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Esclarecendo a confusão dos totalistas - Parte I

Como quem não tem autoridade papal pode nomear cardeais ou eleitores capazes de legal e legitimamente eleger quem deve receber autoridade?

Recentemente pude notar que os totalistas, não só leigos, mas padres e até mesmo bispos, que objetam a Tese de Cassiciacum, em realidade não a entendem graças à uma confusão de definições básicas, que serão discorridas aqui de forma minuciosa, clara e didática.




O direito de designação não é jurisdição nem autoridade.


O direito de designar uma pessoa para receber autoridade não é autoridade nem jurisdição, uma vez que quem possui esse direito não possui necessariamente o direito de legislar. Por exemplo, os cidadãos de um estado têm o direito de designar, mas não de legislar; eles só podem designar quem deve receber autoridade. O objetivo do direito de designar não é fazer uma lei; antes, é apenas o de nomear uma pessoa. Portanto, o direito de designar perdura enquanto existir a intenção habitual de nomear uma pessoa para a autoridade, ou enquanto esse direito não for suprimido pela autoridade. O direito de designar é ordenado a um ato especificamente diferente daquele para o qual a jurisdição ou autoridade é ordenada. A autoridade é encarregada de formular leis; ordens para promover os próprios fins da mesma sociedade. Ao contrário, o direito de designar não é ordenado diretamente para promover os fins próprios da sociedade, apenas para buscar um sujeito capaz de receber autoridade. O objeto de um é simpliciter distinto do objeto do outro, e o direito de escolha não implica em seu conceito formal a posse do direito de legislar, assim como a própria eleição não implica a posse de autoridade em seu conceito formal .


É verdade que, em concreto, esses dois direitos muitas vezes são dados na mesma pessoa, por exemplo: em um cardeal ou em um Papa. Mas esses dois acidentes (o direito de designar e promulgar uma lei, ou a designação e posse de autoridade) não ocorrem necessariamente juntos na mesma pessoa, uma vez que seu objeto é diferente. Como já foi dito, o objeto do direito de designação é a nomeação de quem deve receber autoridade e o objeto do direito de legislar é a própria lei ou ordem da razão, para promover o bem comum. O ato ou exercício do direito de designar é a designação; o ato ou exercício do direito de legislar é o ato de fazer leis. Uma vez que esses direitos têm objetos simpliciter diferentes, existem dois poderes morais simpliciter diferentes. Essa distinção resolve a dificuldade que alguns objetam: é impossível que um conclave composto por cardeais heréticos e, conseqüentemente, privados de jurisdição, possa escolher aquele que é ordenado para receber a jurisdição plena (1).


O direito de legislar vem de Deus imediatamente, o direito de designar vem de Deus apenas mediatamente, e imediatamente da Igreja.


O direito de legislar; ou seja, para ensinar, governar e santificar a Igreja vem de Deus. É a autoridade própria, a autoridade de Cristo da qual o Papa participa como vigário. Em vez disso, o direito de designar quem deve receber autoridade vem de Deus de forma mediata, e da Igreja, imediatamente. Isso é evidente; quando um Papa morre, o direito de nomear um sucessor não morre com ele! O titular legal do direito de nomear é o corpo de eleitores ou conclave. Por esta razão, o conclave ou corpo de eleitores pode transmitir o direito de nomeação até mesmo a um Papa material; isto é, nomeado para o Papado sem ter autoridade papal; de tal forma que este papa material pode legalmente nomear outros eleitores e assim manter o corpo legal dos eleitores em perpetuidade.


Em outras palavras, todas essas considerações se aplicam à linha de materiais. Este princípio é extremamente importante, visto que aqueles que criticam a Tese não entendem como quem não tem autoridade papal pode nomear cardeais ou eleitores capazes de legal e legitimamente eleger quem deve receber autoridade. Eles pensam erroneamente que o direito de nomear eleitores é também o direito de legislar e, por isso, unem o que deve ser separado. Este direito de designar presente em Paulo VI ou em João Paulo II não os torna Papas, pois carecem de autoridade ou de direito de legislar. Eles não são, portanto, Papas formaliter, mas materialiter. No entanto, eles podem nomear os eleitores e também os bispos para ocupar os assentos de autoridade e podem até mesmo alterar validamente as regras da eleição, especialmente se as mudanças forem aceitas pelo conclave.


