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O ENTE E A ESSÊNCIA

Por Santo Tomás de Aquino, O Ente e a Essência

(Instituto Piaget, Introdução, tradução, notas e apêndices de Maria José Figueiredo, pp. 37-47)



Segundo diz o Filósofo, no primeiro livro, Acerca do Céu e do Mundo, um erro que é pequeno no princípio torna-se grande no fim; ora, o ente e a essência são aquilo que é primeiramente concebido pelo intelecto, como diz Avicena no primeiro livro da sua Metafísica; por conseguinte, para que não se caia em erro por os ignorar, e para que se afastem as dificuldades a eles concernentes, há que dizer o que significam os termos essência e ente, e de que maneira ocorrem nas diversas coisas, e de que maneira se referem às noções lógicas, a saber, as de género, espécie e diferença específica.


Uma vez que devemos aceder ao conhecimento das coisas simples a partir do conhecimento das coisas compostas, e ao das anteriores a partir das posteriores, para que o ensino seja mais eficaz, por se começar pelas coisas mais fáceis, convém, então proceder da significação do ente para a da essência.


Convém saber que, como diz o filósofo no quinto livro da Metafísica, o ente por si se diz de duas maneiras: uma das maneiras de o ente se dizer é a que se divide pelos dez géneros [1]; a outra é a que significa a verdade das proposições. A diferença entre estas duas maneiras de dizer o ente é que, pelo segundo modo, pode dizer-se que é ente tudo aquilo de que se pode formar uma proposição afirmativa, ainda que isso [2] nada estabeleça na realidade; e é por este modo que se diz que as privações e as negações são entes: de facto, dizemos que a afirmação é o oposto da negação, e que a cegueira ocorre no olho. [3] Mas pelo primeiro modo não se pode dizer que é ente senão aquilo que estabelece alguma coisa na realidade. Daí que, pelo primeiro modo, a cegueira e este género de coisas não sejam entes. Daqui que o termo essência não possa derivar-se do ente dito do segundo modo; de facto, aquelas coisas que deste modo se diz que são entes não têm essência, como acontece com as privações; mas o termo essência é derivado do ente dito do primeiro modo. Daí que o Comentador, ao comentar esta passagem, diga que «é o ente dito do primeiro modo que significa a essência da coisa».


E uma vez que, como ficou dito, o ente dito deste modo se divide pelos dez géneros, convém que a essência signifique algo que é comum a todas as naturezas, pelos quais os diversos entes são colocados nos diversos géneros e espécies, como a humanidade é a essência do homem, e o mesmo quanto às outras coisas. E é porque aquilo pelo qual a coisa é integrada no próprio género ou espécie é aquilo que é significado pela definição, que indica o que a coisa é, que o termo essência foi mudado pelos filósofos para quididade [4]; e é a isto que o Filósofo chama frequentemente o que era ser, isto é, aquilo pelo qual algo tem um certo ser. E também se lhe chama forma, na medida em que pela forma se entende a determinação de cada coisa, como diz Avicena no segundo livro da sua Metafísica. A essência é ainda designada por outro termo, natureza, tornando-se a natureza no primeiro dos quatro sentidos que Boécio atribui a esse termo no livro Acerca das Duas Naturezas; a saber, enquanto se chama natureza a tudo aquilo que o intelecto pode, de algum modo, captar. De facto, uma coisa não é inteligível senão pela sua definição e pela sua essência: e assim, também o Filósofo diz, no quinto livro da Metafísica, que toda a substância é natureza. Contudo, o termo natureza, tomado deste modo, parece significar a essência da coisa enquanto se ordena à sua operação própria, uma vez que nenhuma coisa está destituída da sua operação própria. O termo quididade deriva daquilo que é significado pela definição; mas a essência diz-se na medida em que por ela e nela o ente tem ser.


Mas como o ente se diz, de modo absoluto e primeiramente, das substâncias, e posteriormente e como que segundo algo dos acidentes, é por isso que a essência está, própria e verdadeiramente, nas substâncias, e nos acidentes apenas de certa maneira e segundo algo [5].


Ora, de entre as substâncias, umas são simples e outras compostas, e ambas têm essência; mas ela está nas simples de modo mais verdadeiro e mais nobre, na medida em que estas têm um ser mais nobre; e também são causa das compostas, pelo menos a substância primeira e simples, que é Deus.

Mas, uma vez que as essências daquelas substâncias nos estão mais ocultas, é por isso que é necessário começar pelas essências das substâncias compostas, para que o ensino seja mais eficaz.


Assim, nas substâncias compostas, encontramos a matéria e a forma, como encontramos, no homem, a alma e o corpo.[6] Mas não se pode dizer que apenas uma destas seja a essência. Que a matéria não seja, por si só, a essência é evidente, uma vez que é pela sua essência que a coisa é cognoscível e que se integra numa espécie e num género; mas a matéria nem é princípio de conhecimento, nem é segundo ela que algo é determinado [7] a um género ou a uma espécie, mas segundo aquilo pela qual algo é em acto. Mas também não se pode dizer que apenas a forma seja a essência da substância composta, ainda que alguns pretendam afirmá-lo. Por aquilo que ficou dito, é claro que a essência é aquilo que é significado pela definição da coisa. Ora a definição das substâncias naturais não contém apenas a forma, mas também a matéria; de outro modo, as definições das coisas naturais não difeririam das definições das coisas matemáticas [8]. Mas também não se pode dizer que a matéria seja introduzida na definição das coisas naturais como acrescentada à sua essência, ou como um ente exterior à sua essência, pois este modo de definição é próprio dos acidentes, que não têm uma essência perfeita; daí que convenha que recebam na sua definição o sujeito [9], que é exterior ao seu género [10]. É portanto evidente que a essência [11] compreende a matéria e a forma.


