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DOS ERROS DE DUNS SCOTUS E DO TRIUNFO DO TOMISMO VITAL E REAL

Esse doutor franciscano, nasceu em Maxton, na Escócia, em 1266. Estudou em Oxford e se tornou Doutor, primeiro, em Oxford, e, depois, também em Paris, em 1305, tendo falecido em 1308. Suas distinções sibilinas contra a doutrina tomista valeram-lhe o título de Doctor Sutilis com o qual foi agraciado.



Porém, demonstraremos neste artigo como Duns Scotus foi a fonte originária de todo o mal na Filosofia, na época pós Santo Tomás. Com efeito, Duns Scotus foi o primeiro, no auge do escolasticismo, a negar a analogia do ser, a conceber como possível a separação entre fé e razão, a colocar a vontade acima do intelecto, tanto em Deus como nos homens, e, finalmente, por admitir que Deus age arbitrariamente, e não sapiencialmente.


Este artigo será divido em 3 partes, onde a primeira parte se intitula "I. Duns Scotus: o ancestral da modernidade",a segunda parte "II. Os frutos da Filosofia de Scotus e suas máximas consequências", e a terceira "III. Garrigou-Lagrange contra Scotus"


I. Duns Scotus: o ancestral da modernidade


No século XIV, o frade franciscano Duns Scotus refunda a metafísica, ao adotar critérios tão inovadores, tão sutilmente contrapostos à metafísica clássica (refiro-me, sobretudo, à aristotélica e à tomista), que na verdade parece tratar-se de outra ciência. Quem o diz não sou eu, mas o professor emérito da Universidade de Bonn, Ludger Honnefelder — um dos maiores e mais respeitados estudiosos da obra de Duns Scotus nas últimas décadas, no cenário internacional.

Em seu conjunto, essa “refundação” scotista abriu, a meu ver, os seguintes flancos para os pensadores dos séculos seguintes: > Intuicionismo em gnosiologia. Uma das teses de Duns Scotus é de que, no estado de natureza instituída por Deus (ou seja, o estado adâmico), o homem conhecia os inteligíveis diretamente, numa espécie de clara visão das essências. Sendo capax totius entis, o intelecto teria — inscrita entre as suas possibilidades metafísicas — a intuição direta dos inteligíveis. E mais: ainda de acordo com o Doutor Sutil, o homem voltará a ter esse tipo de cognitio intuitiva no estado de bem-aventurança — na visão beatífica. Ora, retire-se daí a premissa teológica, e cairemos na tese husserliana de que conhecemos a essência dos entes por intuição direta. Como se fôramos anjos... Curiosamente, ao propor a estrita separação entre teologia e metafísica (e, conseqüentemente, gnosiologia), Scotus parte de uma concepção, ou melhor, de uma pressuposição... teológica! Veremos isto mais abaixo.

> Criticismo, ainda em gnosiologia. A tediosa multiplicação ad infinitum das distinções de razão — tão característica da obra de Scotus e que influenciou boa parte dos filósofos posteriores, ainda no século XIV —, com o tempo não poderia levar senão a teorias “criticistas” do conhecimento, teorias as mais anti-realistas, como se frisa no tópico seguinte. Não é demais lembrar que, de acordo com o Doutor Sutil, a inteligência do homem, no atual estado de natureza caída, foi dramaticamente danificada, a ponto de ele dizer (como bem destaca Gérard Sondag, na interessante introdução ao livro Duns Scot – L’Image) que a alma racional está, atualmente, em status naturae lapsae. Como se vê, não estamos muito distantes da visão protestante, luterana, que afirma o seguinte: com o pecado original, a inteligência e a vontade foram essencialmente danificadas. A propósito, que Lutero tenha sido um estudioso da obra de Ockham (a quem chamava, segundo alguns biógrafos, de “meu mestre”) e da de Duns Scotus, é algo sabido de todos.

> Idealismo, ainda em gnosiologia. A problematização do acesso da inteligência às coisas (ainda que sob a pressuposição de que isto ocorre apenas no atual estado, de natureza decaída pelo pecado) ganhará novos contornos, com a tese nominalista de que o universal é “criação” conceitual da mente sem correspondência com a unidade real de um objeto concreto. Idéia e realidade são, aqui, paralelas que jamais se encontram, ou, se se encontram, é por uma representação formal que não necessariamente deságua no ente real, ou melhor: prescinde dele. Afinal, a existência não é a razão dos objetos, não é o que os distingue enquanto objetos (existentia non est per se ratio objecti — cfme. Quodlibet, VII, 8-9). Antes do objeto existente, considera-se a possibilidade do existir; ademais a existência contingente não afeta a essência do objeto. Essa possibilidade formal é, pois, a nota distintiva da metafísica de Scotus, uma metafísica do possível, a qual culminará na teoria dos compossíveis de Leibniz, de acordo com J. Carrascoso.

