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“LE SEL DE LA TERRE” E O SEDEVACANTISMO: RESPOSTA AO MOSTEIRO DA SANTA CRUZ

Traduzido por Seminarista Paulo Cavalcante, MHTS.


N. do T.: Nos últimos tempos, os cismas nas fileiras da Fraternidade de São Pio X continuaram com a ascensão dos vários grupos da chamada “resistência” a Dom Fellay e aos “acordistas”, e a recente criação da “União Sacerdotal Marcel Lefebvre”, liderada por Dom Williamson. A mídia ligada a esta organização publicou recentemente traduções de artigos contrários ao sedevacantismo em geral, e à Tese de D. Guérard des Lauriers em particular, como esta: https://www.mosteirodasantacruz.org.br/post/breve-catecismo-sobre-o-sedevacantismo, que é substancialmente idêntica à refutada por Pe. Ricossa em “Sodalitium” (no. 53, ed. it; no. 52, ed. fr). Evidentemente, a nova organização quer evitar qualquer indício de sedevacantismo em seus membros… seguindo seu líder, que tem uma longa “tradição” de luta contra tal posição continuada em seus escritos. O artigo seguinte mostra a importância das questões em jogo, infalibilidade, indefectibilidade, visibilidade, santidade da Igreja, que estes vários grupos muitas vezes não entendem bem.


“LE SEL DE LA TERRE” E O SEDEVACANTISMO

Por Don Francesco Ricossa


Se nossos leitores têm boa memória, devem se recordar de que Le Sel de la Terre é a “revista católica de ciências religiosas e de cultura cristã” fundada e dirigida pelos Padres dominicanos (de facto, mas não de jure) de Avrillé. Muito embora nossos confrades tenham dado os seus primeiros passos sob a égide do Padre dominicano (de facto e de jure) M.-L. Guérard des Lauriers, eles e a revista deles se colocam “na linha da luta pela Tradição na Igreja iniciada por S. Exc. Mons. Marcel Lefebvre”. Caso se apartasse dessa linha, portanto, Le Sel de la Terre perderia sua razão de ser e deveria ser refundada. Fidelidade à linha de Mons. Lefebvre não quer dizer, necessariamente, fidelidade à linha da Fraternidade sacerdotal São Pio X: ainda recentemente, os dominicanos de Avrillé se opuseram firmemente às negociações da Fraternidade com o cardeal Castrillón Hoyos, para grande decepção do superior geral da FSSPX, mons. Fellay. Para evitar qualquer mal-entendido, Le Sel de la Terre tomou recentemente, e várias vezes, posição contra o sedevacantismo, considerando essa tomada de posição como uma missão recebida de Mons. Lefebvre em pessoa (1).

[(1) “Nossos fiéis terão necessidade de estudos sérios, sobre o erro do ralliement de Dom Gérard, sobre o erro do sedevacantismo, sobre a legitimidade das sagrações”. Carta de Mons. Lefebvre de 20-02/1989, citada em Le Sel de la Terre n.º 36, primavera de 2001, p. 33.]

Muitas vezes, nas colunas de Sodalitium, exprimimos o desejo de que nossos adversários aceitassem um debate sobre a questão da Autoridade na situação da Igreja, em geral, e sobre a Tese de Cassicíaco, em particular; desse ponto de vista, portanto, só podemos nos alegrar pelo espaço cada vez maior que Avrillé tem reservado à questão. Apenas, lamentamos a maneira imprecisa, frequentemente superficial, por vezes manifestamente deturpada, com que Le Sel de la Terre expõe as posições dos adversários. Refutar (ou tentar refutar) uma opinião de que não se compartilha é sempre lícito; com a condição, porém, de apresentar corretamente as posições do adversário…





