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Uma posição insustentável

Para muitos “sedevacantistas”, sua reflexão sobre a autoridade começou ao constatar que o discurso da fraternidade São Pio X é insustentável. Eis o quadro dessa “tomada de consciência”, constituído pela colocação em perspectiva de breves citações de atos do Magistério.


A análise da fraternidade São Pio X sobre a situação da Igreja pode ser resumida – muito sumariamente – como segue:


[A] A reforma litúrgica derivada do Vaticano II, e particularmente a missa nova promulgada por Paulo VI e mantida tanto por João Paulo II quanto por Bento XVI, é má.

[A’] A doutrina da liberdade religiosa ensinada pelo Vaticano II, e mantida tanto por Paulo VI e João Paulo II quanto por Bento XVI, é falsa e condenada pela Igreja.

[A”] A obra do Vaticano II e o conjunto dos atos de Paulo VI, de João Paulo II e de Bento XVI são contrários à Tradição Católica e nefastos para a Igreja.

[B] Bento XVI é verdadeiro e legítimo Papa da Igreja Católica.

[C] Pode-se – e deve-se – resistir a Bento XVI e desobedecer-lhe em tudo o que se julgue não conforme à Tradição e ao bem da Igreja.

A afirmação simultânea dessas proposições é incompatível com textos os mais claros e mais tradicionais da doutrina católica, referentes à natureza e às propriedades da Igreja e do Sumo Pontificado. Essa incompatibilidade diz respeito aos pares [A]-[B], [A’]-[B], [A”]-[B] e [B]-[C]. Transcrevo a seguir alguns textos do Magistério da Igreja aos quais esses pares de afirmações opõem-se claramente, sem que haja necessidade alguma de comentários. [A]-[B] As leis gerais, e mais particularmente as leis litúrgicas e os ritos sacramentais, que vêm da Igreja, não podem ser maus. • Concílio de Trento, Denzinger 856; La Foi Catholique (Dumeige) 675: “Se alguém disser que os ritos recebidos e aprovados da Igreja Católica, que costumam ser usados na administração solene dos sacramentos, podem ser desprezados ou omitidos sem pecado, ao bel-prazer dos ministros, [...] seja anátema.” • Pio VI, Auctorem Fidei (condenação do concílio de Pistoia), Denzinger1578; Les Enseignements Pontificaux (Solesmes), L’Église 122: Uma proposição desse concílio “na medida em que, pelos termos gerais utilizados, ela inclui e submete ao exame prescrito mesmo a disciplina estabelecida e aprovada pela Igreja, como se a Igreja, que é regida pelo Espírito de Deus, pudesse constituir uma disciplina não somente inútil e mais onerosa do que a liberdade cristã é capaz de suportar, mas ainda perigosa, nociva e conducente à superstição e ao materialismo” é condenada como “falsa, temerária, escandalosa, perniciosa, ofensiva a ouvidos pios, injuriosa à Igreja e ao Espírito de Deus que a conduz, no mínimo errônea”. • Gregório XVI, Quo graviora, Les Enseignements Pontificaux (Solesmes),L’Église 173: “A Igreja, que é a coluna e o firmamento da verdade, e que manifestamente recebe sem cessar do Espírito Santo o ensinamento de toda a verdade, poderia ordenar, conceder, permitir o que viesse a redundar em detrimento da salvação das almas, e em desprezo e prejuízo de um sacramento instituído por Cristo?” • Leão XIII, Testem benevolentiæ, Les Enseignements Pontificaux(Solesmes), L’Église 631: “Todavia não é ao alvedrio dos particulares, facilmente enganados pelas aparências do bem, que a questão deve ser resolvida: mas é à Igreja que pertence emitir um julgamento, e todos devem aquiescer a ele, sob pena de incorrerem na censura emitida por Nosso predecessor Pio VI. Ele declarou a proposição lxxviii do Sínodo de Pistoia injuriosa para a Igreja e o Espírito de Deus que a rege, enquanto ela submete à discussão a disciplina estabelecida e aprovada pela Igreja, como se a Igreja pudesse estabelecer uma disciplina inútil ou demasiado onerosa para a liberdade cristã.” [A’]-[B] O magistério ordinário e universal da Igreja é regra da fé católica. • Pio IX, Tuas libenter, Denzinger 1683; La Foi Catholique (Dumeige) 443;Les Enseignements Pontificaux (Solesmes), L’Église 249: “Ainda que se tratasse unicamente daquela submissão que se deve prestar mediante ato de fé divina, não se poderia restringi-la somente aos pontos definidos por decretos expressos dos Concílios Ecumênicos ou dos Romanos Pontífices e desta Sé Apostólica; mas haveria também que estendê-la a tudo aquilo que é transmitido, como divinamente revelado, pelo corpo docente ordinário da Igreja inteira espalhada pelo mundo, e que por essa razão os teólogos católicos, com consentimento universal e constante, consideram pertencente à fé.” • Concílio do Vaticano, Dei Filius, Denzinger 1792; La Foi Catholique(Dumeige) 93; Les Enseignements Pontificaux (Solesmes), L’Église 341: “Deve-se crer com fé divina e