Com a distinção formal (distinctio formalis) — espécie intermediária entre a distinção real e a distinção de razão —, Duns Scotus cria a ferramenta sem a qual a filosofia moderna não teria sido possível, de acordo com Valentín Polanco, em seu belo estudo sobre os antecedentes tardo-medievais do criticismo kantiano. Em resumo, a tese prega que duas coisas podem ser formalmente distintas sem ser realmente distintas, nem tampouco racionalmente distintas. Trata-se de um terceiro âmbito da realidade, intermediário entre o racional e o real. “Se a equinidade é equinidade”, diz Scotus parafraseando a Avicena, “é porque a equinidade é” — e este é, aqui, não significa uma existência real (ens reale) nem, propriamente, uma existência de razão (ens rationis). Tudo isso conduz à idéia de pluraridade de formas essenciais (distintas e superpostas) em uma só substância individual: assim, a minha humanidade é, a minha corporeidade é, a minha animalidade é, a minha racionalidade é, etc. Haveria, portanto, uma verdadeira legião em cada um de nós — ao modo de substratos metafísicos.

Em suma, de maneira análoga ao que acontece com a fenomenologia de Husserl, as essências, em sua pura formalidade, são o objeto da metafísica scotista — formalidade essa que “superaria” a realidade contingente (ou seja: o real existente). Assim, se algo possui a capacidade de gerar vários conceitos, todos “pertencentes” à coisa na medida em que revelam uma parte do que ela é, tais distinções devem ter uma actualitas específica... Nas conhecidas palavras de Scotus, “a toda entidade formalmente distinta corresponde adequadamente um ser real”. Dessa sutil espécie de petitio principiis apropriar-se-á Descartes, na Sexta Meditação*.

O fato é que, a partir de tais premissas (com a inserção de uma terceira realidade: a formal), o conhecimento não mais poderá ser explicado como uma relação direta entre o pensamento e a coisa, entre um sujeito e um objeto (real ou de razão). Entra em jogo a representação — que é para Scotus como uma realidade real intermédia entre a coisa e o pensamento, entre o ente real e o de razão: esse objectivum, ser ou realidade objetiva com a qual se inaugura no Ocidente a gnosiologia apoiada na natureza ideal dos objetos do conhecimento (e não nos entes reais). Neste panorama, conhecer, ou seja, alcançar uma verdade, será uma de duas: ou a identidade entre o sujeito e a representação, ou a identidade entre a representação e a coisa, mas nunca, jamais, a adequação entre o intelecto e a coisa, como diz o já citado Valentín Polanco**. Em suma, fundamentalmente, conhecemos não a coisa real — de cuja essência nos apropriamos por abstração de suas quididades materiais —, mas a nossa representação da coisa, apenas.

Não é preciso ser um Doutor Sutil para verificar que, com esta tese, conhecer tornou-se algo mais difícil, mais complexo, mais problemático.


> Univocismo em metafísica. Deste tópico, trataremos noutra oportunidade.

> Voluntarismo em psicologia e/ou antropologia. Para Duns Scotus, a vontade autodetermina-se, ou seja: não conhece amarras, por ser absolutamente livre. Ela não tem causa anterior e, portanto, é causa sui. Ela é também a faculdade mais nobre da alma, em certo sentido muito superior ao entendimento. A vontade sempre pode abster-se de querer — pode, inclusive, não querer o Sumo Bem. Há mais: o homem pode querer o mal enquanto mal — e até mesmo a alma de Cristo, por enquadrar-se em tal conceito de liberdade humana, pode pecar***, assim como também o pode a alma dos bem-aventurados, no céu. Tinha razão Leonardo Polo (de quem sou insuspeito para falar, pois o considero altamente problemático) ao dizer que a supervalorização da vontade, que começa em Scotus, abre caminho para a quimera da auto-realização das vontades individuais — um dos ideais do pensamento moderno. Ideal anticristão, diga-se, na medida em que abole a noção de sacrifício para alcançar-se a perfeita felicidade. Ao homem — inclusive o cristão —, bastar-lhe-á a liberdade para ser “feliz”, e não a posse objetiva do Sumo Bem.

> Separação entre fé e razão. Duns Scotus traça uma rígida e intransponível linha divisória entre o conhecimento estritamente racional e o conhecimento a que a razão pode chegar sob a luz da fé (sub lumine fidei). Ele distingue a filosofia primeira, que tem como objeto o ente segundo a entidade (entis secundum suam entitatem), da teologia ou ciência dos beatos (scientia beatorum), que estuda Deus a partir da Revelação, e que é chamada por Scotus de “nossa teologia” (theologia nostra) — que o Doutor Sutil não classifica como ciência (a meu ver, por não aplicar a ela a distinção tomista entre evidência quoad se e evidência quoad nos). Perde-se, aqui, a noção de que a filosofia é “serva da teologia” (ancilla theologiae), já que se trata não de dois conhecimentos complementares e harmônicos (sendo a filosofia subalternada em relação à teologia, como em Santo Tomás), mas estanques, independentes um do outro.

A partir daí, a história da filosofia mostra muito bem qual foi a senda aberta com a “refundação” scotista — sobretudo com a separação entre teologia e metafísica: crescente afastamento entre fé e razão (a primeira logo cairá no pietismo de vários tipos, já que Deus deixará de ser objeto do escrutínio da razão, e a segunda soçobrará no racionalismo de variados matizes); esvaziamento paulatino da metafísica, até a sua “destruição” em Kant e, logo depois, queda nos materialismos os mais abstrusos, já no século XIX (talvez o mais antimetafísico de toda a história da filosofia).