O “Pequeno catecismo sobre o sedevacantismo Um anônimo – que assina Dominicus – publicou no n.º 36 (primavera de 2001) de Le Sel de la Terre [doravante, LSDLT] um Pequeno catecismo sobre o sedevacantismo: 14 perguntas e respostas ao longo de 5 escassas paginolas, onde se passa com demasiada facilidade de argumentos teológicos para observações de gênero bem diverso – que poderíamos chamar de “deslizes de estilo”. Não me deterei em todos esses deslizes de estilo, nem salientarei todas as imprecisões de linguagem que pediriam retificação: de minimis non curat prætor. Debruçar-me-ei, todavia, sobre o que LSDLT afirma da Tese de Cassicíaco [doravante, TdC] que é, como se sabe, a posição de nossa revista e de nosso Instituto. Sedevacantismo e Tese de Cassicíaco LSDLT faz, antes de tudo, uma escolha discutível, que de fato comporta – como consequência – equívocos extraviadores. A escolha consiste em apresentar a “Tese de Cassicíaco” como uma forma de sedevacantismo. Não queremos aqui fazer uma guerra de palavras, já que frequentemente basta entender-se sobre o significado das etiquetas que são utilizadas. O primeiro número dosCahiers de Cassiciacum (maio de 1979) apresentava, com efeito, um artigo do Padre Guérard des Lauriers assim intitulado: A Sé Apostólica está vacante? O autor (jamais citado pelo nome no pequeno catecismo de LSDLT) respondia (em mais de cem páginas) que a Sé Apostólica está atualmente formalmente vacante, mas não materialmente. Após ter dado as provas dessa tese, o autor examinava e refutava três opiniões contrárias à Tese: “1) o Cardeal Montini não é mais papa, nem sequer materialmente; 2) Paulo VI é papa. Tem direito, portanto, a uma obediência incondicional; 3) Paulo VI é papa quando é católico.” A Tese do Padre Guérard des Lauriers é, pois, – para usar esse neologismo – “sedevacantista”? Se por “sedevacantismo” entendermos toda tese que nega que o atual ocupante da Sé Apostólica goza da Autoridade divinamente assistida, então sim, a TdC é “sedevacantista”. Se por “sedevacantismo” entendermos, contudo, uma doutrina bem articulada e que se identifica substancialmente com a primeira opinião contrária à Tese, aí então não, a TdC não é “sedevacantista”. Pode-se escolher – legitimamente – uma ou outra classificação (Tese “sedevacantista” ou “não sedevacantista”). Mas, caso se escolha classificar a Tese como “sedevacantista” (como fez LSDLT), é necessário então precisar toda a vez se se fala da TdC ou do sedevacantismo completo. Foi o que LSDLT não fez, atribuindo indistintamente a todos os sedevacantistas os argumentos próprios, no entanto, aos sedevacantistas “completos”, mas recusados pela TdC (cf. a sexta pergunta: em que argumentos os sedevacantistas fundamentam suas teorias?). Trata-se da mesma confusão que censurei num sedevacantista “completo” (o Pe. Paladino), o qual confundia argumentos nossos e argumentos lefebvrianos, lá onde LSDLT confunde argumentos nossos e argumentos sedevacantistas. Invocar clareza é pedir demais? Uma apresentação caricatural da Tese Na pág. 113 (terceira pergunta: Todos os sedevacantistas estão de acordo entre si?), LSDLT escreve: “Alguns pensam que o papa atual é um antipapa, para outros ele é papa pela metade, papa ‘materialiter’ mas não ‘formaliter’” (o negrito é nosso). Sustentar que, para a TdC, João Paulo II seja “papa pela metade” é, ou deliberada caricatura, ou uma total e ridícula incompreensão. Padres dominicanos, em contato cotidiano com a Suma de Sto. Tomás, deveriam conhecer a distinção materialiter/formaliter aplicada continuamente pelo Aquinate às mais diversas questões, na medida em que todo ente criado pode ser considerado do ponto de vista da matéria (materialiter) ou do ponto de vista da forma (formaliter). A expressão “papa pela metade” é grosseira, ridícula, caricatural. Seria como dizer que um pecado material é pecado “pela metade”, ou que nossos pecados são o sacramento da penitência pela metade (os pecados são, na realidade, a matéria do sacramento), ou que a partícula não consagrada seja Jesus Cristo pela metade, ou que um diácono ao qual já foram impostas as mãos pelo Bispo que, porém, ainda não proferiu sobre ele a forma sacramental seja padre pela metade… E, no entanto, o que significa a expressão “papa materialiter non formaliter”, LSDLT não o ignora, já que escreve (p. 114, quarta pergunta): “o papa atual [sic: João Paulo II] foi designado validamente para ser papa, mas não pôde receber a autoridade papal, pois há nele um obstáculo (sua heresia)”. Dado que LSDLT entendeu o que significa a distinção (exceto pelo que se refere à natureza do obstáculo, que não é – falando estritamente – a heresia), não se compreende por que utilizou a expressão “papa pela metade”. A Tese não nasce para resolver uma dificuldade Quando o “Pequeno Catecismo” tem de explicar “o que significa ser papa ‘materialiter’”, ele começa respondendo: “a principal dificuldade do sedevacantismo é explicar como a Igreja pode continuar a existir de maneira visível (pois ela recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo a promessa de durar até o fim do mundo), ao mesmo tempo que estando desprovida de cabeça”, e ele prossegue: “os partidários da tese dita ‘de Cassicíaco’ inventaram uma solução bem sutil…”. O modo de proceder de Dominicus é revelador de sua mentalidade teológica pouco… dominicana. Ele apresenta a teologia (neste caso, a da TdC) como uma solução para problemas práticos, ou como uma apologética. Trata-se de um método ruim, tanto em gênero, quanto – no caso específico – no que toca à Tese. De fato, a distinção “bem sutil” que a TdC opera no Papado, entre um aspecto material e um formal, não é invenção do Padre Guérard des Lauriers para responder a uma objeção ou resolver uma dificuldade, como dá a entender LSDLT, mas corresponde em tudo à formação – tomista – do próprio Padre Guérard. Como confirmação do que acaba de ser dito, basta ler os Cahiers de Cassiciacum, especialmente o primeiro, no qual é exposta a Tese, para se dar conta do fato de que ali não há nem sombra da distinção materialiter/formaliter como solução para o problema da indefectibilidade da Igreja apontado por Dominicus. Se não me engano, então, não há o mais mínimo vestígio dessa dificuldade no primeiro número dos Cahiers, nem sequer na refutação da opinião sedevacantista que nega a tese do “papa materialiter”, ou seja, justamente onde esperaríamos encontrá-la! Quando, depois, o Padre Guérard des Lauriers fala ex professo da objeção que pode ser sacada de Mateus XXVIII,20 (CdC, n.º 6, maio de 1981, pp. 98-121) – respondendo a uma objeção do Pe. Cantoni, então professor em Écône –, ele não faz o menor aceno à distinção materialiter/formaliter para resolver o problema da indefectibilidade e apostolicidade da Igreja. Somente em 1985 – com o livro do Pe. Lucien (escrito embora sob o controle do Padre Guérard) – se lança a hipótese da possibilidade – quiçá da necessidade, por causa da indefectibilidade da Igreja, prometida por Cristo – de uma “permanência material da hierarquia” (op. cit., cap. X, pp. 97-103). Em seguida, esse argumento tornou-se um ponto importante da TdC, seja para responder às objeções dos que negam que João Paulo II não é Papa formaliter, seja para objetar aos que negam que ele ainda é “papa materialiter”: daí o espaço dedicado a esse ponto de doutrina, por mim ou pelo Pe. Sanborn. Admitir que Paulo VI – e depois João Paulo II – sejam ainda “papas materialiter” resolve, portanto, como já demonstramos tantas vezes e como veremos, a dificuldade apresentada pelo dogma da indefectibilidade da Igreja que outros sedevacantistas não conseguem resolver: é verdade. Mas esta indiscutível vantagem da TdC foi “descoberta” pelo menos sete anos depois (a TdC foi escrita em 1978) da primeira redação da Tese. Logo, a distinção materialiter/formaliter não nasceu como uma “solução bem sutil” e bizantina para uma dificuldade, mas, sim, da análise objetiva da situação atual da Autoridade na Igreja. Os três argumentos de LSDLT contra a Tese Em oito linhas (recordemos de que se trata de um catecismo) LSDLT apresenta a seus leitores uma refutação da Tese. Por comodidade de nossos leitores, reproduzo na íntegra a pergunta e resposta do “Pequeno Catecismo”:

