top of page

Retratação de três proposições heretissonantes sobre a Igreja docente

John Henry NEWMAN (1801-1890)


“Nota 5. A Ortodoxia do Corpo dos Fiéis durante a Supremacia do Arianismo.[...]Ao estabelecer esta comparação entre a conduta dos bispos católicos e a de seu rebanho durante as perturbações arianas, não devo ser entendido como pretendendo qualquer conclusão incompatível com a infalibilidade da Ecclesia docens (ou seja, a Igreja quando está ensinando) e com a alegação do papa e dos bispos de constituírem a Igreja sob esse aspecto. Sou levado a dar essa precaução, pois, por falta dela, fui seriamente mal entendido nalguns círculos em meu primeiro escrito sobre esse tema na revista Rambler de maio de 1859. Mas naquela ocasião eu estava escrevendo simplesmente historicamente, não doutrinalmente, e, embora seja historicamente verdadeiro, não é em sentido algum doutrinalmente falso que um papa, como doutor privado, e muito mais os bispos, quando não estão ensinando formalmente, podem errar, como descobrimos que eles de fato erraram no século IV. O Papa Libério podia assinar uma fórmula eusebiana em Sirmium, e a massa dos bispos, em Ariminum ou alhures, e no entanto eles podiam, apesar desse erro, ser infalíveis em suas decisões ex cathedra. A razão de eu ter sido mal entendido adveio de dois ou três incisos ou expressões que ocorreram ao longo de minhas observações, que eu não teria usado se tivesse antevisto como seriam entendidos, e os quais aproveito esta oportunidade para explicar e retirar. Primeiro, citarei a passagem que estava prenhe de um significado que eu certamente não pretendi, e depois notarei as frases que parecem ter dado esse significado a ela. Ver-se-á quão pouco o sentido da passagem, tal como eu a pretendi, é afetado pela remoção, quando essas frases são retiradas. Disse eu, naquela ocasião: “Não é pouco digno de nota que, embora historicamente falando o século IV seja a época dos doutores, ilustrada como é pelos santos Atanásio, Hilário, os dois Gregórios, Basílio, Crisóstomo, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho (e todos esses santos também bispos, exceto um), contudo, nessa época mesma, a Divina tradição confiada à Igreja infalível foi proclamada e mantida bem mais pelos fiéis do que pelo Episcopado. Aqui, é claro, devo explicar: dizendo isso, sem dúvida que não estou negando que o grande corpo dos bispos fosse, em sua fé interior, ortodoxo; nem que houvesse vários membros do clero que ficaram ao lado dos leigos e agiram como centro e guia destes; nem que o laicato na realidade tivesse recebido a fé, para começo de conversa, dos bispos e do clero; nem que algumas porções do laicato fossem ignorantes, e outras porções foram consideravelmente corrompidas pelos docentes arianos, que tomaram posse das sés, e ordenavam clero herético; mas quero dizer, mesmo assim, que naquele tempo de imensa confusão o dogma divino da divindade de Nosso Senhor foi proclamado, feito cumprir, mantido, e (humanamente falando) preservado, muito mais pela ‘Ecclesia docta’ do que pela ‘Ecclesia docens’; que o corpo do Episcopado foi infiel ao seu mandato, ao passo que o corpo do laicato foi fiel a seu batismo; que uma vez o papa, outras vezes uma sé patriarcal, metropolitana ou outra grande sé, outras vezes concílios gerais, disseram o que não deveriam ter dito, ou fizeram o que obscureceu e comprometeu a verdade revelada; enquanto, por outro lado, foi o povo cristão, que, sob a guia da Providência, era a força eclesiástica de Atanásio, Hilário, Eusébio de Vercelas e outros grandes confessores solitários, os quais teriam falhado sem o povo. . . . Por um lado, então, eu digo que houve suspensão [‘suspense’ (N. do T.)] temporária das funções da ‘Ecclesia docens’. O corpo dos bispos falhou na confissão da fé. Eles se pronunciaram de maneira diversa, um contra o outro; não houve nada, após Niceia, de testemunho firme, constante, coerente, por cerca de sessenta anos. . . . Passamos, em segundo lugar, às provas da fidelidade do laicato, e a eficácia dessa fidelidade, durante aquela dominação da heresia imperial, para a qual as passagens acima referiram.” Os três incisos que deram azo a objeção foram estes: eu disse (1)que “houve suspensão temporária das funções da ‘Ecclesia docens’”;(2) que “o corpo dos bispos falhou na confissão da fé”; (3) que “concílios gerais, etc., disseram o que não deveriam ter dito, ou fizeram o que obscureceu e comprometeu a verdade revelada”. (1) Que “houve suspensão [N. do T. – Em inglês, ‘suspense’, que uma tradução italiana benevolíssima verte como “incerteza”...] temporária das funções da ‘Ecclesia docens’” não é verdade, se ao dizer isso se pretende que o Concílio de Niceia realizado em 325 não definiu nem promulgou suficientemente, para todos os tempos e todos os lugares, o dogma da divindade de Nosso Senhor, e que a notoriedade desse Concílio e as vozes de seus grandes sustentáculos e mantenedores, como Atanásio, Hilário etc., não inculcaram o dogma na inteligência dos fiéis em todas as partes da Cristandade. Mas o que eu quis dizer com “suspense” (eu não disse “suspension”, de propósito) foi apenas isto, que não houve pronunciamento autoritativo da voz infalível da Igreja de fato entre o Concílio de Niceia, 325 d.C., e o Concílio de Constantinopla, 381 d.C., ou, nas palavras que eu efetivamente usei, “não houve nada, após Niceia, de testemunho firme, constante, coerente, por cerca de sessenta anos”. Como eu escrevia antes da Definição Vaticana de 1870, eu não enfatizei os Concílios Romanos sob os Papas Júlio e Damásio.[Nota de Rodapé 3. Um teólogo eminente infere, das minhas palavras, que eu nego que “a Igreja é, em todo tempo, activum instrumentum docendi”. (N. do T. - O mencionado teólogo eminentíssimo é ninguém menos que o Cardeal Franzelin! E essa negação heterodoxa não é o cerne da tese do Rev. Pe. Calderon, da FSSPX?) Mas eu não admito a justeza dessa inferência. Distinguo: activum instrumentum docendi virtuale, Concedo. Actuale, Nego. O Concílio Ecumênico de 325 foi uma autoridade eficaz em 341, 351 e 359, se bem que nessas datas os arianos estavam nas sés do magistério. O Pe. Perrone concorda comigo. 1. Ele considera o “fidelium sensus” entre os “instrumenta traditionis” (Immac. Concept. p. 139). 2. Ele contempla, ou melhor, ele exemplifica com o caso em que o “sensus fidelium” supre, como “instrumentum”, a ausência dos outros instrumentos, o magistério da Igreja, tal como exercido em Niceia, estando sempre pressuposto. Um dos exemplos dele é o do dogma de visione Dei beatifica. Ele diz: “Certe quidem in Ecclesia non deerat quoad hunc fidei articulum divina traditio; alioquin, nunquam is definiri potuisset: verum non omnibus illa erat comperta: divina eloquia haud satis in re sunt conspicua; Patres, ut vidimus, in varias abierunt sententias; liturgiæ ipsæ non modicam præ se ferunt difficultatem. His omnibus succurrit juge Ecclesiæ magisterium; communis præterea fidelium sensus.” p. 148. [N. do T. – Link acrescentado pelo tradutor. Tradução livre: “Em verdade, certamente na Igreja não faltava a tradição divina quanto a esse artigo de fé; do contrário, ele nunca teria podido ser definido: na realidade ele não era percebido por todos: as palavras divinas sobre o argumento não são suficientemente claras; os Padres, como vimos, dividiram-se entre várias opiniões; as liturgias mesmas comportavam relevantes dificuldades. A todos esses inconvenientes remediou o Magistério perene da Igreja; e, além dele, o senso comum dos fiéis.”]