O irônico de tudo isso é que Scotus, tão cioso de separar essas duas ordens de saberes, baseia a sua gnosiologia — e parte de sua metafísica — numa premissa teológica: a de que a natureza do homem conhece três estados: · o estado da natureza instituída originalmente por Deus; · o estado da natureza decaída pelo pecado original; · o estado da natureza restaurada dos bem-aventurados. Em síntese, é na consideração desses três estados (na verdade, uma pressuposição para a qual não há a mais remota evidência, no que tange às operações da inteligência no primeiro e no último estágios) que a teoria do conhecimento de Scotus se fundamenta, da seguinte forma: intuição direta dos inteligíveis no estado adâmico original e também no de bem-aventurança final, e corrupção quase que essencial da inteligência no atual momento, de status naturae lapsae. Mas aqui vale perguntar: já que se trata de ordens tão essencialmente distintas de conhecimento, não teria o Doutor Sutil de buscar os princípios de sua gnosiologia em premissas não-teológicas? Em alguma evidência? Nesse sentido, a gnosiologia aristotélica é, sem dúvida, muito mais realista.

Hoje, estudos sérios em vários países apontam-nos as grandes afinidades entre as obras de Scotus e Descartes, Scotus e Leibniz, Scotus e Hobbes, Scotus e Spinoza, Scotus e C. Wolf, Scotus e Kant, Scotus e Hegel, Scotus e Brentano, Scotus e Pierce, Scotus e Husserl, Scotus e Heidegger (que sobre o pensador medieval escreveu uma tese), Scotus e Wittgenstein, Scotus e Xavier Zubiri (aqui, refiro-me, particularmente, à tese zubiriana da “transubstantivação” do corpo de Cristo e do pão na Eucaristia, à qual Zubiri parece inspirado pelo fato de Scotus, de acordo com vários scotistas, não enxergar uma razão teológica forçosa para a tese da transubstanciação, embora a aceitasse por ser uma verdade de fé comum de toda a Igreja); etc. Estamos, pois, diante do grande ancestral da modernidade, autor que antecipa várias problemáticas, vários questionamentos típicos do fragmentário pensar moderno, um pensar subjetivista, imanentista, intuicionista, voluntarista e predominantemente materialista.


Por fim, vale consignar outra coisa: na teologia vêem-se também similitudes entre proposições de Scotus e as de autores modernos e/ou contemporâneos, como, por exemplo, Maurice Blondel — para quem chegamos à verdade do catolicismo mais com a vontade do que com a inteligência —, Henri de Lubac, Urs Von Balthazar (aquele para quem o inferno está cheio de pecados, mas não de pecadores), etc. Se isto é bom para o catolicismo, penso que a atual crise doutrinal da Igreja (uma babel de correntes teológicas contrapostas) dá uma resposta definitiva.

Prossigamos apenas com mais um exemplo (entre incontáveis que poderíamos consignar): como não ver uma grande semelhança entre a tese de Blondel de que o sobrenatural é uma exigência da natureza humana e as idéias scotistas de que a distinção entre natural e sobrenatural é contingente (pois depende apenas da vontade divina) e de que o homem está ordenado naturalmente ao sobrenatural (cfme. Ordinatio, Prologus, I, 23)? Ou então com a tese scotista de que nenhum conhecimento é sobrenatural, nem mesmo a visão beatífica (“...non est cognitio aliqua supernaturalis, nec visio Dei”, cfme. Lectura, Prologus, p. 1, q. un., p.12, n: 32)?

De tudo fica-nos uma lição. Por mais sutil e engenhosa que seja uma filosofia, por mais brilhante e repleta de pensamentos surpreendentes que seja, por mais que a sua estrutura lógica intrínseca seja perfeita, o fato é que pode, sim, afastar-se (e afastar-nos) das verdades mais fundamentais.

* Diz Descartes: (...) basta-me poder conceber clara e distintamente uma coisa sem outra para estar seguro de que uma é distinta da outra, já que (...) podem dar-se separadamente”.

** A partir dessas premissas de Scotus, será possível conceber um ato de conhecimento cuja causa não seja o objeto, ou mais: um conhecimento cuja verdade expressa seja por completo independente da realidade do objeto. Aqui vemos o parentesco com alguns tipos de filosofias da linguagem.

*** Cfme. Reportata Paris., III, 12, I, n:2. Poupo-me de trazer uma avalanche de citações do Magistério afirmando que tal opinião inconcebível é herética (Concílios de Éfeso, Calcedônia, Florença, Constantinopla [II], etc). E, como assinala argutamente Santiago Ramírez, a tese scotista da pecabilidade de Cristo é caudatária da sua idéia — compartilhada por Suárez — de que a união hipostática se dá por justaposição extrínseca, na qual a natureza humana não chega a ter mesma subsistência do Verbo divino, pois uma natureza assumida pelo Verbo, para Scotus, seria uma espécie de “não-pessoa”. Que diferença para Santo Tomás! Este afirma categoricamente (junto com o Magistério!), que Cristo, Pessoa Divina na qual há duas naturezas, humana e divina, não apenas não pecou, como jamais poderia ter havido nele a fomes peccati, já que a Graça superabunda em sua alma como algo sumamente perfeito. Em suma: Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é ABSOLUTAMENTE IMPECÁVEL (Cfme. Suma Teológica, III, qq. 14-15). Outras teses, no mínimo heterodoxas, de Scot: Cristo, enquanto homem, pode dizer-se também filho adotivo (como nós); as ações humanas de Cristo têm um valor apenas extrinsecamente infinito; Cristo teria encarnado independentemente do pecado de Adão, porque a união hipostática é, para Scot, um bem maior que a glória das criaturas (mas há, aqui, relação real e conseqüente entre a premissa e a conclusão?); os sacramentos não são causa instrumental da Graça; etc. Vejam-se aqui e aqui duas versões latinas das obras de Scotus, uma delas numa copiosa edição em doze volumes, em flip book.