A duração da designação para receber a jurisdição papal.


A designação para o cargo dura: (1) até a morte; (2) até a rejeição ou renúncia voluntária do sujeito, ou (3) até a privação da designação do sujeito, realizada por quem tem o direito de fazê-lo. Não existe outra maneira para privar da designação (2). Não existe autoridade que tem o poder de julgar o Papa; no entanto, o corpo dos eleitores pode retirar-lhe a designação. De fato, a designação provém de Deus somente de maneira mediata; de maneira imediata, provém dos eleitores. Por esta razão, o fato de constatar a perda da jurisdição, ou inclusive ausência de disposição para receber autoridade papal em um papa eleito não excede o direito dos eleitores do Papa. Por exemplo, os eleitores devem constatar a morte de um papa antes de poder proceder a eleição de um novo. Paralelamente, se o Papa ficasse louco, os eleitores deveriam constatar sua loucura; em consequência, a perda do poder papal, e logo de haver constatado este fato, poderiam proceder a uma nova eleição. Do mesmo modo, no caso de uma pessoa apontada ao Papado cair em heresia; ou pior ainda, de alguém que em nome da igreja promulga heresias e leis disciplinares heréticas e sacrílegas, os eleitores deverão e poderão constatar o fato da ausência de disposição para receber autoridade ou para mantê-la, da parte da pessoa eleita, e logo de haver constatado fato, proceder a uma nova eleição.


A duração do direito de designar.


A duração do direito de designar é semelhante à duração da mesma designação; quer dizer, se pode perder unicamente pela morte, renúncia ou privação legal. No caso dos eleitores do Papa, só quem tem o direito de nomeá-los (quer dizer, somente quem é Papa, ao menos, materialmente) tem o direito de privá-los legalmente. Mas neste ponto um se pergunta: como um indivíduo que não é Papa ou que é Papa só materialmente pode privar ou nomear legalmente os eleitores do Romano Pontífice? Em outras palavras, de que maneira depois do Concílio Vaticano II, os conclaves podem ser considerados legítimos quando os mesmos titulares purpurados estão privados da jurisdição porque são hereges, ou, porque foram nomeados por hereges, também privados de jurisdição?


A resposta é que autoridade tem um duplo fim: um, o de legislar; e outro, o de nomear os sujeitos que receberão a autoridade. Como a mesma autoridade tem “um corpo” e “uma alma”; quer dizer, uma matéria e uma forma, sendo a primeira, a designação para receber a jurisdição; e a segunda, a mesma jurisdição assim, o objeto da autoridade é dupla. O primeiro e principal objeto ou fim da autoridade é o de dirigir a comunidade ao bem por meio de leis, e isto visa a “alma” da autoridade; o objeto segundo e secundário da autoridade (já que se ordena ao primeiro) é o de nomear os sujeitos da autoridade, e isto visa o corpo da autoridade afim de que a comunidade tenha continuidade no tempo. Por exemplo: se São Pedro houvesse conduzido à Igreja sem prover a sua legítima sucessão, haveria lesionado gravemente - e inclusive mortalmente - o bem da Igreja. Já que não é suficiente para um bom governo que alguém simplesmente legisle, deve prover a criação de uma legítima sucessão na sede da autoridade.


Estes dois objetos da autoridade são realmente distintos. A razão é que é o ato da designação para receber um cargo não é fazer uma lei. Designar alguém para um cargo é simplesmente transferir-lhe um direito ou título. Isto não concerne ao fim da sociedade. Não se deve nenhuma obediência a designação - como diferentemente se deve a lei - só se deve o seu reconhecimento. Contudo, se os objetos são realmente distintos, então as faculdades ordenadas aos objetos são também realmente distintas. Logo, a faculdade de designar é realmente distinta da faculdade de legislar. Pode acontecer que mesmo que uma pessoa não goze da faculdade de legislar (ou da autoridade considerada em sentido próprio e formal) possa, não obstante, gozar da faculdade de designar na medida em que queira o bem objetivo da sucessão legal na sede da autoridade.