“– Que pensar dessa solução? [do ‘papa materialiter’]

Ela não está fundada na Tradição. Os teólogos (Caetano, São Roberto Bellarmino, João de S. Tomás, etc.) examinaram a possibilidade de um papa herege, mas nenhum deles, antes do Concílio, imaginou uma teoria dessas.

Ela não resolve a dificuldade principal do sedevacantismo: como pode a Igreja continuar a ser visível? Efetivamente, se o papa, os cardeais, os bispos, etc., estão privados de sua ‘forma’, não há mais hierarquia visível da Igreja.

Além disso, essa teoria põe sérios problemas filosóficos, pois supõe que um cabeça possa ser cabeça ‘materialiter’ sem ter a autoridade.

Com essa resposta, o “Pequeno Catecismo” pensa ter acertado as contas com a TdC, e volta a falar, genericamente, de sedevacantismo. Mas LSDLT verdadeiramente enterrou, com tais argumentos, a nossa Tese? Esforcemo-nos por responder às três objeções de Dominicus… 1) O argumento de tradição Argumento comum, cumpre dizê-lo, tanto aos sedevacantistas quanto aos lefebvrianos… (2), ambos merecedores, neste caso, da alcunha de “tradicionalistas” (3). Padre Guérard des Lauriers previra essa objeção desde o primeiro número dos Cahiers de Cassiciacum: a afirmação “a prova da tese não é infirmada pelo argumento de tradição” é efetivamente o título de um dos parágrafos da Tese (B, 3 ae). “A Teologia consiste, ao menos por vezes, em refletir, e não somente em repetir” (4). Repetir tais e quais as opiniões dos autores passados é fazer teologia positiva ou casuística, certamente não teologia especulativa, o que deveria ser evidente para Padres dominicanos (se assim não fosse, Santo Tomás – como teólogo – nem mesmo teria existido!).

[(2) Como já sublinhara em minha resposta ao Pe. Paladino (cf. F. RICOSSA, Don Paladino e la ‘Tesi de Cassiciacum’. Risposta al libro: ‘Petrus es tu?’, CLS. Verrua Savoia, p. 29, nota 29).

(3) Pe. Guérard define essa deformação intelectual como “tradicionalismo teológico”. “Esse comportamento – explica – consiste em procurar, com vistas a acomodá-lo, tudo o que os teólogos puderam dizer sobre a questão controvertida. Caetano, Bellarmino e Suarez nunca dantes gozaram de tamanha popularidade. Os ‘tradicionalistas’ da terceira espécie não compreendem, de fato, que os excelentes autores aos quais fazem referência se exprimiram ‘em tempo de paz’, sem poderem prever as condições da guerra... (...) Esclarecer a situação que resulta de uma crise sem precedentes não pode resultar de um retorno servil ao que foi diferente, sob pretexto de que foi precedente. A teologia consiste, ao menos por vezes, em refletir e não somente em repetir” (Cahiers de Cassiciacum, n.º 1, p. 30).

(4) CdC, n.º 1, p. 30.]