Sei que estamos mexendo num vespeiro. Afinal, Scotus é beato por culto imemorial [1], apesar de ter defendido idéias tão contrárias ao Magistério (a de que a alma de Cristo é "pecável" é, tão-somente, uma delas). Além do mais, muitos scotistas têm por hábito dizer que acentuar as divergências entre Santo Tomás e Duns Scot é algo anacrônico, fora de moda. E talvez o seja mesmo, dentro da universidade (e, aqui, entra a minha crítica ao fato de o tomismo ter-se academicizado por demais e, com isto, jogado para debaixo do tapete a defesa da fé). Mas fora, em locais distantes dos departamentos de filosofia — já que estes precisam obedecer a grades curriculares, muitas vezes, limitadoras — e de alguns institutos de teologia, ainda se pratica um tomismo da melhor cepa. Entre scotistas encontram-se também alguns dos mais entusiásticos defensores do atual pluralismo teológico; alguns dos maiores defensores de Lutero e de sua “reforma”; alguns dos maiores críticos da Contra-Reforma e do Concílio de Trento; alguns dos maiores críticos da autoridade — monárquica — do Papa (pregam inclusive a democratização total e definitiva do Magistério); alguns dos grandes defensores da tese de que o Magistério da Igreja está circunscrito ao tempo histórico e, portanto, os ensinamentos e o exercício de sua autoridade estão temporalmente condicionados; alguns dos maiores pregadores de um ecumenismo radical que, a pretexto de diálogo, é capaz de “refundar” não a metafísica, mas a religião católica, que nesse ambiente não tem como ser verdadeiramente apostólica nem Arca da Salvação, mas apenas uma dentre tantas outras “religiões”.


[1] O Papa Bento XIV estabeleceu que, se houvesse causas extraordinárias via cultus, a base para a veneração estava no direito adquirido que surgiu da prescrição secular ou imemorial. O que tinha de ser provado era um fato histórico, ou seja, que o servo de Deus era venerado desde tempos imemoriais ou, pelo menos, antes de 1534. Essa fórmula é chamada de canonização equivalente ou canonização extraordinária. Um santo que foi canonizado por esse método é: Pedro Nolasco em 1628 pelo Papa Urbano VIII.


II. Os frutos da Filosofia de Scotus e suas máximas consequências


O pecado contra a Verdade de toda a Filosofia da Modernidade nasceu dos erros de Duns Scotus, explica um fenomenlogista atual, André de Muralt:


A história da filosofia coloca o começo da filosofia moderna em Descartes. Essa definição, bastante superficial, negligencia o trabalho considerável dos séculos anteriores, no curso dos quais foram elaborados os princípios que se desenvolverão sistematicamente de Descartes até Kant. Na realidade, e na medida em que é permitido arriscar um corte na história das idéias, cumpre fazer remontar a filosofia moderna ao fim do século XIII, ao momento em que, sob o impulso de três mestres, a grande síntese escolástica aristotélica e tomista começa a encontrar seus primeiros críticos. Pois está claro que as principais teses da filosofia moderna e contemporânea já estão contidas nas filosofias de Duns Scotus, Guilherme de Ockham e Mestre Eckhart” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno—As origens medievais do Pensamento Fenomenológico, Editora 34, São Paulo, 1998, p. 146. A primeira edição francesa é da Editora Vrin, em 1985).

Já a conceituação de Metafísica segundo Duns Scotus coloca alguns probemas. Partindo da distinção entre Teologia, que tem Deus por objeto, e de Filosofia que estuda o ser à luz da razão, Duns Scotus chega à conclusão que a razão e a Metafísica não podem ter conhecimento de Deus, negando assim que, pela razão, se possa conhecer algo de Deus, como, por exemplo, sua existência e algumas de suas qualidades. Para Duns Scotus, quando se tenta provar a existência de Deus por meios racionais, através do exame das criaturas, no máximo se chega a provar que existe um Deus imanente ao mundo físico.

Para Duns Scotus:


”Nenhuma demonstração do efeito à causa merece, de modo absoluto, o nome de demonstração: “nulla demonstratio, quae est ab effecto ad cusam est demonstratio simpliciter”. Resulta disso imediatamente que todas as provas da existência de Deus são relativas, porque nós jamais atingiríamos a Deus a partir de seus efeitos” (Etienne Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, Vol.II, p. 602).

Essa posição vai ser ainda mais radicalizada por Ockham, que negará explicitamente que se possa provar que Deus exista, examinando as qualidades do mundo, o que vai contra o ensinamento patente de São Paulo, na epístola aos Romanos (I, 20).

Duns Scotus vai dizer que a razão humana nada pode saber dos seres puramente espirituais (Deus e os anjos).


O intelecto humano só pode conhecer verdadeiramente o que ele pode abstrair pelos dados dos sentidos. Não temos nenhum conceito direto do que podem ser as substâncias puramente imateriais e inteligíveis, os anjos e Deus, por exemplo” (Cfr. Etienne Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, Vol.II, pp. 592-593).