católica tudo o que está contido na Palavra de Deus, escrita ou transmitida por tradição, e que a Igreja, seja num juízo solene, seja por seu magistério ordinário e universal, propõe a crer como verdade revelada.” • Pio XII, Discurso sobre Santo Tomás de Aquino, 14 de janeiro de 1958, Les Enseignements Pontificaux (Solesmes), L’Église 1503-1504: “A fidelidade dessa submissão à autoridade da Igreja fundava-se na convicção absoluta do Santo Doutor de que o Magistério vivo e infalível da Igreja é a regra imediata e universal da verdade católica. Seguindo o exemplo de Santo Tomás de Aquino e dos membros eminentes da ordem dominicana, que brilharam por sua piedade e pela santidade de sua vida, a partir do momento em que se faz ouvir a voz do Magistério da Igreja, tanto ordinário quanto extraordinário, recolhei-a, esta voz, com ouvido atento e espírito dócil.” [A”]-[B] O governo habitual do Papa é o de Jesus Cristo. • Pio XII, Mystici Corporis, Les Enseignements Pontificaux (Solesmes),L’Église 1040: “Muito pelo contrário, o Divino Redentor governa seu Corpo Místico visivelmente e ordinariamente por seu Vigário na terra.” [B]-[C] O Papa tem jurisdição plena e imediata sobre cada um dos católicos, e obedecer-lhe é necessário à salvação eterna. Evangelho segundo São Mateus, XVI, 18-19: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do Reino dos Céus. Tudo o que ligares na terra será ligado no Céu; e tudo o que desatares na terra será desatado no Céu.” • Bonifácio VIII, Unam sanctam, Denzinger 469: “Nós declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao Soberano Pontífice.” • Pio IX, Quanta cura, Denzinger 1698: “Não podemos passar em silêncio a audácia daqueles que, não podendo suportar a sã doutrina, pretendem ‘que àqueles juízos e decretos da Sé Apostólica que têm manifestamente por objeto o bem geral da Igreja, seus direitos e sua disciplina, pode-se, enquanto não toquem aos dogmas referentes à fé e à moral, negar-lhes assentimento e obediência, sem pecado e sem cessar em nada de professar o catolicismo’. Esta pretensão é tão contrária ao dogma católico da plena autoridade divinamente dada pelo próprio Cristo Nosso Senhor ao Romano Pontífice, de apascentar, reger e governar a Igreja universal, que não há quem não o veja e entenda com evidência.” • Concílio do Vaticano, Pastor æternus, Denzinger 1831: “Se alguém disser que o Romano Pontífice tem somente o ofício de inspeção e direção, e não o pleno e supremo poder de jurisdição sobre toda a Igreja, não só nas coisas referentes à fé e à moral, mas também nas que se referem à disciplina e ao governo da Igreja espalhada por todo o mundo; ou então somente que ele goza da parte principal, simplesmente, e não de toda a plenitude desse poder supremo; ou que esse poder que lhe pertence não é ordinário e imediato, quer sobre todas e cada uma das igrejas, quer sobre todos e cada um dos pastores e dos fiéis – seja excomungado.” • Pio XI, Mortalium animos, Les Enseignements Pontificaux (Solesmes),L’Église, 873: “Nesta única Igreja de Cristo, ninguém está e ninguém permanece a não ser que, obedecendo, reconheça e acate a autoridade e o poder de Pedro e de seus sucessores legítimos.” Conclusão Algumas observações servirão de conclusão a este rápido panorama que manifesta a contradição entre a posição que analisamos e a doutrina católica. 1. Não se pode pretender ser o defensor da doutrina católica se não se adere a ela totalmente e sem reticência, sem diminuição. Não se pode pretender conservar a Tradição Católica se se desconhece toda uma parte dela, aquela que diz respeito ao Soberano Pontífice e suas prerrogativas. Aí está uma evidência. 2. Invertendo a proposição que chamamos de [B], todas as incompatibilidades enumeradas acima caem de uma só vez. Pode-se então professar integralmente a fé católica reconhecendo a verdade das proposições [A], [A’] e [A”] e a necessidade da proposição [C] assim corrigida: cumpre não reconhecer em ato algum de Bento XVI um ato da autoridade da Igreja Católica, e cumpre particularmente recusar tudo o que não é conforme à fé da Igreja. 3. Essa inversão da proposição [B] não é legítima a não ser sob duas condições: – ater-se ao que se pode afirmar na luz da fé católica deixando de lado o que não passa de hipótese, probabilidade ou certeza fundada noutra parte que não na fé; – fazê-lo sem diminuir ou negar a unidade e a apostolicidade da Igreja, que são notas indefectíveis da Igreja Católica. É toda a verdade e o interesse da Tese de Cassicíaco que, ao meu conhecimento, é a única análise da situação da Igreja que concorda perfeitamente com toda a doutrina católica, por um lado, com os fatos constatados, por outro lado, e por fim com essas duas exigências.