Dominicus recorda que “os teólogos (Caetano, São Roberto Bellarmino, João de S. Tomás, etc.) examinaram a possibilidade de um papa herege, mas nenhum deles, antes do Concílio, imaginou uma teoria dessas”. Não ocorre ao espírito de Dominicus que “antes do Concílio” ninguém teria imaginado uma situação idêntica à que estamos vivendo? Padre Guérard escrevia com finesse, e não sem humor: “não se deixará de observar que os teólogos não previram um tal caso de ‘vacância’ para a Sé Apostólica. Os objetores, respondemos, assemelham-se ao caçador que, seguro de sua ciência, um dia se aventurou.. na realidade. A pantera, u’a modernista, chegou da esquerda, sendo que no livro estava prevista a sua vinda ‘da direita’. O caçador conclui daí que o animal se equivocara e – segundo erro da pantera – foi por ela devorado”. E concluía: “a teologia não deve estar enfeudada ao historicismo. Ela consiste, certamente, em repetir; mas, sobretudo em tempo de crise, ela consiste antes de tudo em refletir, em remontar aos princípios partindo dos fatos, e em esclarecer a estes por meio daqueles. Por que deveria surpreender que uma crise que é, na Igreja, sem precedentes culmine, precisamente, na Sé Apostólica com um tipo de vacância que é, ele próprio, sem precedentes?” (5). [(5) CdC, n.º 1, pp. 76-77.] Os teólogos e canonistas medievais e os da escolástica tardia estudaram o caso de um “papa herege” ou cismático (impelidos também pela atualidade, como no caso de Caetano, que escreve a propósito de um cisma residual do conciliarismo), levando em consideração a hipótese de um Papa que caísse em heresia não em seu ensinamento público, mas como doutor privado. Vemos já uma primeira diferença da situação atual: os erros denunciados nos “papas” do Concílio foram ensinados em seu “magistério” autêntico (ou seja, oficial, autorizado) e não apenas como pessoas privadas. Mas há outra diferença, e bem mais importante, entre o caso hipotético tratado pelos teólogos clássicos e a situação atual: na hipótese de um “papa herege”, os doutores davam como certo que pelo menos parte da Igreja hierárquica se oporia à heresia pessoal do Pontífice, constatando a perda do Pontificado por causa de heresia (Papa hæreticus depositus est) ou então declarando sua deposição por igual motivo (Papa hæreticus deponendus est). Atualmente, malgrado os inegáveis erros dos “papas” conciliares, devemos constatar que os Bispos e Cardeais seguem esses erros ou, ao menos, nenhum deles considera ser o seu dever proceder segundo as modalidades previstas pelos teólogos “tradicionais” (o que põe um sério problema – como veremos – para todos os que se opõem aos sobreditos erros). Sendo a situação atual – portanto – diversa daquela prevista pelos autores do passado, é necessário que a interpretação que a teologia deve dar dessa situação seja também diversa. Os autores subsequentes ao Padre Guérard, porém, se deram conta de que a Tese de Cassicíaco não está, afinal, tão carente de respaldo nos grandes autores clássicos ou na legislação canônica como todavia parece à primeira vista. A distinção – no papado – entre um aspecto material (o ser o sujeito designado por eleição) e um aspecto formal (o gozar da autoridade divinamente assistida) remonta, de fato, ao grande comentador de Santo Tomás, o Cardeal Caetano (Tommaso de Vio, 1468-1533) – que foi, entre outras coisas, Mestre Geral dos dominicanos – na sua célebre obra De auctoritate Papæ et Concilii utraque invicem comparata (concluída em Roma a 12 de outubro de 1511) com a anexa Apologia ejusdem tractatus do ano seguinte (6). A distinção foi adotada – sucessivamente – pelo Cardeal Roberto Bellarmino, Santo e Doutor da Igreja, em seu De Romano Pontifice (l. II, c. 30). Isso basta, no que respeita à “tradição” teológica.

[(6) As duas obras foram reimpressas sob os cuidados do Padre Polet, o.p., em 1936 e ainda se encontram à venda no Angelicum. O Pe. Sanborn publicou – e Sodalitium repercutiu – algumas citações pertinentes de Caetano.]

Quanto ao direito canônico, o Pe. Sanborn (7) fez notar como o direito “permite distinguir diversas espécies de vacância” (R. Naz, Dictionnaire de Droit Canonique, Paris, 1957, t. VI, col. 1086-1087). E é o suficiente para a “tradição” canônica.

[(7) Sacerdotium, XVI, pars verna 1996, pp. 75-76. Republicado emSodalitium, n.º 49, p. 42.]

Para concluir esta questão de menor importância, apraz-me citar a observação que fez Padre Vinson ao serem publicados os Cahiers de Cassiciacum, a qual resume bem a questão da originalidade e, ao mesmo tempo, das raízes tradicionais da Tese do Padre Guérard des Lauriers. Na sua Simple Lettre (fevereiro-março de 1980), Padre Vinson citava as palavras conclusivas de Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, o teólogo do Bispo de Campos, Mons. de Castro Mayer, que, para este, em 1970, estudara a clássica questão teológica do “papa herege” à luz das dificuldades postas pela promulgação da “missa nova” por parte de Paulo VI:

É por isso que, como dissemos de início, convidamos os especialistas na matéria a reestudarem a questão”. [N. do T. – Cit. à p. 33 (p. 52 da edição em .pdf que se encontra no saite do Autor) de: Arnaldo Xavier da Silveira, Considerações sobre o “Ordo Missae” de Paulo VI, São Paulo, junho de 1970.]

Reestudar a questão…” – comentava o Padre Vinson: “não é o que se esforça em fazer o Rev. Pe. Guérard des Lauriers?”.

2) O argumento da visibilidade da Igreja A segunda dificuldade que o “Pequeno Catecismo” enxerga na TdC é que esta não resolveria a “dificuldade principal do sedevacantismo: como pode a Igreja continuar a ser visível?”. E, no entanto, segundo LSDLT, foi justamente para resolver essa dificuldade que a Tese teria sido inventada. Deixemos de lado a confusão que transparece em LSDLT também entre visibilidade e indefectibilidade, e passemos à solução da dificuldade, que efetivamente existe e que merece resposta… A Fé da Igreja a respeito é resumida neste cânon do Concílio do Vaticano (primeiro):

Se alguém disser que não é por instituição do próprio Cristo Senhor ou por direito divino que o Bem-Aventurado Pedro sempre tenha sucessores no primado sobre a Igreja universal; ou que o Romano Pontífice não é o sucessor do Bem-Aventurado Pedro neste primado: seja anátema” (DS 3058; ver também DS 2997).