Segundo Scotus, a Metafísica deve ter por objeto o ser em sua noção mais abstrata, aquele em que a noção de ser se aplica num só e num único sentido a tudo o que é, desde a pedra até Deus. Seria isso o que exprime Scotus ao dizer que, para o metafísico, o ser é “unívoco”. (Cfr. E.Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, Vol.II, p. 593).


O ser do qual a Metafísica visa estudar não é pois uma realidade física particular, nem um universal tomado em sua generalidade lógica; é a essa realidade inteligível que é a própria natureza do ser enquanto ser” (E.Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, Vol.II, p. 594).

Ora, essa consideração do ser como unívoco arruina a doutrina da analogia do ser, base de toda a escolástica. Dessa noção unívoca do ser iriam nascer logo a substituição da noção da analogia tomista pela dialética gnóstica do ser do dominicano Mestre Eckhart, ou a substituição da analogia pelo univocismo panteísta racionalista do franciscano Frei Guilherme de Ockham. Desses erros advirão todas as tragédias doutrinárias, religiosas e políticas do século XIV, “The Awful Century”, no “Distant Mirror”, de Barbara Tuchman.

Duns Scotus admite que existam modos de ser, derivados das suas determinações intrísecas possiveis. Desse princípio, Scotus retira a prova de que Deus existe necessariamente como primeiro ser.

Para Duns Scoto a criação de seres contingentes provém da pura vontade absolutamente livre de Deus, que quiz criar, porque quiz criar. Deus escolheu criar, porque essa foi a sua vontade absolutamente livre. Deus não criou nada, submetido a qualquer regra. Regra é a vontade arbitrária de Deus. Compreende-se como esse posicionamento é contrário à tese católica que faz tudo partir de um princípio: “no princípio era o Verbo”(Jo.I, 1). E não do arbítrio. Não do capricho, e sim da Sabedoria divina.

Para Duns Scotus:


“A vontade de Deus é pois senhora absoluta da escolha e da combinação das essências; ela não está submetida à regra do bem, mas, ao contrário, a regra do bem é que lhe está submetida. Se Deus quer uma coisa, essa coisa será boa; e se Ele tivesse querido outras leis morais do que aquelas que Ele estabeleceu, essas outras leis seriam justas, porque a retidão é interior à sua própria vontade, e que nenhuma lei é reta senão enquanto ela é aceita pela vontade de Deus. Não se poderia ir mais longe sem desembocar no cartesianismo; mas antes de desembocar nele, era preciso apagar antes toda distinção entre o entendimento de Deus e sua vontade” (E.Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, Vol.II, p. 599).

Daí virá o voluntarismo de Duns Scotus: não é a inteligência que move a vontade. Esta é absolutamente livre.

Aí está a raiz do relativismo moderno.

Essa afirmação do primado da vontade sobre a inteligência pressagia o triunfo do voluntarismo sobre o intelecto, da ação sobre a compreensão.

Duns Scotus ainda admite que se queremos um objeto é porque antes o conhecemos, e nós o queremos porque nele percebemos um bem. Porém, diz Scotus, que se conhecemos um objeto e não outro é porque nós o queremos.


”Nossas idéias nos determinam, mas nós determinamos antes a escolha de nossas idéias” (E.Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, Vol.II, p. 599).

Seria a nossa vontade que determinaria livremente nosso conhecimento.

O Doutor sutil admite que podemos ter dois tipos de conhecimento: um conhecimento intuitivo, e um conhecimento abstrativo.

A distinção entre um conhecimento abstrativo e outro intuitivo era uma novidade trazida por Duns Scotus. Aristóteles não fala de conhecimento intuitivo, e:


para a filosofia medieval, a questão estava resolvida. Seus intérpretes mais importantes rejeitam, em sua maioria, uma intuição intelectual absoluta e imediata” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno—As origens medievais do Pensamento Fenomenológico, Editora 34, São Paulo, 1998, p. 65. A primeira edição francesa é da Editora Vrin, em 1985).

Para Scotus, porém, o conhecimento intuitivo seria humanamente possível e ele não utilizaria nenhum conceito. Esse conhecimento gozaria ainda de uma intencionalidade semelhante àquela que Santo Tomás atribui à vontade: assim como a vontade tem intenção de possuir um objeto pelo bem que há nele, assim também a inteligência teria uma intenção afetiva para com o que quer conhecer. No próprio ato de conhecer entraria a vontade, colocando uma intencionalidade no ato de conhecer.

E isso aproxima Duns Scotus da filosofia moderna, especialmente da Fenomenologia.

Evidentemente, esse conhecimento intuitivo seria um conhecimento direto, posto pelo próprio Deus no intelecto humano. Dar-se-ia na intuição humana algo parecido com o que ocorre no conhecimento angélico: ao criar os anjos, Deus já lhes teria infundido o conhecimento de suas idéias eternas.

Matéria sem forma é impossível de existir, porque uma pura matéria sem forma teria pelo menos o ato de seu ser, que faria dela matéria. Mas como o que faz ser um coisa qualquer é a sua forma, matéria sem forma é impossível de existir. Logo, toda matéria só pode existir tendo forma de matéria.

Se não é possível existir matéria sem forma, o contrário é possível: existir uma forma sem matéria É o que são os seres angélicos, pura forma sem matéria.

