado por um número de cerimônias), passando pela convocação e os procedimentos do conclave, até a solene coroação e entronamento de um novo papa. Nunca eles mencionam qualquer juramento sendo feito pelo recém eleito pontífice. Parece, portanto, que o juramento papal não era mais parte da cerimônia de coroação, já no tempo do Papa Pio XII, e provavelmente esteve em desuso por um longo tempo antes disso.

Em segundo lugar, os livretos oficiais (55) publicados pela Santa Sé para ajudar os assistentes a seguir as cerimônias de coroação de João XXIII e Paulo VI são bem detalhadas, e eles não indicam nenhum juramento sendo feito em qualquer momento. Nem houve jamais qualquer testemunha histórica atestando um fato do tipo.

Em terceiro lugar, após a definitiva deposição da tiara por Paulo VI, os “papas do Vaticano II” não mais tiveram que passar por qualquer cerimônia de coroação que seja. É nesta cerimônia que o papa, no passado, pronunciaria esse juramento papal.

Portanto, devemos concluir que os “papas do Vaticano II” nunca fizeram explicitamente tal juramento.


39. A existência deste juramento prova não obstante a necessidade de haver a devida intenção.


Para nosso propósito aqui é suficiente haver demonstrado que um juramento papal existiu, e esteve em uso durante alguns séculos. A despeito de suas diferentes versões, está claro que ele incluía uma promessa solene de fielmente preservar a doutrina, a disciplina e a liturgia da Igreja. Este é de fato o propósito do papado; é por isso que ele foi estabelecido por Cristo. É por isso que qualquer um se tornaria papa em primeiro lugar. O juramento está apenas tornando oficial e solene algo que foi sempre entendido quando um homem aceita o ofício do papado.

Assim, sob este aspecto, a existência histórica deste juramento mostra muito claramente a mente da Igreja nesta matéria: quem é eleito papa deve necessariamente concordar e consentir em promover a glória de Deus e a salvação das almas, através de uma cuidadosa custódia da doutrina, disciplina, e liturgia da Igreja.

O juramento está lá apenas para torná-la mais evidente, assim como o juramento feito pelo presidente dos Estados Unidos torna evidente que ele tem intenção de salvaguardar a Constituição Americana. Caso ele se recusasse, ele não poderia se tornar o presidente. Caso o papa-eleito recusasse o conteúdo do juramento de coroação, ele não poderia ser aceito como um legítimo pontífice Romano.

Isso é verdade não simplesmente por questão de uma cerimônia que haveria sido infringida, mas sim porque o papado é por sua própria natureza ordenado ao fim apresentado no juramento, e recusá-lo é equivalente a recusar se tornar o papa.

Como conclusão, portanto, este juramento é uma clara exposição do que aceitar o papado realmente significa, e é uma prova positiva que se um papa-eleito recusasse o papado como ele é objetivamente descrito, ele não poderia se tornar um verdadeiro papa.


SÉTIMO ARTIGO

OS PAPAS DO VATICANO II NÃO POSSUÍAM A DEVIDA INTENÇÃO?


40. “Eles alteraram a religião.”


É óbvio a qualquer observador sincero que os papas do Vaticano II não estão exercendo o papado como ele foi exercido por séculos, desde o tempo de São Pedro até o Papa Pio XII. Em vez disso, eles estão se aproveitando da influência do papado para pregar um humanismo sem dogmas que é totalmente oposto à religião Católica. Isso é um fato independentemente de suas intenções subjetivas; mas estando em boa consciência ou não, o fato permanece que eles não querem objetivamente o bem da Igreja.


As provas deste tipo foram numerosas em número, mas elas são particularmente óbvias durante o tempo do presente incumbente Jorge Bergoglio. Por vontade própria, ele deixou de lado o título de “Vigário de Cristo” entre os demais “títulos históricos”, claramente indicando que em sua mente o papa não é mais o Vigário de Cristo, e não alega sê-lo. Ele manifestou esforços intermináveis para suprimir a doutrina Católica, a Missa Católica, e a disciplina tradicional. Ele claramente não quer ser o que o papa tradicionalmente é, *como foi estabelecido por Cristo Ele mesmo.

41. A própria existência do “movimento tradicionalista” é prova positiva desta falta de intenção.


Qualquer católico tradicional que recusa as alterações do Vaticano II e da Missa Nova como sendo contrárias à glória de Deus e à salvação das almas é uma testemunha viva desse fato. Sendo assim, o Bispo Guérard de Lauriers disse: “Pela sua própria existência, Écône testemunha em termos concretos o que nós afirmamos inteligivelmente.” De fato todo o apostolado da FSSPX é baseado na ideia de que a preservação da Tradição é necessária para a salvação das almas, e que a presente hierarquia e particularmente os “papas do Vaticano II” não estão fazendo objetivamente o que eles deveriam, mas estão na realidade pervertendo as almas. Neste último ponto eles estão corretos. Nós esperamos e rezamos que este longo estudo teológico possa equipá-los com princípios capazes de adequadamente explicar este fato, e capazes de ser reconciliados com a indefectibilidade da Igreja, apresentada em um capítulo anterior.















































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