Traduzido por Igor Novelli
(A palestra original em Italiano do Pe. Francesco Ricossa se encontra aqui.)
O tema do nosso encontro decorre desse acontecimento de pouco mais de um mês, 14 de outubro em Praça São Pedro: a “canonização” entre aspas (e já explicaremos por quê) de Paulo VI e, depois, de outros santos dos quais não falaremos, não porque não interessem, mas porque não teremos tempo para tanto.
Esse acontecimento, como poderei explicar na segunda conferência, tem uma grande importância para a vida de um cristão. Normalmente, a canonização de um santo tem uma valência positiva, porém, no caso presente, essa valência é negativa. Como lhes foi dito agora há pouco, por séculos pouquíssimos papas alcançaram a honra dos altares. Os dois únicos em idade moderna proclamados santos foram São Pio V e São Pio X, um foi elevado à honra dos altares, mas apenas como beato, Inocêncio XI – por Pio XII --, ao passo que, aparentemente (não a toa chamamos esta palestra “Todos Santos”), de João XXIII em diante a canonização parece assegurada para quem ocupa a sede de Pedro. Isso me lembra um imperador romano que, sentindo-se muito próximo da morte, preocupado e assustado, disse: “temo que estou para tornar-me um Deus” (já que, após a morte, havia a deificação para o imperador defunto). E hoje, provavelmente – desejando-lhes longa vida --, para Joseph Ratzinger e Jorge Mario Bergoglio é só questão de tempo: quando deixarem este triste mundo, devemos nos preparar para vê-los nos altares. Isso por princípio de indução, isto é, porque canonizaram todos os outros. João Paulo I, coitado, foi um pouco esquecido, mas, por sorte, ontem mesmo li que reconheceram um milagre seu, portanto também ele também parte para a canonização e a lacuna será preenchida.
Pois bem, por ocasião da “canonização” (sempre entre aspas) de Paulo VI, eu fiz uma homilia sobre a questão, dando o nosso ponto de vista e do nosso instituto, e tive a agradável surpresa de ver que uma associação tradicionalista de Turim chamada Una Vox (divisão local da antiga Una Voce), inseriu em seu press review a transcrição dessa minha homilia. Porém, ao mesmo tempo foram inseridos outros artigos sobre o mesmo tema que iam num sentido bem diferente da minha homilia, o que é normal, pois tot capita tot sententiae. Entre esses, havia o artigo Falsos e verdadeiros santos do nosso tempo do prof. De Mattei, a quem devo agradecer pela resenha que fez sobre meu livro Vergonha da Tradição, mas do qual devo discordar. Para resumir, De Mattei, que é o mais importante dentre aqueles que pensam da mesma maneira, rejeitou a canonização de Paulo Vi (e nisso concordamos, já antecipo: não pensamos que Paulo VI seja verdadeiramente santo), mas, para fazê-lo sustentou que o papa não é infalível nas canonizações. Ou seja, ao declarar alguém santo, o papa – já que De Mattei, como a grande maioria dos tradicionalistas, reconhece a legitimidade do atual pontífice e de todos os outros desde Paulo VI – não é infalível nessa matéria. É o único modo, pensa De Mattei e assim escreve e diz, de poder explicar o fato de que um legítimo papa, Pontífice da Santa Igreja e Vigário de Cristo, canonizou Paulo VI e que, não obstante, um fiel pode recusar essa proclamação e ter em consciência que Paulo VI não é santo. Para sustentar essa hipótese, seu artigo se apoia na autoridade e resume brevemente os argumentos de alguns autores; cinco ou seis, mas dois em particular: todos esses autores são articulistas de publicações “tradicionalistas”, sempre entre aspas (uso esse termo por comodidade, embora não o considere muito exato), que, como De Mattei, por um lado rejeitam a canonização de Paulo VI, ou ao menos a colocam em dúvida, por outro devem sustentar que o papa não é infalível ao canonizar. Dois autores, porém, foram citados com maior atenção e são estes: Monsenhor Brunero Gherardini, que nos deixou ano passado; foi professor na Pontifícia Universidade Lateranense, além de postulador da cananonização de Pio IX; o outro è Padre Jean-Michel Gleize, sacerdote da FSSPX e professor no seminário de Écône.
As opiniões de Mons. Gheradini e de Padre Gleize não são idênticas. Padre Gleize admite que, até o Concílio Vaticano II (este excluso), o papa era infalível nas canonizações, ao passo que Monsenhor Gherardini, estudando a coisa de modo mais aprofundado, sustenta que é possível colocar em dúvida, de modo mais geral – o que incluiria todas as canonizações do passado –, a infalibilidade papal nesse campo. “É uma opinião que exponho como possibilidade, não como uma certeza”, diz. Assim, para Gherardini, as canonizações não são infalíveis, e, para Gleize, as canonizações eram infalíveis, mas é lícito e legítimo ter sérias dúvidas ou até negar a infalibilidade das canonizações proclamadas em tempos recentes, sobretudo a partir de 1983, quando João Paulo II implementou mudanças no processo de canonização. Essa atitude na FSSPX começou a se manifestar em março de 2002, quando, num comunicado da assessoria de imprensa a respeito da iminente canonização do fundador da Opus Dei, Josemaria Escrivá de Balaguer, a fraternidade se coloca uma dúvida: “será que nesse último caso pode-se aplicar a infalibilidade pontifícia?”. Este que vos fala respondeu a essa declaração da FSSPX com um artigo publicado na edição 54 de Sodalitium (nossa revista). Depois que Monsenhor de Balaguer foi declarado santo, publiquei na edição seguinte uma outra breve nota, sempre sobre o tema da infalibilidade nas canonizações. Monsenhor Gherardini teve a bondade de citar-me entre os autores que recentemente defenderam a tese da infalibilidade, porém, como já dei a entender antes, não estava de acordo com o que escrevi. De resto, disse, e com razão, que esses autores – sejam a favor ou contra a infalibilidade pontifícia nessa matéria – não disseram nada de novo sobre o tema, não fazendo mais que repetir o que já foi dito a respeito. E isso é verdade; também eu, nesse meu artigo, não disse nada de novo, limitei-me apenas a repetir o que ordinariamente afirmavam os teólogos.