Em outras palavras, como já dissemos, o poder de designar vem da Igreja; o poder de legislar vem de Deus. A Igreja pode dar o poder de designar, sem ao mesmo tempo Deus conceder o poder de legislar, e isso, por causa de um impedimento. Mas os eleitores do Papa - mesmo aqueles que aderem ao Concílio Vaticano II - pretendem designar legalmente uma pessoa para receber o papado. Assim, mesmo quando Paulo VI e João Paulo II são apenas materialmente Papas (3), ao nomearem cardeais pretendem nomear sujeitos que têm a faculdade ou o direito de nomear o Papa. Depois, os conclaves, mesmo os posteriores ao Concílio Vaticano II, desejam objetivamente o bem da sucessão na Sé Pontifícia; e os eleitos para esta Sé propõem objetivamente o bem que consiste no fato de nomear os eleitores do Papa. Essa continuidade puramente material de autoridade pode continuar indefinidamente enquanto os conclaves pretendem eleger um Papa e aqueles que são eleitos pretendem nomear os eleitores. Tampouco a designação se torna nula por heresia dos eleitores ou do eleito, pois a designação em si não diz respeito à disposição ou falta de disposição do sujeito. As exigências da autoridade, isto é, do direito de legislar, dizem respeito à disposição ou à falta de disposição do sujeito. Em outras palavras, a matéria se torna desajustada para receber autoridade por causa das demandas da forma; isto é, de autoridade, e não por causa dos requisitos do ato de designação.


Por exemplo, para um leigo eleito para o Papado receber validamente autoridade, ele deve ter a intenção de receber a consagração episcopal. Se esta intenção não existe, fica validamente designada, mas não está apta a receber autoridade devido a não disposição quanto aos requisitos da forma, mas não quanto aos da designação. Este sujeito seria Papa materialmente até o momento em que pretende receber a consagração episcopal. A designação é válida; a exigência de autoridade torna o sujeito inválido, desde que não se torne matéria pronta para receber autoridade.


Então, quem quer que seja nomeado para o Papado, mesmo que não possa receber a autoridade - por causa do obstáculo da heresia, ou porque ele recusa a consagração episcopal, ou por qualquer outro motivo - pode, no entanto, nomear outras pessoas para receber a autoridade. (Como acontece com os bispos) e mesmo os eleitores do Papa, uma vez que todos estes atos dizem respeito apenas à continuação da parte material da autoridade e não à jurisdição, uma vez que nenhuma lei é feita na nomeação. A nomeação ou designação é uma preparação simples verdadeiramente longe do fato de legislar.


Quem for nomeado para a autoridade receberá validamente esse poder não legislativo na medida em que mantenha a intenção de continuar a parte material da hierarquia. Os eleitores que são nomeados por uma pessoa que é apenas um Papa materialiter procedem a uma eleição legal quando elegem alguém para o Papado, uma vez que nenhuma lei é feita em conformidade com este ato, e então os eleitores não têm necessidade de jurisdição, isto é, o direito de legislar. Para proceder válida e legalmente para uma designação, eles devem ter apenas o direito de voz ativa.


Uma analogia pode ser feita com o caso da alma humana. A alma é ordenada a atos especificamente diferentes; por exemplo: os atos da vida vegetativa, a vida sensível e a vida racional. Pode acontecer que por inépcia ou indisposição da matéria (por exemplo, um grave ferimento na cabeça) a alma realize apenas os atos da vida vegetativa, de forma que o corpo permaneça vivo e potencialmente com virtude para realizar atos superiores quando a matéria se tornar apta. No entanto, se a matéria se torna completamente inadequada para sustentar a vida, mesmo a vida vegetativa, a morte segue. Da mesma forma, a Igreja pode preservar a "vida vegetativa" da hierarquia e, ao mesmo tempo, não preservar a "vida legislativa" ou a vida que prossegue os fins da Igreja (pelo menos, em nome da hierarquia). Este estado de coisas não se origina de uma falha da parte de Cristo; vêm de uma falha da parte de homens defectíveis, como aqueles que são designados para receber autoridade. Isso é permitido por Cristo, Cabeça da Igreja e é "admirável aos nossos olhos". No entanto, todo o mal é permitido por Deus para o bem.