É evidente que o Concílio não afirma como verdade de fé que sempre haverá – em ato – um Papa sobre a Sé de Pedro: se assim fosse, todo período de sé vacante, ainda que brevíssimo, entre a morte de um Papa e a eleição do sucessor, seria contrário à fé sobre a visibilidade e a indefectibilidade da Igreja! O que o Concílio afirma é que a Igreja, edificada por Jesus Cristo na terra sobre Pedro, persistirá “firme e imutável em sua própria natureza até à consumação dos séculos” (Pio IX, DS 2997), e que, portanto, ela estará sempre fundada sobre Pedro. Não é, pois, necessário que exista sempre de fato um Papa, mas, sim, que subsista sempre a possibilidade e a vontade de eleger um Papa, como recorda o Padre Goupil, tão frequentemente citado:

notemos que essa sucessão formal ininterrupta [de Pontífices na Sé de Pedro] deve ser entendida moralmente, e como o exige a natureza das coisas: sucessão de pessoas, modo eletivo, como o quis Cristo e como o entendeu toda a antiguidade cristã. Logo, essa perpetuidade não exige que entre a morte do predecessor e a eleição do sucessor não haja um intervalo, nem sequer que em toda a série dos pastores algum não possa ter sido duvidoso; mas ‘se entende com isto uma sucessão de pastores legítimos tal que a Sé pastoral, mesmo vacante, mesmo ocupada por um titular dúbio, não possa realmente ser considerada caída em abandono; quer dizer, ainda, que o governo dos predecessores persevera virtualmente no direito da Sé sempre em vigor e sempre reconhecido, e que também tenha perseverado sempre a preocupação de eleger um sucessor’ (Ch. Antoine, De Eccl.)” (8). [(8) Padre GOUPIL, S.J., L’Église, quinta edição, 1946, Laval, pp. 48-49, cit. in: B. LUCIEN, La situation actuelle de l’autorité dans l’Église. La Thèse de Cassiciacum, Bruxelas, 1985, p. 103.]

Em poucas e pobres palavras, LSDTC move à TdC, e ao sedevacantismo em geral, a objeção “histórica” de Mons. Lefebvre:

O raciocínio dos que afirmam a inexistência do Papa põe a Igreja numa situação inextricável. Quem nos dirá onde está o futuro Papa? Como ele poderá ser designado, não havendo mais cardeais?” (9). [(9) Posição de Mons. Lefebvre sobre a Nova Missa e o Papa, 8 de novembro de 1979, suplemento a Fideliter, 1980, p. 4.]

Num de meus escritos precedentes, eu respondia:

Na perspectiva da Tese, de fato, se delineiam várias vias possíveis de saída de uma situação aparentemente desesperada: a) João Paulo II (ou um seu sucessor) poderia rejeitar publicamente o Vaticano II, tornando-se formalmente o Sumo Pontífice, ou então, b) bispos residenciais, depois de terem rejeitado o Vaticano II e feito em vão monições a João Paulo II (ou a um sucessor deste), poderiam legalmente constatar-lhe a pertinácia e eleger canonicamente um sucessor. Em todo caso, as pessoas nomeadas para as várias sés episcopais (ou para o cardinalato) continuam ocupando, embora materialmente (sem autoridade), essas dignidades, e asseguram assim a continuidade da hierarquia e a perenidade da Igreja” (10). [(10) F. RICOSSA, Don Paladino e la ‘Tesi de Cassiciacum’. Risposta al libro: ‘Petrus es tu?’, C.L. Sodalitium, Verrua Savoia, p. 32, nota 45.]

A TdC resolve, portanto, a dificuldade apresentada por LSDTC. Em contrapartida, é a posição da Fraternidade São Pio X e também dos dominicanos de Avrillé que apresenta problemas quanto à visibilidade e a indefectibilidade da Igreja. Pois reconhecendo a autoridade de Paulo VI e de João Paulo II, fica bem difícil de explicar como a Igreja atual não seja essencialmente mudada com relação a antes (contra a indefectibilidade) ou como aqueles que se opõem a tais pontífices não se oponham, pelo fato mesmo, à Igreja visível. Numerosas citações de autores discípulos de Mons. Lefebvre poderiam ser aduzidas em apoio desta afirmação (11). A questão da visibilidade da Igreja (ubi Petrus, ibi Ecclesia) e da sua indefectibilidade (Portæ inferi non prævalebunt adversus eam… Ecce ego vobiscum sum usque ad consummationem sæculi…) é muito mais problemática para os defensores das posições de Mons. Lefebvre e de LSDLT do que para nós.

[(11) Já assinalamos em Sodalitium (n.º 22, pp. 4-5) como Mons. Lefebvre substituíra, como critério da visibilidade da Igreja, o Ubi Petrus ibi Ecclesia por Ubi Maria ibi Ecclesia (Fideliter, n.º 71, p. 7). Muitas vezes autores da Fraternidade exprimiram uma defecção substancial da Igreja: por exemplo, o Abbé De La Rocque, que identifica a Igreja com a Besta apocalíptica (cf. Sodalitium, n.º 48, p. 52; Fideliter, n.º 125, p. 10), enquanto que o Pe. Bouchacourt escreve: “A Igreja vive, desde o Concílio, em adultério com o mundo. Ela se apartou da verdade, abandonando sua missão. Ela não mais ensina, ela se põe à escuta do mundo, e o espírito do mundo penetrou dentro dela.” (Le Chardonnet, n.º 167, abril de 2001, p. 1). Muitas vezes a visibilidade da Igreja e sua indefectibilidade são então atribuídas, não à “igreja conciliar” mas à Fraternidade, que é a única – com Mons. Lefebvre e depois com os bispos por ele sagrados – a assegurá-las (cf. o Abbé Sélégny citado porSodalitium, n.º 33, pp. 29-30; ou mons. Tissier: “este magistério (...) é em Mons. Lefebvre que o encontramos (...) A indefectibilidade da Igreja é o Arcebispo inflexível, que é dela o mais resplandecente arauto”:Fideliter n.º 72, p. 10).]