Bem, isto posto, procuremos abordar a questão, que normalmente seria tema para especialistas, mas que torna-se importante para a vida concreta de cada simples cristão, de cada verdadeiro católico nos dias de hoje. Um tema para especialistas que, porém, em tempos de paz, tranquilidade e ordem para a Igreja, não representava nenhum problema singular para os fiéis. O que quero dizer? Que um ímpio, um anticristão, um protestante poderia permitir-se falar mal de um santo, condená-lo, etc., mas jamais passaria pela cabeça de um católico que alguém venerado nos altares, de quem se lia a vida com admiração e se rezava com devoção pudesse não ser santo. Isto é, pensar que o Papa, Vigário de Cristo, pudesse enganar-se sobre alguém ao qual oramos, assistimos a Santa Missa celebrada em sua honra, cujo nome é presente no calendário, de quem procuramos imitar a vida, as palavras e as virtudes, que é amado por todos e considerado nosso pai e irmão na Fé, a quem invocamos e do qual esperamos receber graças , com efeito, é coisa que não encontraríamos um único fiel para colocar em dúvida. E essa fé do povo cristão correspondia à opinião unânime dos teólogos, ou seja, não é possível para um católico ter a mínima dúvida sobre a santidade de um personagem canonizado pela Igreja. Essa era a doutrina pacificamente sustentada pela Igreja. Mesmo Monsenhor Gherardini, que em 2003 tentou propor uma opinião diferente e inovadora a esse propósito, admite o pacífico reconhecimento dessa doutrina, seja por parte dos doutores, seja pelos fieis. De fato, assim inicia seu artigo: “nada fazia pensar, até pouco tempo atrás, que a posição definitivamente alcançada com Bento XIV seria novamente discutida”.
O que houve, então, para um teólogo definido “o último da gloriosa escola romana de teologia” como Monsenhor Gherardini – que, além de tudo, foi postulador da causa de canonização de Pio IX durante boa parte de sua vida – quase dizer “meu esforço foi inútil, pois trabalhei para reconhecer uma santidade, mas, em realidade, esse decreto de canonização é evanescente, já que não temos nenhuma certeza de que alguém que o papa declara ser santo é santo de verdade”? O que o levou a tomar essa posição? Bem, fundamentalmente, foi o mesmo motivo que, no fim de sua vida, o levou a pôr em dúvida a infalibilidade do Magistério, por exemplo, no Concílio Vaticano II, uma vez que levanta a hipótese de que o Concílio contenha graves erros ou que, pelo menos, tem ensinamentos que entram em contraste com o ensinamento precedente da Igreja. Assim, como o Magistério da Igreja, mesmo nos pontos onde normalmente se pensava que fosse infalível, tem sua autoridade posta em dúvida por causa do desconcerto que decorre da contradição entre o ensinamento atual e o precedente, da mesma forma, anos antes, Gherardini põe em xeque as canonizações. Não diz, contudo, a razão que o levou a isso, qual canonização que o inquietou – se foi a canonização de alguém em particular –, mas parece claro que se, até pouco tempo atrás, dizia “era ponto pacífico a infalibilidade do papa ao canonizar os santos” e agora tem sérias dúvidas é porque provavelmente também ele notou que, segundo seu parecer e de muitos, vinham sendo canonizados alguns homens que é difícil – para não dizer impossível – dizer que fossem santos.
Bem, então qual é o ensinamento da Igreja sobre esse tema? Com tanta confusão, o que pensar? A canonização dos santos é infalível ou não? Já antecipo, para sermos claros e evitar equívocos – porque às vezes fala-se muito e, no fim, percebemos que quem nos ouvia não entendeu nada e que falamos à toa – o meu pensamento e o de nosso instituto.
Por um lado – e essa será a primeira conferência que farei –, o papa é infalível na canonização dos santos. Ou seja, não concordo com De Mattei, com Gherardini e com os outros autores que recentemente colocaram em dúvida a canonização dos santos. Portanto, essa será a premissa maior do nosso raciocínio.
Já na segunda conferência gostaria de explicar os motivos pelos quais penso – e nisso De Mattei está de acordo conosco, ou nós com com ele; em suma, todos os católicos ditos “tradicionalistas” estão de acordo – que Paulo VI (e não somente ele) não pode ser considerado santo. É absolutamente irrazoável pensar que Paulo VI possa ser considerado santo. E essa é a premissa menor do nosso raciocínio.
Em resumo: o papa é infalível ao canonizar os santos (premissa maior e primeira conferência). Ora, Paulo VI foi canonizado em 14 de outubro por Mario Jorge Bergoglio e beatificado precedentemente pelo mesmo, tendo antes a heroicidade de suas virtudes reconhecida por Ratzinger sob o título de “venerável”. Bem, a premissa menor é que a canonização feita por Bergoglio é um fracasso porque Paulo VI não pode ser considerado santo razoavelmente.