Uma pura forma, mesmo antes de ser realizada numa matéria, não é uma indeterminação total como seria a matéria sem forma. A forma já é concebida no Verbo de Deus, em seu entendimento divino, como uma natureza ou essência definida.Mas a ela falta ainda o ato de ser, isto é, a existência enquanto ser real. Às puras formas inteligíveis deu dá existência ao criá-las como anjos.


As formas ou razões que pré existem desde toda eternidade no Verbo divino decorreram dEle de duas vias: uma foi no intelecto angélico, por outra afim de subsistir em suas naturezas próprias. Elas procederam do Intelecto divino no intelecto angélico pelo fato de que Deus imprimiu no espírito dos anjos as semelhanças das coisas que Ele produziu existirem na natureza” (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I Q.56, a.2. Apud Joseph Moreau, De la Connaîssance Selon S. Thomas D’Aquin, Beauchesne, Paris, 1976, p. 35).

Enquanto as coisas existem em sua natureza, e esse é seu esse naturale.

Enquanto essas razões se refletem no intelecto as coisas têm um esse intellectuale. Ao ser criado, o anjo recebe de Deus, impressas em seu intelecto, todas as formas ou razões das demais naturezas, tanto corporais quanto espirituais, conforme o seu esse intellectuale. E é por meio dessas impressões de espécies que o anjo conhece todas as criaturas materiais e espirituais de modo intuitivo.

É vidente pois que esse tipo de conhecimento próprio dos anjos não pode existir na natureza humana que só conhece por abstração, retirando dos seres materiais sua forma substancial, por abstração intelectual.

Como Duns Scotus admitia que houvesse no homem intuição sem conceito, isto é um conhecimento humano intelectual direto, sem abstração?

A respeito disso, deve–se lembrar ainda que Duns Scotus admitia a possibilidade de haver matéria sem forma determinante. E essa idéia terá conseqüências graves na teoria do conhecimento. Porque, se é possível haver matéria sem forma, como a causa formal do conhecimento está na forma do objeto conhecido, causadora da matéria do conhecimento no intelecto humano, então seria também possível haver o conhecimento de algo que não existisse. O homem poderia conhecer xoró no avesso, sendo xoró, -ainda mais no avesso-, algo absolutamente inexistente. O conhecimento intuitivo seria assim um conhecimento sem objeto real. Um conhecimento posto na mente humana diretamente por Deus, arbitrariamente, e não causado por um objeto realmente existente.

Podendo existir matéria sem forma, também poderia existir conhecimento sem objeto conhecido, sujeito conhecedor sem objeto conhecido.


Rompendo a unidade da matéria e da forma, Duns Scotus permitiria a dissociação entre o conhecimento e a coisa, entre o sujeito e o objeto. Sujeito e objeto estão, com efeito, para o aristotelismo, numa relação análoga à existente entre a matéria e a forma, o objeto determinando formalmente o sujeito no ato de conhecimento que este produz eficazmente” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno—As origens medievais do Pensamento Fenomenológico, Editora 34, São Paulo, 1998, p.146).

Também essa doutrina vai ser levada a suas consequências últimas por Ockham, que vai admitir a intuição gratuita de um objeto sem existência como possível, para a mente humana.


Guilherme de Ockham vai elaborar, portanto, uma doutrina extremamente audaciosa e plena de consequências: não é contraditório para ele que o ato de conhecimento, mesmo intuitivo, seja definido independentemente de seu objeto, pois Deus, causa primeira, pode muito bem, com sua onipotência, de potentia absoluta, substituir-se ao exercício dessa causa segunda que o objeto é, e causar imediatamente um conhecimento que apresente todas as características da autenticidade: verdade, objetividade, evidência, certeza, independentemente da existência de seu próprio objeto. Assim como, para Duns Scoto, a matéria pode ser de potenctia absoluta Dei sewma forma, para Guilherme de Ockham e os occamianos (Robert Holkot, Wlter Chatton, Nicolau D’Autrecourt, João de Mirecourt) a notitia intuitiva pode ser verdadeira e manifestar a existência da coisa conhecida sive res sit, sive non sit. (…) doravante se admite a possibilidade de um conhecimento verdadeiro e certo sem objeto correspondente imediato. Possibilidade de potentia absoluta Dei, é verdade, não realidade atestada, isso não impede que uma suspeita geral seja lançada sobre o valor do conhecimento humano” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno—As origens medievais do Pensamento Fenomenológico, Editora 34, São Paulo, 1998, pp.146-147).

Desse modo o mundo começou a viver da dúvida, indo depois até o ceticismo, e, deste, até o nihilismo.

Desse intuicionismo sem objeto, Ockham passou para a admissão da possibilidade de haver ato justo sem bem objetivo real, isto é:


“Um ato moral bom no qual a vontade não queira, não ame, nem realize o bem que corresponde às exigências maturais de sua potência.(...) Assim é que o Venerável Inceptor [Ockham] depois o terrível Roberto Holkot e o ambíguo João de Mirecourt podem afirmar que a vontade divina, da qual todo efeito é necessariamente bom na medida mesma em que foi desejado por ela, pode prescrever à alma que odeie Deus e fazê-la merecer assim a salvação eterna” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno— As origens medievais do Pensamento Fenomenológico, Editora 34, São Paulo, 1998, p.147).

Desse modo o occamismo fez a dúvida afetar todo o conhecimento, e a indiferentismo manchar toda atividade moral. Disso vai nascer o luteranismo e o cartesianismo.