Também não se pode dizer que a essência signifique a relação existente entre a matéria e a forma, ou alguma coisa que lhes seja acrescentado, pois isto seria, necessariamente, acidental ou exterior à coisa, e não seria por isso que a coisa seria conhecida: tudo coisas que convêm à essência [12]. De facto, pela forma, que é o acto da matéria, a matéria torna-se ente em acto e uma certa coisa. Daí que aquilo que é acrescentado não dê à matéria, simplesmente, o ser em acto, mas um certo ser em acto, como fazem os acidentes; como a brancura faz o branco em acto. E assim, quando se adquire uma tal forma, não se diz que algo se gera simplesmente, mas que se gera segundo algo.


Resta, portanto, que o termo essência signifique, nas substâncias compostas, aquilo que é composto de matéria e forma. E esta posição está de acordo com a afirmação de Boécio, no seu comentário às Categorias, onde diz que a ousia [13] significa composto; efectivamente, para os gregos, a ousia significa o mesmo que a essência para nós, como ele mesmo diz no livro Acerca das Duas Naturezas. Avicena diz ainda que a quididade das substâncias compostas é a própria composição de forma e matéria. E também o Comentador diz, acerca do sétimo livro da Metafísica: «A natureza que têm as espécies das coisas sujeitas à geração é algo intermediário, isto é, composto de matéria e forma». Com isto concorda ainda a razão, pois o ser das substâncias compostas não é apenas o da forma, nem apenas o da matéria, mas o do próprio composto; efectivamente, a essência é aquilo segundo o qual se diz que a coisa é. Pelo que convém que a essência, pela qual a coisa é denominada ente, não seja apenas a forma, nem apenas a matéria, a causa deste modo de ser. Como vemos que acontece noutras coisas que são constituídas por muitos princípios, que a coisa não é denominada apenas por um desses princípios, mas por aquilo que é composto por ambos, como acontece com os sabores: pois é pela acção do calor, que digere o húmido, que é causada a doçura: e embora, deste modo, seja o calor a causa da doçura, nem por isso o corpo é denominado doce a partir do calor, mas a partir do sabor, que é composto pelo calor e pelo húmido.


No entanto, como o princípio de individuação é a matéria, poder-se-ia pensar que se segue do que dissemos que a essência, que é composta, simultaneamente, pela matéria e pela forma, é particular e não universal; daí se seguiria que os universais não teriam definição, uma vez que a essência é aquilo que é significado pela definição. Convém, pois, saber que não é a matéria considerada de qualquer modo que é princípio de individuação, mas apenas a matéria designada. E chamo matéria designada àquela que é considerada sob determinadas dimensões. Mas esta matéria não entra na definição de homem, enquanto homem, mas entraria na definição de Sócrates, se Sócrates tivesse definição. Na definição de homem, porém, entra a matéria não designada; de facto, na definição de homem não entram estes ossos e esta carne, mas ossos e carne em absoluto, que são a matéria não designada do homem.


[1] Ou categorias, substância e acidentes; ver Catherine Capellle, O. P., Saint Thomas d’Aquin, L’être et L’essence, Paris, Vrin, 1965, ad loc.): «l’être qui est divisé en dix catégories».

[2] Isto é, essa proposição.

[3] Isto é, o facto de afirmarmos «a afirmação é o oposto da negação» e «a cegueira ocorre no olho» confere a «negação» e a «cegueira» uma certa realidade, enquanto palavras usadas nestas duas proposições afirmativas.

[4] A essência indica «o que» (quid) a coisa é, ou seja, a sua quididade.

[5] É curioso observar que, embora tenha declarado que investigará o que é o ente e a essência, São Tomás de Aquino acabará por centrar-se especialmente no modo como os vários entes possuem essência, sem se preocupar muito com o que é ser.

[6] A composição de alma e corpo é um exemplo do tipo mais geral de composição, de forma e matéria [ou antes: de matéria e forma, de modo a evitarmos a cacofonia: de forma].

[7] Isto é, que algo se inclui num género ou numa espécie.

[8] Isto porque, considera São Tomás de Aquino, os princípios da lógica e da matemática se referem apenas aos aspectos formais da coisa (ver Suma contra os Gentios, II, 25, 10).

[9] Isto é, o sujeito em que inserem; mas ver adiante, capítulo 7.

[10] Isto é, ao género dos acidentes.

[11] Isto é, a essência das substâncias compostas.

[12] Isto é, ser essencial, própria da coisa, e permitir que ela seja conhecida.

[13] Ousia, termo grego que é normalmente traduzido por «substância». Esta noção é discutida, nomeadamente, nas Categorias de Aristóteles, onde adquire pela primeira vez o sentido técnico que virá a ter em toda a tradição filosófica; é no entanto redutor considerar que, nesse texto, «ousia» significa apenas «essência».

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