A conclusão que exponho desde já não pode ser outra além desta: Mario Jorge Bergoglio não pode ser o papa, pois, do contrário, a canonização declarada solenemente por ele na Praça São Pedro em 14 de outubro de 2018 seria infalível. Naturalmente, o mesmo raciocínio podemos aplicar a João XXIII e João Paulo II, já no aguardo de aplicá-lo a todos os outros que se preparam, seguindo os passos desses, para elevar-se à honra, não podemos dizer “dos altares”, mas da mesa do novo missal.
Então, quais argumentos podemos dar em favor da canonização infalível dos santos? Numa breve parêntese, recordo que, efetivamente, a canonização sofreu uma evolução histórica. Na Igreja sempre houve o culto dos santos (1), de suas relíquias (2) e de suas imagens (3). Essas três realidades são verdades de Fé, portanto, verdades reveladas por Deus que todo católico deve crer por Fé. Por exemplo, o Concílio de Trento, em 3 de dezembro de 1563, emitiu um decreto sobre a invocação, a veneração dos santos e de suas relíquias e imagens sagradas (Denzinger-Schonmetzer, 1821 em diante): Manda o Santo Concílio a todos os bispos, aos encarregados do ensino e aos que mantêm cura, que instruam diligentemente os fiéis, sobretudo no que diz respeito à intercessão e invocação dos Santos, à veneração das suas Relíquias e ao uso legítimo das Imagens, segundo o costume da Igreja Católica recebido dos primórdios do Cristianismo, conforme o consenso comum dos Santos Padres e os decretos dos sacros Concílios. Ensinem-lhes que os Santos reinam juntamente com Cristo e oferecem a Deus suas orações pelos homens, que é bom e útil invocá-los com súplicas e recorrermos às suas orações, ao seu socorro e auxilio, para obtermos benefícios que a Deus devem ser pedidos por intermédio de Seu Filho Jesus Cristo Nosso Senhor, único Redentor e Salvador nosso. Pensam, pois, impiamente os que dizem que os Santos, que gozam da eterna felicidade no céu, não devem ser invocados; outro tanto se diga dos que afirmam que invocá-los para que orem por cada um de nós é oposto à palavra de Deus e contrário à honra do único mediador de Deus e dos homens, Jesus Cristo (cfr. l Tim 2, 5), ou que é estultície suplicar com palavras ou mentalmente aos que reinam no céu.
A fé católica, portanto, nos ensina que aos santos deve-se culto e oração; e a devoção dos fieis, como dissemos, jamais duvidou disso. Santos são todos aqueles que estão em graça de Deus, que têm a graça santificante; mas um culto particular, com orações confiantes e devotas, deve ser decretado não a todos que estão na graça de Deus, ou que morreram na graça de Deus, mas somente àqueles que, tendo praticado heroicamente todas as virtudes, das teologais às cardinais e morais, são um exemplo a ser imitado pelos batizados de modo tal que, ao imitar suas vidas e absorvendo suas doutrinas, estaremos seguros de caminhar pela via da santidade. Podemos confiar também que, por serem amigos de Cristo e reinarem no céu com Ele, são nossos intercessores junto ao Senhor. Como, porém, não sabemos com certeza quem praticou heroicamente as virtudes, quem está na glória do céu, quem pode, portanto, interceder e orar por nós, a quem devemos prestar culto, eis que a Igreja coloca em prática essa Fé. Concretiza-a. E de que modo? Com a canonização dos santos. Alguns desses cristãos que viveram praticando heroicamente as virtudes são declarados santos pela Igreja e pelo Papa, que é seu chefe visível e Vigário de Cristo, de tal maneira que o católico possa aplicar essa verdade de fé que, de outro modo, ficaria sem objeto. Afinal, é preciso orar aos santos, mas quem são? É preciso venerar as relíquias e as imagens dos santos, mas quem são esses santos de quem devemos venerar as relíquias e as imagens? Teríamos um culto a não se sabe quem, deveríamos orar a não se sabe quem, deveríamos seguir o exemplo de não se sabe quem e poderíamos, por um erro de julgamento nosso, tributar essa honra a pecadores e até mesmo, talvez, a condenados ao inferno que, com o mau exemplo de suas vidas e doutrinas, poderiam induzir-nos a erro. Ao invés de guiar-nos pela via da santidade, poderiam conduzir-nos pela via da condenação. A esse respeito, pensemos em todos os casos de falsos santos que surgiram na história da Igreja e como o Santo Ofício ocupava-se de punir a santidade afetada que engana os fiéis. Também muitas seitas nasceram a partir de pessoas que, falsamente, simulavam uma santidade que não era verdadeira.
A Fé nos diz que devemos crer com Fé divina em tudo o que nos revelou Deus na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, seu divino Filho Unigênito. Porém, se não soubéssemos o que Cristo nos revelou, seríamos obrigados a dizer “creio em tudo o que ensinou Jesus Cristo, mas não sei o que Ele ensinou”. E quem nos diz aquilo que nos revelaram Nosso Senhor, os profetas que O antecederam e os apóstolos depois dEle? Quem nos diz o que devemos crer por Fé? A Igreja. A Igreja nos diz “isso Jesus Cristo revelou e faz parte do depósito da Revelação e aquilo Jesus Cristo não revelou e não faz parte do depósito da Revelação”. É como dizemos no ato de Fé: “creio tudo o mais que crê e ensina a Santa Igreja Católica Apostólica Romana porque Deus, verdade infalível, lho revelou”. Não é que a Santa Igreja inventa a Revelação. Ela nos assegura infalivelmente aquilo que Cristo revelou e, destarte, por oposição de contrariedade ou de contradição, o que devemos rejeitar como erro ou heresia.