André de Muaralt considera que dessa crise da metafisica do final da Idade Media e a partir de Duns Scotus, nasceram duas correntes:


Eis porque se desenvolvem desde o século XIV duas correntes de sucesso desigual: ambas desenvolvendo a hipótese occamiana e erigem-na em princípio de natura rerum, a primeira no sentido de uma metafísica racionalista da onipotência divina, da qual a filosofia clássica representa o ponto culminante, a segunda no sentido de uma crítica cujo termo é marcado pela empresa kantiana” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno—As origens medievais do Pensamento Fenomenológico, Editora 34, São Paulo, 1998, p.152).

Discordamos dessa qualificação das duas correntes. De fato, da filosofia Scotista nasceram duas correntes: uma panteísta e racionalista, a do nominalismo de Ockham; outra gnóstica anti-racional e dialética, a filosofia mística de Mestre Eckhart.

Se a negação da analogia e a consideração do ser como unívoco por Duns Scotus fez Ockham conduzir o pensamento humano ao nominalismo negador de todo universal, erro que levou ao materialismo, ao racionalismo e ao panteísmo, Mestre Eckhart, seguiu via oposta.

Eckhart subsituiu a analogia do ser por uma dialética gnóstica. Para Eckhart, se Deus é ser, o mundo é nada, é não ser. Se o mundo é ser, então Deus é que é não-ser, o nada absoluto. E a Gnose de Eckhart tem muita afinidade com a Cabala, embora o Zohar tivesse sido escrito naquele tempo e fosse particamente desconhecido por pensadores cristãos. Não é preciso entretanto excogitar contatos de Eckhart com rabinos: a colocação de princípios metafísicos errados só pode levar ou ao Panteísmo (como se deu com Ockkham), ou à Gnose ( como aconteceu Eckhart).

De Duns Scotus, de Ockham, e de Eckhart nasceu o nihilismo dos séculos XX e XXI. Nasceu a Modernidade em sua duas formas: a racionalista nominalista, a forma panteísta da Modernidade; e a forma dualista dialética, de caráter anti racional: a Gnose de Mestre Eckhart.

Do racionalismo panteísta de Ockham virão a Reforma em sua forma luterana final, o cientificismo renascentista, o racionalismo cartesiano, o empirismo inglês, o barroco, o iluminismo ateu e laico de Voltaire, Diderot e dos enciclopedistas, o comunismo dos enragés da Revolução Francesa, assim como o naturalismo e o realismo do Romantismo, e, enfim o materialismo de Darwin, e o de Marx e de seus corifeus expressos quer na filosofia, quer na arte moderna materialista, terminado na Teologia da Libertação marxista, nascida do Vaticano II.

Da Gnose anti racional de Mestre Eckhart advirão o humanismo mágico de Marsilio Ficino e do Renascimento de Leonardo e Michelangelo, a irracionalidade do subjetivismo caratesiano divinizador do Ego, e negador do conhecimento objetivo, as seitas irracionais do misticismo protestante, o maneirismo, o pietismo e o quietismo, o Idealismo de Kant e seus suscessores, a filosofia e arte do Romantismo, o Simbolismo, a filosofia gnóstica de Bergson, do Modernismo de Blondel, a Fenomenologia de Husserl e seus derivados, culminado no Vaticano II e em tal teologia negadora de todo conheciemnto objetivo.

Na realidade, essa duas correntes são como dois fios que se enroscam um no outro formando um só barbante, de duas cores: uma vermelha, a do panteísmo racionalista; outra branca, simbolizando a Gnose. Ambas são as duas vertentes de uma religião oculta na história: o Antropoteísmo, divinizador do homem.


III. Garrigou-Lagrange contra Scotus


No excepcional livro Dieu, son existence et sa nature – solution thomiste des antinomies agnostiques, o Pe. Reginaldo Garrigou-Lagrange O.P. afirma, a certa altura, que aludirá às profundas divergências entre as escolas tomista e scotista. E adverte expressamente que o fará não por amor à polêmica, pois isto seria ridículo: um teólogo como ele jamais se deixaria levar por um polemismo estéril, próprio do vale-tudo retórico de conformação erística. Seja como for, o fato do qual estava absolutamente ciente Garrigou é que, por trás das divergências teológicas entre essas duas escolas, havia algo profundo: concepções de mundo, de Deus e de Igreja contraditórias, em pontos cruciais.


O ponto de partida da crítica de Garrigou a Duns Scotus é a distinctio formalis deste último, à qual fizemos referência na parte I, e é a seguinte: segundo o frade franciscano do século XIV, existe, anteriormente a qualquer consideração do espírito, uma distinção atual-formal de estratos metafísicos em cada ente. Por exemplo, no indivíduo Sócrates haveria várias “formalidades” concomitantes em ato: animalidade, substancialidade, racionalidade, corporeidade, etc. — idéia retirada, quase ipsis verbis, da obra de Avicena, com sutis matizações e acréscimos.


Mostra o teólogo e metafísico francês que as escolhas desta concepção scotista são, em verdade, insuperáveis. A título de exemplo: aplicada a Deus, essa tese não pode conciliar-se com a absoluta simplicidade da essência divina. Aqui indaga o grande neotomista: poderia haver em Deus uma distinção semelhante à que existe entre a essência da alma humana e as suas faculdades? Neste contexto, o Pe. Garrigou põe a nu, com várias provas, a absurdidade da idéia scotista (implicada na distinctio formalis) de que haveria uma realidade intermédia entre o ente real e o ente de razão: a “representação” ou esse objectivum, que descambará nos idealismos gnosiológicos mais loucos da filosofia moderna.