3) O argumento filosófico… …reduz-se a quase nada: “Além disso, essa teoria põe sérios problemas filosóficos, pois supõe que um cabeça possa ser cabeça ‘materialiter’ sem ter a autoridade”. Em geral, a objeção filosófica comum a lefebvristas e sedevacantistas é a que nega que uma matéria possa subsistir sem forma; os dominicanos de Avrillé não a retomam tal e qual (já a respondemos mil vezes), mas a apresentam de maneira diversa. Afirmar que João Paulo II é “papa” materialiter seria como dizer – se é que entendemos bem a objeção – que um cabeça não é um cabeça, ou que um Papa não é Papa; sustentar, noutros termos, uma absurda contradição. Na realidade, não existe contradição nenhuma. Se – com Caetano e Bellarmino – admitimos que, no Papado, o elemento material seja constituído pelo fato de ter sido canonicamente eleito, e o elemento formal consista em ter recebido de Deus a autoridade divinamente assistida, não vemos que problema filosófico subsiste em sustentar que uma determinada pessoa possa ter sido canonicamente eleita ao Papado (é “papa” materialiter), mas não tenha ainda recebido de Deus a autoridade (não é Papa formaliter): é o que acontece em todo conclave, no momento que separa a eleição de um cardeal de sua aceitação do Papado. O eleito se torna, assim, um cabeça… em potência (ele pode tornar-se o cabeça, a autoridade), mas ele ainda não o é em ato (não é o cabeça, a autoridade). Explique-nos Dominicus onde se encontraria – nesta hipótese – o sério problema filosófico… Os argumentos dos sedevacantistas… não são os da Tese… Depois de ter movido suas objeções à TdC, Dominicus pretende expor e refutar os argumentos dos sedevacantistas. Na sexta perguntinha, ele se indaga: “em que argumentos os sedevacantistas fundamentam suas teorias?” E responde atribuindo a todos os sedevacantistas dois argumentos: o teológico (hipótese do Papa herege) e o jurídico (a Bula de Paulo IV que declara inválida a eleição de um herege ao Papado). As perguntas e respostas seguintes (da sétima à décima) servem a Dominicus para impugnar esses dois argumentos sedevacantistas – apoiando-se, entre outras coisas, numa citação de Billuart que não é de sua lavra (deve-a, indiretamente, aos “guérardianos”). Sodalitiumnão entrará no debate, pois todos sabem (ou deveriam saber) que a TdC jamais se apoiou nesses dois argumentos, que ela sempre considerou não probantes. Deixemos, portanto, aos sedevacantistas absolutos o ônus de defender suas próprias posições, enquanto nos contentamos, novamente, com lamentar que LSDLT – que é uma revista de teologia – atribua indiscriminadamente a todos os sedevacantistas posições que nunca foram as de Mons. Guérard des Lauriers. …enquanto que o argumento da Tese é inencontrável no catecismo de LSDLT! Segunda a TdC, pode-se demonstrar que Paulo VI – e agora João Paulo II – não são formalmente Papas porque estes não têm a intenção habitual e objetiva de procurar o Bem-Fim da Igreja. É a prova do “como” João Paulo II não é – formalmente – Papa. O “pequeno catecismo” teria podido muito bem, assinalando isto, ter se abstido de falar da Tese. E, nesse caso, teria podido igualmente abster-se de assinalar esse argumento. Mas o “pequeno catecismo” falou da Tese, com a pretensão de provar sua falsidade. Nessas circunstâncias, não é possível, não é intelectualmente honesto, não somente atribuir à Tese argumentos que não são os seus, mas ainda passar em silêncio o argumento indutivo que a Tese faz seu. Assinalemos, entre outras coisas, que inclusive para autores ligados a Mons. Lefebvre esse argumento não deveria parecer tão difícil de entender nem tão carente de fundamento, a ponto de não ser nem sequer assinalado. Que a ausência de intenção objetiva de procurar o Bem-Fim da Igreja seja causa da perda da Autoridade, é uma tese muitas vezes admitida por mons. Tissier de Mallerais (12). E que Paulo VI e João Paulo II não procuram objetivamente o Bem-Fim da Igreja é opinião comum de todos os “tradicionalistas”, muitas vezes sustentada também por Mons. Lefebvre (13). Dever-se-ia concluir daí que Paulo VI e João Paulo II não têm como gozar da autoridade divinamente assistida: se os teólogos próximos à Fraternidade não chegam a esta conclusão, deve-se atribuir isso, ao que parece, a motivos alheios ao exercício da lógica…

[(12) Vide, por exemplo, Fideliter n.º 72, nov.-dez. 1989, p. 7, onde, falando de João Paulo II, ele escreve: “Embora querendo habitualmente o bem da Igreja (do contrário não seria Papa) (...)”.

(13) O “estado de necessidade” invocado para justificar as sagrações episcopais de 1988 exprime, noutras palavras, o mesmo conceito.]