Bem, analogicamente, a Fé nos diz que devemos prestar um culto aos santos, às suas relíquias e suas imagens, orar para eles e imitar suas vidas e virtudes, mas essa Fé ficaria sem objeto, não saberíamos distinguir entre os verdadeiros e falsos santos (como diz o título do artigo de Roberto de Mattei, “Veri e Falsi Santi del nostro tempo”) se a Igreja não nos dissesse quem devemos venerar e quem não, quem praticou as virtudes heroicas, a quem devemos rezar, a quem devemos prestar culto – notem bem que trata-se de um culto (dulia) que envolve a virtude de religião –. Como falamos de virtudes dos santos que devem ser imitadas, isso envolve a moral cristã, pois as virtudes praticadas por eles são a aplicação prática dessa mesma moral, e os vícios contra os quais os santos lutaram e venceram são o contrário da moral cristã. Enfim, já que não é possível ser declarado santo sem ter a virtude da Fé eminentemente, heroicamente vivida, então também o ensinamento dos santos é, para nós, como uma profissão de Fé. Portanto, envolve o culto e a virtude de religião, toda a moral cristã e até mesmo a profissão de Fé cristã. Tudo isso está incluído na canonização dos santos. E, como o Papa e a Igreja devem ser infalíveis ao nos dizer o que foi revelado por Deus porque, do contrário, não teríamos nenhuma certeza sobre o que Deus revelou e que devemos crer e sobre o que Deus condenou e que devemos condenar, assim, analogicamente – não é a mesma coisa, mas o raciocínio é o mesmo –, nós, para sabermos com certeza a quem devemos render culto e a quem não, é necessário que a Igreja e o Papa possam nos dizer infalivelmente quem é santo e quem não é.
Bem, como eu dizia antes de fazer essa enorme digressão, a fé no culto que se deve prestar aos santos sempre esteve presente desde o início do catolicismo, mesmo se, em maneiras diferentes, a Igreja propôs à nossa veneração o culto de determinados santos. Nos primeiros séculos, era muito difundido o culto dos mártires, que derramaram seu sangue pela Fé; depois se desenvolveu o culto pelos confessores, que sofreram o cárcere e as perseguições por Cristo, embora não morrendo por Ele; em seguida vieram aqueles que consagraram toda sua vida à prática heroica da virtude. No princípio, a canonização era declarada pelos bispos e também, naturalmente, pelo bispo de Roma, o Papa, que nesse caso tinha uma importância particularíssima. Aos poucos, a canonização papal, que valia para toda a Igreja e, portanto, era a única garantida pela infalibilidade, tornou-se a verdadeiramente decisiva – e isso desde a Alta Idade Média – até que, para abreviar, com Papa Sisto V, em 1588, surgiu a canonização como nós a conhecemos hoje. Todavia, a infalibilidade papal na canonização dos santos já era defendida muito antes de Sisto V, já que a encontramos, por exemplo, não apenas vivida na vida cotidiana dos fieis, mas também defendida e sustentada por São Tomás de Aquino, que é o doutor universal da Igreja e que a mesma nos propõe como doutor comum, portanto, que podemos seguir com tranquilidade.
São Tomás dedicou ao tema uma questão de quodlibet, onde se pergunta se aqueles que foram canonizados pelo papa são real e certamente santos ou se podem ser, eventualmente, danados, e dá os argumentos para explicar como a Igreja e o Papa não podem errar nessa matéria.
Sobre o tema, temos duas grandes autoridades: a de São Tomás, que é a autoridade geral em todas as questões de teologia, e a autoridade em particular sobre a questão da canonização dos santos, que é a de Bento XIV, já mencionado anteriormente. É verdade que esse papa escreveu seu livro, que é uma “bíblia” para quem se ocupa da canonização dos santos, quando não era ainda papa, logo não podemos falar do magistério oficial do papa; mas, ao mesmo tempo, também é verdade que a Cúria Romana e os próprios papas, em todas as matérias concernentes ao culto dos santos, sempre consideraram o livro de Bento XIV, De Servorum Dei Beatificatione et Beatorum Canonizatione, como autoridade incontestável. Pio XII mesmo, num memorável discurso, recordou ainda uma vez a autoridade absoluta de que desfruta essa obra de Bento XIV na Igreja.