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Um pouco de história

As incompatibilidades mencionadas acima não são arbitrárias: elas dizem respeito à Fé Católica e à Constituição mesma da Santa Igreja Católica. Dentre elas, uma foi posta “em evidência” em 1978/1979 quando da confrontação de Dom Lefebvre e do ex-Santo Ofício, tal como ela está integralmente publicada na revista Itinéraires n.º 233 (abril de 1979). O cardeal Seper repreende Dom Lefebvre por recusar o novus ordo missæ de Paulo VI por motivos doutrinários, e ele justifica sua reprimenda por meio desta afirmação:

“Um fiel não pode, com efeito, pôr em dúvida a conformidade com a doutrina da fé, de um rito sacramental promulgado pelo Pastor Supremo, sobretudo se se trata do rito da Missa que está no coração da vida da Igreja” (op. cit. p. 15).

É pôr o dedo num ponto delicado, e Dom Lefebvre é convidado a se explicar sobre isso. A resposta de Dom Lefebvre não contém explicação nenhuma. Assim, o cardeal Seper volta ao ataque e põe-lhe diante dos olhos sua reprimenda, exigindo-lhe novamente que se explique sobre isso (op. cit. p. 111). A segunda resposta de Dom Lefebvre não contém explicação nenhuma. Então o cardeal coloca a ele diretamente a questão:

“Vós sustentais que um fiel católico pode pensar e afirmar que um rito sacramental, em particular o da Missa, aprovado e promulgado pelo Sumo Pontífice, pode ser não conforme à fé católica ou ‘favens hæresim’?” (loc. cit. p. 146).

Dom Lefebvre se esquiva da questão e não responde sobre o fundo dela. E é uma grande pena, pois estamos aí no coração do que permite exercer a Fé Católica a propósito da situação da Santa Igreja. Essa questão não é em si uma armadilha (ainda que o cardeal Seper a tenha colocado para pôr Dom Lefebvre “contra a parede”): ela se coloca objetivamente à fé de cada um, não se pode deixá-la indefinidamente em suspenso, vai-se contra a Fé Católica e escandaliza-se as almas de boa vontade se se deixa entender que a resposta é positiva.



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