A autoridade do Concílio, das leis litúrgicas e canônicas Se LSDLT não acena para o argumento indutivo da Tese, não omite porém dedicar uma pergunta de seu catecismo ao argumento dedutivo da mesma Tese, ou seja, aquele que se fundamenta na infalibilidade (embora Dominicus pense que se trata somente de um “confirmatur”, e não de um argumento verdadeiro e próprio: “os sedevacantistas – escreve ele – não pensam porventura encontrar uma confirmação da opinião deles nos erros do Concílio e na nocividade das leis litúrgicas e canônicas da Igreja Conciliar?”) (14).

[(14) Na perspectiva da Tese esse argumento, tirado da infalibilidade do magistério ordinário universal e da infalibilidade prática das leis da Igreja, não é uma confirmação de um assunto já demonstrado precedentemente, mas é a prova mesma de uma parte da Tese, isto é, daquela que afirma o fato: Paulo VI não era formalmente Papa.]

O Vaticano II deveria ter sido garantido pela infalibilidade do magistério ordinário universal da Igreja? LSDLT sustenta que não… Recordemos brevemente aos leitores o argumento tirado da infalibilidade do magistério ordinário universal, tal como o apresentava o Pe. Lucien:

A observação do fato: Há oposição de contradição entre a doutrina do Vaticano II sobre o direito à liberdade civil em matéria religiosa e a doutrina infalivelmente ensinada até então sobre o mesmo assunto.

O raciocínio por redução ao absurdo: Se Paulo VI tivesse sido formalmente Papa no momento da promulgação da doutrina do Vaticano II, teria sido impossível, em virtude da infalibilidade do Magistério ordinário e universal, que essa doutrina estivesse em oposição com um ensinamento infalível da Igreja. Ora, essa oposição se realizou. Logo, Paulo VI não era formalmente Papa.” (15).

[(15) B. LUCIEN, La situation actuelle de l’autorité dans l’Église. La Thèse de Cassiciacum, Bruxelas, 1985, p. 13.

Para não aceitar – como faz LSDLT – a conclusão desse raciocínio (Paulo VI não era formalmente Papa), é preciso recusar também ao menos uma parte do silogismo. LSDLT – com Mons. Lefebvre – admite o fato observado e a menor do silogismo, ou seja, a oposição de contradição entre a doutrina do Concílio sobre a liberdade religiosa e o ensinamento infalível da Igreja. Será, pois, a “maior” do argumento que recusarão nossos confrades dominicanos. Muito frequentemente, no passado, fez-se um esforço para negar – explícita ou implicitamente – a infalibilidade do magistério ordinário universal da Igreja: empresa árdua, bem como impossível para um católico, já que se trata de uma verdade de fé definida pelo Concílio do Vaticano (I) (Constituição Dei Filius, Denz. 1792). Registremos o fato de que LSDLT não segue esse caminho, e admite a infalibilidade do magistério ordinário universal da Igreja. Só podemos ficar contentes com esse ponto adquirido. Nada mais resta, então, senão negar o fato de que o Vaticano II deveria ter sido garantido pela infalibilidade do magistério ordinário universal da Igreja. Para sustentar essa opinião, Dominicus começa referindo-se a um artigo publicado anteriormente por LSDLT (sobre o qual logo falaremos) e depois aduz dois argumentos, um sobre o mérito da questão e outro ad hominem. Primeiro argumento (ad hominem) do “Pequeno Catecismo”: se assim fosse, “toda a Igreja Católica teria desaparecido naquele momento…” Escreve Dominicus: “na realidade, se fôssemos aceitar esse raciocínio, teríamos que dizer que toda a Igreja Católica desapareceu naquele momento, e que ‘as portas do inferno prevaleceram contra ela’. Pois o ensinamento do magistério ordinário universal é o de todos os bispos, o de toda a Igreja ensinante”. Como vemos, o argumento é ainda o da indefectibilidade da Igreja, e é um argumento grave e importante, que não é apanágio de LSDLT: todo apoiador do Vaticano II poderia utilizá-lo contra todos aqueles que o acusam de ter errado (inclusive, portanto, contra LSDLT). Como se pode, com efeito, negar uma doutrina ensinada pela unanimidade moral dos bispos católicos – ou seja, da Igreja docente? Se assim fosse, deveríamos deduzir daí – como LSDLT nos censura – que a Igreja como um todo teria abandonado a Fé, o que é contrário ao dogma da indefectibilidade da Igreja (ainda que muitos teólogos lefebvrianos o afirmem abertamente, como os já citados Pe. Bouchacourt e Sélégny) (16). [(16) Vide nota 11.] Não é esta – naturalmente – a nossa posição: nós cremos na indefectibilidade da Igreja… e, todavia, também na sua infalibilidade! Respondemos, pois, a Dominicus: ele teria razão se sustentássemos que a autoridade do Vaticano II é a do magistério ordinário universal (que é infalível). Na realidade, sustentamos que a autoridade do Vaticano II deveria ter sido (no mínimo) a do magistério ordinário universal. Ela o teria sido se Paulo VI tivesse sido Papa. Mas, como Paulo VI não era Papa, tampouco o Vaticano II é magistério ordinário universal, e portanto não é infalível. A essa resposta, se objetará apresentando a autoridade dos outros bispos que subscreveram ao Vaticano II. Responde-se que todos os bispos não são infalíveis sem o Papa. Objetar-se-á ainda que, postas as condições da infalibilidade, deve-se aderir a quanto for ensinado pela Igreja docente, e não deduzir, pelo contrário, a ilegitimidade de quem assim ensinou. Responde-se que o objetado vale a propósito de uma matéria que ainda não tenha sido infalivelmente definida pela Igreja docente, como o foi a liberdade religiosa. Objetar-se-á que, se Paulo VI e todos os bispos erraram na fé, aí então a Igreja inteira defeccionou, e as portas do inferno prevaleceram. Responde-se ad hominem que esse argumento vale também contra os sequazes de Monsenhor Lefebvre. Em seguida, responde-se – contra os sequazes de Mons. Lefebvre – que a objeção é válida, justamente, caso se pense que Paulo VI e os bispos a ele unidos tinham a autoridade e representavam verdadeiramente a Igreja docente: nesse caso, sim, a Igreja teria perdido sua infalibilidade e indefectibilidade. Responde-se, ainda, que o conjunto da Igreja docente é infalível (assim como o Papa) porque, do contrário – se pudessem errar –, todos os seguiriam no erro. Ora, em nosso caso, esse erro não é possível, justamente, porque as matérias sobre as quais os padres conciliares erraram eram já definidas pela Igreja docente, razão pela qual é possível aos fiéis dar-se conta do erro e não o seguir: como de fato aconteceu, já que bispos, sacerdotes e fiéis não aceitaram, de fato, o ensinamento do Vaticano II, quer implicitamente, quer explicitamente. Conclui-se disto, após atento exame, que o argumento da indefectibilidade da Igreja – embora tão delicado – se revela embaraçoso para quem segue, como LSDLT, a posição de Mons. Lefebvre, e não para quem segue a posição de Mons. Guérard des Lauriers (17).