Bem, e o que sustenta Bento XIV nessa obra que, segundo o próprio Monsenhor Gherardini, era “uma posição definitivamente adquirida que não passaria pela cabeça de ninguém discutir outra vez”? No capítulo 43 de sua obra, Bento XIV sustenta e defende, com os argumentos que citarei, a infalibilidade do papa na canonização de um beato. No capítulo 44, se coloca algumas objeções e as responde. Finalmente, no capítulo 45 se pergunta se é uma verdade de Fé que o papa seja infalível nas canonizações e se é uma verdade de Fé que o canonizado seja realmente santo. Ora, a conclusão a que o papa chega no capítulo 43 é de que as canonizações são infalíveis e, para endossar essa doutrina, no capítulo 45 ele defende que trata-se de uma verdade de Fé. Diante, porém, do fato de outros doutores que também estavam convencidos da infalibilidade papal sobre o tema argumentarem que não se trate de uma verdade de Fé, mas de uma doutrina infalível da Igreja – o que parece a mesma coisa, embora não seja –, eis que Bento XIV chega a esta conclusão: “essas pessoas que colocam em dúvida a infalibilidade da canonização dos santos, aquele que o nega, se não é herege, é, todavia, ao menos temerário, portador de escândalo para toda a Igreja, injurioso para com os santos, favorecedor dos hereges que negam a autoridade da Igreja na canonização dos santos, pessoa próxima à heresia enquanto abre o caminho para os infiéis rirem dos que creem, partidário de uma proposição errada e sujeito a gravíssimas penas”. Tudo isso é referido a quem ousasse afirmar que o papa errou nesta ou naquela canonização ou que o papa não é infalível na canonização dos santos. No mínimo, se não herege. Monsenhor Gherardini cita esse texto. Era absolutamente cônscio. Não obstante, coloca em dúvida a infalibilidade do papa na canonização dos santos.
Quais são os argumentos que Bento XIV dá em favor da infalibilidade papal na canonização dos santos? São quatro. O primeiro: não pode ser que a Igreja Universal seja induzida a erro pelo Sumo Pontífice nas coisas que envolvem a moral, e isso aconteceria ou poderia acontecer se pudesse errar nas canonizações, pois se trata de um juízo público sobre a santidade e glória de um homem defunto. E reevoca, com isso, São Tomás, o qual diz que na Igreja não pode haver erro condenável (é importantíssimo isso). Ora, seria erro condenável se se venerasse como santo um pecador, o que poderia induzir os fieis a erro. Portanto, a Igreja não pode errar em tais casos. O teólogo tomista Melchior Cano diz: “É muito importante e costume comum de toda a Igreja saber quem deve ser venerado com virtude de religião. Se a Igreja errasse nisso, erraria gravemente em matéria moral. Não é diferente prestar culto ao diabo ou a um danado. A Igreja erraria torpemente em matéria de moral se legiferasse de prestar culto a um santo que, se não fosse santo, seria contra a razão do Evangelho venerar. Os cânones dizem: ‘se alguém diz ser justo o injusto e injusto o justo, é abominável aos olhos de Deus’. Similarmente, quem diz ser santo quem não o é e não santo o santo é abominável aos olhos de Deus. Eis o primeiro argumento.
O segundo: a inspiração do Espírito Santo. Alguém objeta – Monsenhor Gherardini o faz, me parece, e São Tomás o faz a si mesmo – que ninguém pode estar certo do estado de uma alma, nem mesmo da própria (se se é ou não em graça de Deus). E mais, quem julga servindo-se de um meio falível, como é o testemunho humano, não pode alcançar mais do que uma conclusão falível, pode errar. Assim, para a canonização dos santos interrogam-se testemunhas humanas, todas falíveis; é qualquer coisa de contingente, portanto pode-se chegar a uma conclusão errada. Não é possível atribuir infalibilidade ao testemunho dos homens, mesmo sendo testemunhos históricos da parte de testemunhas oculares. Alguma possibilidade de erro sempre existe. São Tomás responde essa dificuldade: “antes de tudo, o papa não apenas baseia seu juízo em pesquisas acuradas, mas goza nessa matéria da inspiração do Espírito Santo e a Providência preserva a Igreja de ser enganada por tais testemunhos”. Portanto, humanamente falando, um juízo histórico sobre alguém pode ser quase certamente verdadeiro, mas alguma dúvida pode restar sempre. Mas a Igreja não é uma sociedade puramente humana; é assistida por Deus em matéria de Fé e de moral, como somos nesse campo, pois a canonização dos santos diz respeito à Fé e à Moral.
Terceiro argumento: o culto de um santo é como uma profissão de Fé, logo o juízo do Papa, que lhe ordena o culto, deve ser infalível. São Tomás diz “porque a honra que damos aos santos é uma certa profissão de Fé com a qual damos glória aos santos, também nisso o juízo da Igreja não pode errar”.
O quarto argumento, a posteriori, é: se pudesse errar, o papa já teria errado em tantas canonizações. Ora, o papa jamais errou – pelo menos até o concílio (e, para mim, até depois, já que esses aí não são papas), – enquanto que os bispos ou o próprio martirológio já erraram. Portanto, trata-se de uma verdade de Fé, ou, de qualquer forma, certamente e indiscutivelmente de uma verdade infalível.
Gostaria também de apresentar o parecer de um autor de um manual que era estudado por todo os seminaristas e pelo clero católico nos tempos, digamos, de ordem na Igreja. Bem, a infalibilidade do papa na canonização dos santos faz parte do objeto secundário da infalibilidade. O primário são as verdades explícita e formalmente reveladas por Deus; o secundário são as verdades ligadas necessariamente à Revelação. Ou seja, a Igreja tem a missão de guardar integralmente aquilo que Deus revelou, sem acrescentar ou tirar nada, e de condenar tudo o que lhe é contrário, mas não pode, concreta e eficazmente, realizar esse papel – que lhe foi dado por Deus e que é a razão de sua existência – se não for infalível também nesse objeto secundário, isto é, em todas as coisas tão estreitamente ligadas ao dado revelado que, se não posso pronunciar-me infalivelmente a respeito, tampouco poderei defender e transmitir com eficácia a Revelação de Deus. Esse objeto inclui as conclusões teológicas, os fatos dogmáticos, os decretos disciplinares e, no caso, as canonizações e as aprovações definitivas das ordens religiosas. Essa tese é ao menos teologicamente certa, uma vez que foi proposta pelo Concílio Vaticano I e estava próxima à definição, pois já estavam preparados o cânone e a excomunhão para quem negasse essa doutrina; sua proclamação não aconteceu apenas por causa dos bersaglieri que interromperam o Concílio.