As finalidades da Igreja continuam a ser prosseguidas por padres e bispos que não caíram na heresia, com uma jurisdição que não é habitual, mas simplesmente transitória, quando praticam os atos sacramentais.


Notas:

1) Nos dois primeiros pontos desse estudo, é demonstrado, com argumentos diretos, como um "Papa" só materialiter (logo, destituído de autoridade) pode validamente designar os eleitores do conclave (o cardeais), aos ocupantes das sedes episcopais, e para mudar as regras da eleição. Os argumentos adotados por Dom Sanborn nos parecem probatórios, claros, definitivos e reafirmam a posição já expressa pelo Padre Guérard des Lauriers e pelo Padre Bernard Lucien sobre a "permanência material da hierarquia" (Cf. B. LUCIEN, La situación actual de la Autoridad en la Iglesia. La Tesis de Cassiciacum, Documents de Catolicité, 1985, Cap. X, págs. 97-103). No entanto, se o leitor ainda não está convencido, outras evidências (embora menos profundas, indiretamente) podem ser fornecidas. Com efeito, se esta possibilidade não for admitida, deve-se concluir que atualmente a Igreja hierárquica está completamente destruída e que não há mais qualquer possibilidade de eleger um Papa no futuro, o que é contrário à indefectibilidade da Igreja. Supondo, então, que o "Papa" materialiter não estivesse apto por si mesmo para nomear legalmente os eleitores do Conclave e os ocupantes das sedes episcopais, seria necessário admitir que essa capacidade viesse de uma suplência por parte de Cristo. A hipótese de uma suplência por parte de Cristo não é sem fundamento, nem mesmo entre os autores. Por exemplo, C.R. Billuart O.P., supõe-no no caso hipotético do «Papa herético». "Isto é sentença comum - escreve Billuart - que Cristo, para o bem comum e a tranquilidade da Igreja, com uma dispensa especial, concede jurisdição ao Papa manifestamente herético, até que a Igreja o declare como tal »(Summa Sancti Thomae ..., T . IX, Tractatus de Fide et regulis Fidei, 2a obj.) [Aqui, Billuart até defende uma suplência da autoridade de jurisdição, que não pode ser admitida em nosso caso]. Timoteo Zapelena S.J. também avança a hipótese de uma suplência de jurisdição, ainda que limitada, concedida por Cristo para garantir a continuidade da Igreja. Estudando o caso do Grande Cisma do Ocidente, após ter dito que o Papa legítimo era o Romano, o teólogo jesuíta considera o que aconteceria se os três "Papas" do Grande Cisma fossem "duvidosos" e, conseqüentemente, "nulos ". Os cardeais e os bispos por eles nomeados, não seriam todos inválidos? Segundo Zapelena, nesta hipótese, “uma suplência de jurisdição (com base no título 'colorado') deveria ser admitida, não por parte da Igreja, que não tem a autoridade suprema, mas por parte de Cristo ele mesmo, que teria concedido a jurisdição de cada umdos antipapas, na medida do necessário ”; isto é, apenas para a nomeação de cardeais (e bispos) aptos para a eleição papal (De Ecclesia Christi, pars altera apolegetico dogmatica, Universidade Gregoriana, Roma, 1954, pág.115). O caso analisadopor Zapelena é muito parecido com o nosso. Se Billuart lança a hipótese de uma suplência de jurisdição para um papa manifestamente herético e Zapelena a lança até mesmo para um antipapa, não se pode ver por qual razão essa suplência não é teologicamente possível também para um "Papa" materialiter - com moderação, bem compreendido - para os atos necessários para garantir a continuidade da estrutura hierárquica da Igreja, que é postulada pela Fé nas promessas de Nosso Senhor.


2) O cânon 183 §1 enumera as causas da perda dos cargos eclesiásticos: renúncia, privação, remoção para outro cargo, transferência, passagem do tempo prescrito. Mas, em nosso caso, nem a privação, nem a remoção para outro cargo, nem a passagem do tempo predefinido podem ser aplicadas. [N.d.T.: A tradução dos termos do cânon corresponde à edição do Código de Direito Canônico do B.A.C., 1951].


3) Por outras palavras: são Papas apenas «secundum quid» (num certo sentido), mas não «simpliciter» (em absoluto), formalmente.



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