[(17) A objeção de Dominicus à TdC não é nova, na medida em que já fora respondida, ainda que brevemente. Reenvio o leitor, por exemplo, às linhas que o Pe. Lucien dedica a esta dificuldade em L’infaillibilité du magistère ordinaire et universel de l’Église, Documents de Catholicité, Bruxelas, 1984, ‘Avertissement’, pp. 3-4. Mutatis mutandis pode-se aplicar a esta dificuldade o que Lucien escreve em La situation actuelle de l’Église... no anexo I, dedicado à: “Legitimidade do Romano Pontífice, fato dogmático” (op. cit., pp. 107-111).]

Segundo argumento do “Pequeno Catecismo”: o Vaticano II não é infalível, porque não é imposto com autoridade. Resposta a este argumento Segundo os “sedevacantistas”, o Vaticano II deveria ter sido, no mínimo, magistério ordinário universal – o dos bispos unidos ao Papa – e, portanto, infalível. Ora, o Vaticano II não é infalível, pois errou. Logo, não é magistério ordinário universal, o dos bispos unidos ao Papa, e isso só pode ser assim caso se admita que Paulo VI, naquele momento, não era formalmente Papa. Dominicus encontra uma solução que lhe parece mais simples: “o ensinamento conciliar não se apresenta mais como ‘necessário à salvação’ (é lógico, pois os que o professam pensam que se possa salvar-se mesmo sem a fé católica). Não sendo imposto com autoridade, esse ensinamento não é garantido pela infalibilidade” (pergunta 11, p. 116). Respondemos a Dominicus: a) que a sua resposta peca, mais uma vez, por voluntarismo; b) que, em todo caso, é errôneo sustentar que o Vaticano II não pretende impor-se com autoridade. Quanto ao primeiro ponto, remeto os nossos leitores, e especialmente os dominicanos de Avrillé, ao que escreve a esse respeito o Pe. Lucien no anexo II (Infalibilidade e Obrigação) de seu estudo sobre a infalibilidade do magistério ordinário e universal (18). Resumindo: o ato de fé tem por motivo a autoridade de Deus que Se revela. O papel da Igreja é precisar o que – exatamente – foi revelado por Deus: “toda vez, portanto, que a palavra desse magistério declara que esta ou aquela verdade faz parte do conjunto da doutrina divinamente revelada, todo o mundo deve crer com certeza que isso é verdadeiro; pois, se isso pudesse de alguma maneira ser falso, seguir-se-ia daí, o que é evidentemente absurdo, que Deus mesmo seria o autor do erro dos homens” (Leão XIII,Satis Cognitum). “O papel da Igreja não é, de modo nenhum, o de obrigar a crer; é o de certificar oficialmente que determinada proposição pertence ao dado revelado (ou está ligada a este, no caso das ‘verdades conexas’). Em suma, o magistério como tal não obriga a crer, mas propõe o que deve ser crido como divinamente revelado. (…) Em virtude desse texto de base do Vaticano I [Denz. 1792], o ato próprio do magistério infalível comporta somente a afirmação do caráter revelado de uma proposição; aí então, ipso facto, a obrigação liga o fiel: deve-se crer. Não porque a Igreja criaria uma obrigação, mas porque o fiel conhece, em seguida à afirmação infalível da Igreja, que determinada proposição é revelada e que, portanto, ele se encontra ligado pela obrigação geral de crer aquilo que é revelado, obrigação esta que se aplica a esse caso particular” (19). A posição de Dominicus, pelo contrário, se ressente da influência do voluntarismo em filosofia e teologia, pelo qual as coisas seriam tais não em virtude de sua natureza intrínseca, mas em virtude de um ato extrínseco de vontade de uma autoridade…

[(18) B. LUCIEN, L’infaillibilité..., op. cit., pp. 131-146.

(19) B. LUCIEN, L’infaillibilité…, op. cit., p. 134.]