O argumento geral é: aquilo que é requerido como exigência pela finalidade do Magistério infalível e que a Igreja infalivelmente reivindica, a Igreja possui. Ora, a finalidade do Magistério infalível exige e a Igreja infalível reivindica a infalibilidade para as verdades ligadas à Revelação. Logo, a Igreja é infalível também nessas verdades. E isso, em particular, nas canonizações. A finalidade do Magistério exige a dita infalibilidade, exige as coisas necessárias para dirigir os fieis sem erro à salvação mediante um culto reto e mediante a imitação dos exemplos de virtude cristã. Ora, para tal escopo é necessária a infalibilidade nas canonizações. A premissa maior se funda no poder de santificação da Igreja. A menor: a Igreja não apenas tolera, mas recomenda e ordena a todos os fieis prestar culto aos canonizados, propondo-os como modelos a imitar, e a Igreja reivindica tal infalibilidade, antes de tudo, porque define com solene juízo, e muitas vezes fala até mesmo de juízo infalível, como fizeram Pio XI e Pio XII. E aqui temos muitas citações de proclamações de santos feitas por esses dois papas, nas quais é dito explicitamente que seu juízo é infalível:
Infallibilem Nos, uti catholicæ Ecclesiæ supremus Magister sententiam in hæc verba protulimus ; Nos ex Cathedra divini Petri uti supremus universalis Christi Ecclesiæ Magister infallibilem hisce verbis sententiam solemniter pronuntiavimus.
(Nós damos este juízo infalível enquanto Mestre supremo da Igreja Católica; Nós, desde a cátedra de São Pedro, enquanto supremo e universal Mestre da Igreja de Cristo pronunciamos solenemente, com estas palavras, o nosso juízo infalível)
Pio XI
Nos universalis catholicæ Ecclesiæ Magister ec Cathedra una super Petrum Domini voce fundata falli nesciam hanc sententiam solemniter hisce pronuntiavimus verbis.
(Nós, enquanto Mestre supremo da Igreja Católica, fundada sobre a cátedra de Pedro, pronunciamos solenemente este juízo que não conhece erro)
Pio XII
Afirmam, portanto, a prerrogativa da infalibilidade, e não é possível que os papas se atribuam aquilo que não têm, pois, do contrário, enganariam toda a Igreja. Mas, na verdade, a Fraternidade São Pio X diz: “nenhum problema para as canonizações antigas; o problema nasce com as canonizações modernas”. Porém, os motivos dados para colocar em dúvida o processo de canonização recente em comparado ao antigo são absolutamente frágeis. Pretende-se que as canonizações poderiam ser postas em dúvida pela insuficiência do processo: o procedimento foi definhado, os milagres são ainda requeridos, mas não como antes... mas está na autoridade e no poder do papa decidir o procedimento utilizado. Na Idade Média, por exemplo, o procedimento utilizado depois não existia, nem por isso alguém colocou em dúvida a canonização de um Domingos ou de um Francisco. Aliás, houve quem o fez: o herege John Wyclif, condenado pelo Concílio de Constança por dizer que São Bento e outros santos estariam no inferno se tivessem mantido certas doutrinas que ele, Wyclif, rejeitava. E foi condenado pelo Concílio, entre outras heresias, também por isso; porque afirmou que santos canonizados pela Igreja – embora não, certamente, com o procedimento da Contrarreforma – poderiam não ser santos ou até mesmo danados.
A Fraternidade também coloca dúvidas sobre o colegialismo, porque, atualmente, as canonizações são feitas como ato colegial. Mas é sempre o papa em pessoa que pronuncia a canonização. Se chama junto a si os bispos de todo o mundo, como é feito nos concílios, não faz mais que reforçar – como se fosse necessário – essas canonizações.
E, finalmente, objeta-se que as virtudes heroicas de que se declara ser dotado o santo são virtudes modernas, ou seja, que esses santos seriam santos de uma doutrina moderna. Isso é absolutamente verdadeiro. Mas o problema é que, se o papa é mesmo infalível, é infalível também ao dizer que essas virtudes modernas são verdadeiras.
O problema seria então, com efeito, este outro: dizem “mas [os papa pós-conciliares] não querem, na realidade, definir infalivelmente”. Que esses tradicionalistas creiam na infalibilidade do papa, podemos por em dúvida, mas que a fórmula utilizada, por exemplo, em 14 de outubro seja uma fórmula definidora, não há como duvidar, pois as diferenças são mínimas em comparação com as fórmulas usadas anteriormente. “Para a honra da Santíssima Trindade”, assim disse Bergoglio – em latim – na Praça São Pedro, “pela exaltação da Fé Católica, com a autoridade da Fé católica e pelo incremento da vida cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos apóstolos Pedro e Paulo e nossa, depois de termos longamente refletido, invocado muitas vezes a ajuda divina e escutado o parecer de muitos dos nossos irmãos no episcopado, declaramos e DEFINIMOS santos os beatos...” e o primeiro da lista é Paulo VI. “E os escrevemos no álbum dos santos, estabelecendo que, em toda a Igreja, sejam honrados entre os santos. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Ora, o termo DEFINIMOS é próprio das definições. Definimus. E a definição é um ato irrevocável, irreformável e infalível, razão pela qual não se vê, se Bergoglio é verdadeiro, legítimo e canônico papa, como se possa duvidar da canonização de Paulo VI.