Ora, nos casos em que o intelecto chega à verdade, a partir dos movimentos de sua potência imaterial capaz de assimilar a forma dos entes, é absolutamente necessário que o que o espírito distingue formalmente tenha fundamento nalguma distinção real no objeto considerado, o qual é existente fora e além do nosso pensamento, conforme aponta Garrigou — baseado na premissa evidentíssima de que toda distinção ou é de razão ou será, necessariamente, real; a propósito, uma distinção formal não real seria mais ou menos como conceber racionalmente um ser sem entidade — absurdo lógico. Neste contexto, se espanarmos bem os argumentos de Scotus, veremos com clareza que a distinctio formalis nada mais é, na prática, do que uma mal-disfarçada distinção de razão, equivocada em seus princípios.


Reiteremos, pois: uma distinção atual-formal entre o Ser de Deus e os atributos divinos é inconciliável com a absoluta simplicidade da natureza divina, demostrada por Santo Tomás na Suma. A única distinção em Deus — prova-o cabalmente Garrigou — não é de substratos metafísicos, mas sim entre as três Pessoas divinas. E tal distinção trinitária é uma distinção de relação, e não formal, devido ao fato de as Pessoas divinas terem a mesmíssima natureza absolutamente simples, quanto ao ser. Portanto, distinguem-se as Pessoas divinas tão-somente nas relações que se dão no operar trinitário (mas mesmo a existência da Trindade só a podemos conhecer pela Sagrada Escritura). E, no que diz respeito ao esse, com muito acerto proclamara o Magistério da Igreja, no Concílio de Florença, a absoluta simplicidade divina que pressupõe a identidade perfeita, em Deus, entre essência e ser:


"In Deo omnia sunt unum et idem” (Denz. n. 705).


A tese univocista de Duns Scotus, levada as últimas conseqüências, não poderia senão descambar, por um lado, no panteísmo (ao modo de Espinosa), e por outro no monismo absoluto (ao modo de Parmênides). É o que apontam algumas páginas luminosas de Garrigou — seguindo nisto a tradição da escola tomista de combate ao scotismo, que tem em Tommaso de Vio, o Cardeal Caetano, um dos seus notáveis. É evidente que o teólogo francês conhecia perfeitamente a passagem da Ordinatio na qual Scotus afirma que o ser não pertence a nenhum gênero (o que está correto!), mas demonstra que isto, em si, não implica creditar ao ser um caráter de unívoco, como em Parmênides, entre outras coisas porque os modos de ser que diferenciam os entes entre si — e que distinguem os entes do Próprio Ser (Deus) — se dão na realidade, e são extrínsecos ao espírito de quem os observa. Em resumo, tudo o que muda, ou se movimenta, é ser, sim, mas não do mesmo modo...


Ademais, a isto o tomismo histórico já contrapusera, de forma apodítica, o fato de que a tese de Scot pressupõe a afirmação e a negação de predicados unívocos num mesmo sujeito, agredindo frontalmente o princípio de não-contradição. E vale dizer mais: se tal tese está errada quando referida a Deus, como acima mostramos, ela é problematicamente aporética quando aplicada aos entes compostos de matéria e forma, ato e potência, substância e acidentes. Isto porque, em sentido metafísico estrito, a identidade de um ente consigo mesmo é de proporcionalidade, e não absoluta, como lembra Garrigou citando o Comentário aos Analíticos Posteriores de Aristóteles, escrito por Santo Tomás. Assim, sem dúvida, cada ente é idêntico a si mesmo na ordem do ser, pois sempre haverá nele alguma distinção (real ou de razão) com relação a todos os demais. Isto é um fato. Mas tal identidade não é unívoca em sentido absoluto, dado o fato de os entes serem compostos — ou que implica dizer que neles a essência não se identifica em grau máximo com o ato de ser.


Garrigou cita ainda várias tentativas da escola scotista de “atenuar” a tese univocista, aproximando-a de alguma maneira da analogia tomista. No parecer do nosso teólogo, isto mostra mais a debilidade do que a força da tese. Ocorre que o problema é, na verdade, muito mais complexo, chegando a alcançar a distinção teológica entre natural e sobrenatural, que na opinião de Scotus é algo dependente apenas do livre-arbítrio de Deus, nada tendo a ver com a natureza dos entes e do Próprio Ser.


Referências:


Ens inquantum ens. O conceito de ser como tal como objeto da metafísica segundo os ensinamentos de Johannes Duns Scotus , Münster: Aschendorff 1979, 2º A. 1989.

A ciência transcende. A determinação formal do ser e da realidade na metafísica da Idade Média e dos tempos modernos (Duns Scotus - Suárez - Wolff - Kant - Peirce). Hamburgo: Mina 1990.

João Duns Escotus. Munique: Beck 2005. ISBN 3-406-51116-3

João Duns Escotus. Pensadores no limiar do pensamento medieval ao moderno, Paderborn: Ferdinand Schöningh 2011. ISBN 978-3-506-77229-9

Dieu, son existence et sa nature – solution thomiste des antinomies agnostiques. LAGRANGE, Garrigou.



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