(2) Que “o corpo dos bispos falhou na confissão da fé”, p. 17. Aqui, se a palavra “corpo” é usada no sentido do latim “corpus”, tal como “corpus” é usada em tratados teológicos, e como indubitavelmente seria traduzido para o benefício de leitores ignorantes da língua inglesa, certamente seria esta uma afirmação herética. Mas eu não quis dizer nada desse tipo. Usei-a no sentido vago, familiar e genuíno do qual Johnson dá exemplos em seu dicionário, como significando “a grande preponderância” ou “a massa” dos bispos, vendo-os no geral ou no grosso, como um cumulus de indivíduos. Assim, Hooker diz: “A vida e morte dividiram entre si todo o corpo da humanidade”; Clarendon, após falar da vanguarda do exército do rei, diz: “no corpo estava o rei e o príncipe”; e Addison fala de “rios navegáveis, que subiam para dentro do corpo da Itália”. Nesse sentido, é verdadeiro historicamente que o corpo dos bispos falhou em sua confissão. Tillemont, citando São Gregório Nazianzeno, diz: “A assinatura (ariana) era uma das disposições necessárias para entrar e para se conservar no episcopado. A tinta estava sempre disponível, e o acusador também. Os que até então haviam parecido invencíveis cederam a essa tormenta. Se o espírito deles não caiu na heresia, a mão deles, não obstante, a ela consentiu. . . . Poucos bispos se eximiram desse infortúnio, não tendo havido senão aqueles cuja própria baixeza fazia serem negligenciados, ou cuja virtude fazia resistirem generosamente, e que Deus conservou a fim de que restasse ainda alguma semente e alguma raiz para fazer reflorescer Israel.” t. vi, p. 499.

Nas próprias palavras de São Gregório, [plen oligon agan, pantes tou kairou gegonasi; tosouton allelon dienenkontes, hoson tous men proteron, tous de husteron touto pathein]. Orat. xxi. 24. p. 401. Ed. Bened. [N. do T. – Tradução livre: “Com exceção de pouquíssimos, todos se adaptaram às circunstâncias; diferenciando-se uns dos outros na medida em que uns sofreram isso primeiro, outros depois”.] (3) Que “concílios gerais disseram o que não deveriam ter dito, ou fizeram o que obscureceu e comprometeu a verdade revelada.” Também aqui, a questão a determinar é o que se quis dizer com a palavra “gerais”. Se com “gerais” eu quis dizer ecumênicos, eu teria falado como nenhum católico pode falar; mas concílios ecumênicos não os houve entre 325 e 381, e assim eu não podia estar me referindo a nenhum deles; e, na realidade, eu usei a palavra “gerais” em contraste com “ecumênicos”, como eu havia usado noTract. 90, e como Bellarmino usa a palavra. Ele faz uma divisão quadrúplice dos “concílios gerais”, a saber, aqueles que são approbata;reprobata; partim confirmata, partim reprobata; e nec manifeste probata nec manifeste reprobata. Entre os “reprobata” ele incluiu os concílios arianos. Eles foram grandes o suficiente para serem chamados de “generalia”; os concílios gêmeos de Selêucia e Ariminum contando com até 540 bispos. Quando falei, então, de “concílios gerais comprometendo a verdade revelada”, eu falava dos concílios arianos ou eusebianos, não dos católicos. Espero que isso baste como observações sobre esse assunto.” _____________


O original inglês da retratação encontra-se transcrito em:http://www.newmanreader.org/works/arians/note5.html

bottom of page