Quero, porém, fazer o papel de advogado do diabo e, por um instante, pensar que, contrariamente a tudo o que eu disse, que disse São Tomás, que disse Bento XIV, que disse Pio XI, que disse Pio XII, que disseram todos os teólogos em concordância até o Concílio, etc., etc., etc., sem incorrer nas censuras de Bento XIV (isto é, de ser meio herege, que fedo a heresia, que favoreço os hereges), por um instante quero pensar que seja possível dizer que o papa não é infalível na canonização dos santos. O professor Roberto de Mattei, como todos os tradicionalistas que se opõem às canonizações feitas recentemente, deduz desse fato consequências que não são deduzíveis. Suponhamos que o papa não seja infalível nessa matéria, ou que, mesmo sendo, não se trata de uma verdade de Fé. Diz o professor de Mattei: “Qual crédito devemos dar a essas canonizações? Mesmo se a maior parte dos teólogos considerem que as canonizações sejam atos infalíveis da Igreja, não nos encontramos diante de um dogma de Fé [...] Não sendo a canonização um dogma de Fé, não existe para os católicos uma positiva obrigação de dar-lhe assentimento”, ou seja, de dar nosso assentimento à canonização de Paulo VI; dizer “sim, eu obedeço e creio que Paulo VI é realmente santo”. De Mattei e também todos os tradicionalistas, lefebvrianos ou não, que não são como nós, sujos, feios e maus, dizem que podemos negar nosso assentimento à canonização de Paulo VI. E continua: “podemos, portanto, em consciência, manter todas as nossas reservas sobre essas canonizações”. Ora, essas palavras, entendidas ao pé da letra, são diretamente contrárias ao ensinamento da Igreja. Por exemplo, o cânone 1324 e também a carta de Pio IX Tuas Libenter contra o herege Döllinger, que criou o cisma dos velhos católicos negando a infalibilidade papal no Vaticano I. Em 21 de dezembro de 1863, ao bispo de Munique e Frisinga, escreveu Pio IX:
...estamos intimamente convencidos de que a obediência a que estão sujeitos os mestres e escritores católicos (como é o caso de de Mattei) não se refere apenas àquelas verdades que são propostas a todos os fieis pelo infalível Magistério da Igreja como dogmas de Fé. E, portanto, estamos também intimamente convencidos de que estes [mestre e escritores] não quiseram declarar que a perfeita adesão às verdades reveladas, por eles reconhecida como absolutamente necessária para o verdadeiro progresso das ciências e para a refutação os erros, é possível se se presta fé e obediência apenas aos dogmas expressamente definidos pela Igreja. Com efeito, mesmo se se tratasse da obediência que concretamente se deve à Fé divina, essa obediência não se deveria limitar às verdades expressamente definidas pelos decretos dos concílios ecumênicos ou dos pontífices romanos e desta Sé Apostólica, mas deve estender-se também às verdades que, pelo magistério ordinário da Igreja, difusa em todo o mundo, são transmitidas como divinamente reveladas e, por isso mesmo, são consideradas matéria de Fé pelo comum e universal consenso dos teólogos católicos.
E completa:
Mas porque se trata da obediência a qual, em consciência, são submetidos todos os católicos que se dedicam às ciências especulativas para dar, com seus escritos, novas contribuições à Igreja, exatamente por isso os participantes do Convênio devem admitir que para os estudiosos católicos não é suficiente que acolham com veneração os dogmas da Igreja, mas é também necessário que adiram seja às decisões que, em matéria doutrinal, são tomadas pelas congregações pontifícias, seja àqueles pontos de doutrina que, do consenso comum dos católicos são considerados verdades teológicas e conclusões certas, ao ponto que as opiniões contrastantes, mesmo se não de possam definir heréticas, são, porém, teologicamente censuráveis.
Portanto, não basta dizer “não é um dogma de fé (talvez!), logo, se o nego não sou um herege (talvez!), logo posso não levar em conta e, em consciência, não aceitar uma canonização feita pelo papa”, pois, a canonização é infalível e, mesmo se não o fosse, é pelo menos teologicamente certa. Assim, nenhum católico pode se dar o direito de não acolhe-la dizendo que não é infalível. Além do mais, o bom senso nos faz entender que, se a Igreja, repito, pudesse ensinar, por exemplo, que Paulo VI – que, como veremos, praticou o ecumenismo – é santo, do fato que o católico deve imitar os santos se deduziria que os fiéis deveriam imitar o ecumenismo. Não? Paulo VI é santo e reformou a liturgia da missa, logo a reforma da missa é obra de um santo que eu devo aprovar, etc., etc. Nós dizemos “não é possível, não é verdade”; então não podemos admitir que a Igreja nos induza a erro, pois foi isso o que fez a Igreja. Pode a Igreja induzir-nos ao erro? Absolutamente não. Portanto, se ainda acreditamos na Igreja, não podemos acreditar que nos induza a erro, canonizando um santo que, na verdade, santo não é. Mas Monsenhor Gherardini argumenta: “canonizaram santos que jamais existiram ou que não são santos”. Não nos diz, porém, de quem se trata. Parece ser uma alusão a São Nepomuceno. Nem tudo o que se diz numa bula de canonização é verdade de Fé; é possível que se relatem dados sobre a vida de um santo que depois se revelem inexatos. Mas o fato é que São Nepomuceno existiu; se não morreu naquele ano, morreu em outro. Enfim, existiu e a Igreja o declarou santo. Mesmo se admitíssemos (o que não fazemos) que a Igreja tenha se enganado declarando santo um santo que não existe ou um santo que não é santo, o problema é mais grave. Monsenhor Gherardini diz: “a Igreja pode ter canonizado um santo que não é santo ou um santo que não existe e não acontece nada”. Porém, acontece. Uma coisa é canonizar um santo que não existe – o que descarto, mas admito aqui como mera hipótese – ou um santo que não é santo, digamos, uma boa pessoa, mas que não tinha as virtudes heroicas. Mas o que dizer se eu canonizo uma pessoa que na doutrina, na Fé, no ensinamento e na moral favorece a impiedade? É possível isso? Não. Uma coisa é canonizar um santo que não existe, mas que me dizem que fez milagres, que ensinou a caridade e a pobreza evangélica; está bem, então eu sou impelido a seguir a pobreza, a caridade e a Fé. Ou um santo que não é santo, mas que não fez nada de particularmente mal, que permaneceu com a integérrima Fé católica, que fazia algumas coisas boas, mas não tão grandes para merecer a santidade; ao venerá-lo erro, presto culto a uma pessoa a quem não é devido (já me parece demasiado grave para ser admitir como possibilidade), rezo para alguém que não é particularmente amigo de Deus, o que é menos útil, de fato, mas não é tão grave; posso, por exemplo, rezar às almas do purgatório, que não são santas no sentido mais restrito. Em suma, a Fé e a Moral da Igreja não caem por causa disso. Mas e se eu, por exemplo, canonizasse Martinho Lutero? Já quase o fizeram. Giulio Andreotti disse “chegará o dia em que canonizarão Buonaiuti (o maior exponente do Modernismo)”. Como essas canonizações poderiam não induzir os fieis ao erro em matéria de moral? Por exemplo, Buonaiuti abandonou o sacerdócio? Posso fazê-lo também eu? Evidentemente, não. Ah, mas eu imito um santo! Ou então, em matéria de Fé: Buonaiuti negava a divindade de Cristo, logo posso negá-la também? Evidentemente, não. Portanto, é muito mais grave canonizar alguém que é um exemplo para evitar do que canonizar um santo que não existe ou alguém que não é santo. Entendem a diferença? Eu excluo que a Igreja tenha canonizado um santo que não é santo ou alguém que não existe; infalivelmente, creio que não é possível. Mas admitamo-lo. Admitamos também que a Igreja não canonizou infalivelmente ninguém, nem mesmo São Domingos, nem mesmo Francisco, etc., etc.. Mas, ao menos admitamos que a Igreja não pode ensinar o erro dando um ímpio como modelo para os fieis ou fazendo-o venerar nos altares. Isso é inadmissível pela santidade mesma da Igreja, pela verdade da Igreja. E é o problema diante do qual nos encontramos. Todos esses bravos católicos, como Monsenhor Gherardini, professor de Mattei, sacerdotes da Fraternidade São Pio X, etc., por que se agitam tanto? Não porque canonizaram um santo do qual se sabe pouco da vida histórica, se existiu ou não – quem sabe se São Jorge existiu, se o dragão existia ou não (eu creio que São Jorge é santo)? – . Também não se agitam porque fizeram santo, sei lá, um operário chamado Núncio Sulprízio, de quem nunca ouvi falar. Mas eu não me agito, nem aqueles da Fraternidade. Deve ser santo de verdade, como vou saber? Se é santo mesmo, paciência, rezemos para ele, não faz mal. O problema, por exemplo, é um Paulo VI. Aí, então, todos nos agitamos. Por quê? Porque não podemos imitar o exemplo que nos deu. Aliás, devemos fazer o contrário, como tentarei explicar na segunda conferência. Eis o motivo de tantas começarem a duvidar da infalibilidade da Igreja nas canonizações. Mas é esse o problema: tantos tradicionalistas, para salvaguardar a legitimidade dos ocupantes da sede de Pedro, preferem negar a infalibilidade da Igreja e do Papa. Essa é a verdade. Preferem dizer “posso pensar que São Francisco não está no céu, que era um impostor” em vez de dizer que o impostor, talvez, é quem ocupa a Sede de Pedro neste momento. Isso não. É isso que é grave. Pode-se colocar o ensinamento da Igreja em discussão, mas a legitimidade desses todos que propagam o modernismo, não. Esse é o único ponto infalível que não pode ser tocado. Montini, Luciani, Wojtyla, Ratzinger e Bergoglio são papas. Isso é infalivelmente certo. Que São Francesco é santo talvez seja duvidoso. Mas que esses são papas é absolutamente certo. É o dogma do tradicionalismo lefebvriano, podemos dizer, que deixa à margem aqueles feios, sujos e maus, que somos nós, evidentemente. E, porque aceitam esse dogma, agora têm as portas abertas nas igrejas, nas paróquias, nas catedrais, etc., enquanto que a nós perguntam “Mas... vocês são sedevacantistas? – Sim! – Ah, então, não. Xô!”. Por quê? Porque negamos o único dogma que não se pode negar hoje: a legitimidade dos modernistas que estão devastando a Igreja.
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